Considerado um dos mais caros do mundo, o medicamento Elevidys, indicado para distrofia muscular de Duchenne (DMD), uma doença rara que leva principalmente os meninos a perderem os movimentos do corpo, está no centro de uma polêmica. No último dia 27 de julho, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) suspendeu temporariamente o uso, a distribuição e a venda no Brasil do remédio, que pode chegar a R$ 20 milhões.
A decisão foi tomada após a Food and Drug Administration (FDA), a agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos, equivalente à Anvisa no Brasil, divulgar dados sobre três mortes associadas a terapias genéticas dessa tecnologia. Um dos óbitos, de um criança, foi reportado no Brasil.
A Roche, responsável pela comercialização do produto no Brasil, afirma que o médico avaliou que o caso não teve elo com o uso do remédio e que está dialogando com a Anvisa e autoridades globais. A farmacêutica ainda diz não houve mortes ligadas ao tratamento entre os cerca de 760 pacientes deambuladores (que conseguem andar) que já receberam a terapia e que, com base nos dados atuais, o risco-benefício segue positivo.
A Anvisa, por sua vez, destaca que todas as mortes estavam ligadas a indicações não autorizadas por aqui. No País, o remédio foi autorizado em dezembro de 2024, em caráter excepcional, exclusivamente para pacientes pediátricos que conseguem caminhar, na faixa etária de 4 a 7 anos, com mutação confirmada no gene DMD. Ainda assim, a decisão de suspender a medicação foi tomada “de forma prudente e preventiva”, enquanto novas análises de segurança são conduzidas em parceria com reguladores internacionais.
FDA investiga morte de criança de 8 anos
Segundo o comunicado do FDA na sexta-feira (25), a investigação mais recente envolve a morte de uma criança de oito anos, ocorrida no dia 7 de junho. O órgão pediu a suspensão voluntária da distribuição do produto enquanto investiga se há problemas com segurança do produto. Houve outras duas mortes – de um adulto e de uma criança.
Conforme o FDA, os três relatos de falência hepática aguda com morte envolvendo terapias genéticas da Sarepta baseadas no vetor AAVrh74 são em dois meninos não deambuladores (não caminham) com Duchenne e tratados com Elevidys e de um adulto com Distrofia Muscular de Cinturas que participava de ensaio clínico com terapia experimental.
Em nota, a farmacêutica Sarepta Therapeutics, desenvolvedora do produto, ressalta que a segurança dos pacientes é sua prioridade e disse colaborar com a agência reguladora, reforçando a importância da Elevidys como a única terapia gênica aprovada para a distrofia muscular de Duchenne.
Em outro desdobramento, o Comitê de Medicamentos para Uso Humano (CHMP), ligado à Agência Europeia de Medicamentos (EMA), recomendou não conceder autorização de comercialização para a Elevidys, segundo comunicado divulgado nesta sexta-feira. A Roche lamentou a decisão.
STF cobra informações de farmacêutica
Em junho, o ministro Gilmar Mendes, decano do Supremo Tribunal Federal (STF), pediu informações ao Ministério da Saúde, à Anvisa e à farmacêutica Roche Brasil sobre a gravidade dos efeitos colaterais do medicamento Elevidys.
O despacho foi prestado após relatos de morte por insuficiência hepática de dois pacientes estrangeiros não deambulantes (sem capacidade de andar) e de uma criança brasileira que teve seu quadro de saúde afetado por complicações gripais após o uso do Elevidys.
Além disso, também foi noticiado que a Roche suspendeu o uso da medicação para pacientes de todas as idades não deambulantes. Em despacho, o ministro Gilmar Mendes questionou se houve alteração da classificação de segurança para o uso do Elevidys em pacientes menores de oito anos, idade em que o medicamento foi aprovado pela Anvisa no Brasil.
O relator também quer saber se há informações sobre efeitos colaterais graves e permanentes em crianças que receberam o tratamento no Brasil e, em caso afirmativo, qual a frequência, os seus efeitos e o nível de comprovação da relação destes efeitos adversos com a infusão do medicamento.
O ministro também exige informações sobre a extensão da suspensão determinada pela Roche. Leia a íntegra do despacho .
Doença atinge um a cada 3.500 meninos no mundo
A distrofia muscular de Duchenne é uma condição genética rara caracterizada por fraqueza muscular progressiva e ocorre devido a um gene defeituoso. A doença degenerativa acomete 1 a cada 3.500 nascidos vivos do sexo masculino no mundo. A doença hereditária pode levar a uma deterioração gradual da função muscular e, por fim, ao comprometimento respiratório e cardíaco.
Na forma mais comum, a distrofia muscular de Duchenne, o prognóstico é grave. Por volta dos 10 anos os pacientes com Duchenne costumam parar de andar. Depois apresentam problemas respiratórios graves, que levam à morte. Os afetados geralmente morrem na idade de 20 a 25 anos devido à deterioração progressiva do coração e dos músculos respiratórios.
Atualmente não há cura para a DMD, e as terapias existentes visam principalmente aliviar os sintomas da doença. Segundo defensores do Elevidys, o medicamento “oferece um caminho promissor para combater a doença”.
Efeitos da medicação não são conhecidos
Em audiência pública realizada em outubro de 2024 pela Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Câmara dos Deputados sobre o registro do medicamento Elevidys para a distrofia muscular de Duchenne, a especialista em regulação da Anvisa, Renata Miranda, já alertava que, que por se tratar de uma tecnologia nova, os efeitos de longo prazo de sua utilização ainda não eram conhecidos. Por isso a necessidade de monitoramento dos pacientes tratados.
Nós estamos falando de um produto que é um gene. É uma injeção única, ele vai ficar incorporado às células. Esse produto necessita de estudos de acompanhamento de segurança e de eficácia. Por isso, a gente precisa ter o compromisso da empresa de que isso seja feito aqui no nosso país”, disse a especialista.
Renata explicou que o Elevidys utiliza partes de um adenovírus para levar até o músculo o gene que falta nos pacientes com doença de Duchenne. Esse gene, uma vez introduzido no organismo, não pode mais ser retirado.
Elevidys não cura, mas interrompe a evolução da doença
Tanto a representante da Anvisa quanto o neuropediatra Luis Fernando Grossklauss, especialista em distrofia de Duchenne, afirmaram que o Elevidys não cura, mas interrompe a evolução da doença. Como o medicamento era muito recente, ainda não é possível saber como será a evolução dos pacientes no longo prazo. Nos Estados Unidos, onde recebeu o primeiro registro para utilização comercial, foi aplicado em cerca de apenas 150 crianças.
Eu acho que o Elevidys é um remédio promissor, que visa realmente à estabilidade da doença. Lógico que, quanto antes tomar, mais a criança vai se beneficiar. Agora, se esse remédio vai manter a função dele por dez, 15, 20 anos, ou a vida toda, isso ainda a gente não é capaz de responder”, afirmou Grossklauss.
O neurologista Maciel Pontes destaca a importância da agilidade no tratamento. “O Elevidys deve ser administrado antes dos sete anos de idade para ser eficaz. Após essa idade, a capacidade do medicamento de retardar a progressão da doença diminui drasticamente. Isso cria uma enorme pressão sobre as famílias”.
Ele reforça que, embora o Elevidys ofereça uma esperança, não é uma cura definitiva. “Mesmo sendo uma dose única, o paciente precisa de acompanhamento médico contínuo e de terapias adicionais com corticoides”, explica Pontes, ressaltando a complexidade do tratamento.
Pai de menino com a doença relata efeitos colaterais leves
Pai de um paciente com distrofia muscular de Duchenne tratado com Elevidys, Erick Cavalcanti relatou que, três meses após receber o medicamento, o filho teve redução de 70% no nível proteínas que indicam inflamação no organismo. Além disso, nos testes de função motora a criança apresentou melhora entre 50 e 60%.
Quanto aos efeitos colaterais, Erick Cossa disse que foram leves, como febre e enjoo. O pai, que também é médico, afirmou ainda que, nos Estados Unidos, houve poucos pacientes com reações graves, e nenhuma criança morreu em consequência do medicamento.
De acordo com o especialista Luis Fernando Grossklauss, nos três primeiros dias após a aplicação da terapia, os efeitos colaterais mais comuns são vômito, náuseas, dor no corpo e taquicardia. O médico esclareceu que esses efeitos adversos são uma reação ao vírus utilizado como vetor e podem ser tratados com medicamentos comuns.
Reações adversas mais graves podem surgir a partir da quarta semana após o uso do Elevidys, segundo o neuropediatra. Neste momento, o paciente pode apresentar quadros como fraqueza muscular, miocardite ou miosite autoimune. Nesse caso, o tratamento indicado seria corticoide. Se a criança não melhorar, é necessário fazer uma transfusão de plasma.
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Aprovação da medicação nos EUA
A Elevidys é uma terapia genética administrada em dose única intravenosa. A substância foi aprovada pelo FDA em junho de 2023. O primeiro medicamento do mundo utilizando terapia genética para pacientes com Distrofia Muscular de Duchenne foi aprovado para pacientes pediátricos ambulatoriais de 4 a 5 anos com uma mutação confirmada no gene DMD. “Mais de 80 pacientes tratados em três estudos contribuíram para o perfil de segurança do tratamento”, informou a empresa, na ocasião.
A comunidade de Duchenne em todo o mundo comemorou a aprovação do medicamento, apontada como um “divisor de águas” para o tratamento de Duchenne, trazendo esperança para milhares de famílias em todo o mundo, já que a doença não tem cura e os pacientes têm em uma expectativa de vida média de 20 a 30 anos.
A aprovação desse remédio traz esperança para toda uma comunidade que não tinha nenhuma opção. Agora temos um possível tratamento para nossos filhos”, comemorou Natália Negrini, mãe do Valentin de 5 anos, diagnosticado com Duchenne. “Claro que ainda estamos restritos para poucas crianças (4-5 anos), mas a esperança de que isso seja ampliado para mais idades é real e essa aprovação muda a história para nossa comunidade”.
Ela foi autora do abaixo-assinado publicado na plataforma Change.org que mobilizou mais de 66 mil pessoas a favor da aprovação do medicamento pela Anvisa. “Cada dia conta para os pacientes e o tratamento mais rápido possível pode significar uma melhora significativa na qualidade de vida dos pacientes com DMD”, argumentavam os organizadores da mobilização.
Setembro é o mês de conscientização sobre a Distrofia Muscular de Duchenne
Conheça os desafios de uma doença rara que exige medicamentos milionários para conter seu avanço, impactando principalmente crianças
Neste Dia Nacional da Luta por Medicamentos (1 de agosto) também chama atenção a luta de famílias de pessoas com doenças raras, como a Distrofia Muscular de Duchenne (DMD), para ter acesso a medicamentos de alto custo.
Com o avanço das pesquisas e a chegada de tratamentos inovadores, como o Elevidys, cresce o debate sobre o papel do governo na garantia do acesso a esses medicamentos. Enquanto ciência, justiça e tempo se entrelaçam nesta batalha;
Setembro marca uma campanha crucial de conscientização sobre a Distrofia Muscular de Duchenne. A iniciativa busca visibilizar uma realidade pouco discutida, mas que impacta profundamente muitas famílias no Brasil e ao redor do mundo. Essa doença genética rara que afeta aproximadamente um em cada três mil nascimentos, com prevalência em meninos.
A DMD provoca degeneração muscular progressiva, afetando não apenas a mobilidade e fala, mas também, em estágios avançados, o funcionamento cardíaco e respiratório. Sem tratamento adequado, a expectativa de vida dos pacientes com a doença raramente ultrapassa os 30 anos.
A campanha de setembro visa sensibilizar a sociedade, profissionais de saúde e formuladores de políticas públicas sobre a importância do diagnóstico precoce e do acesso a tratamentos. Para muitas famílias, a luta contra a DMD é uma corrida não só contra o tempo, mas também contra barreiras financeiras quase intransponíveis.
O impacto devastador do diagnóstico de Duchenne
O medicamento Elevidys é visto como a única esperança de retardar o avanço da doença, mas seu preço exorbitante coloca as famílias em uma luta contra o tempo e em busca de apoio do governo. Regiane Pereira, mãe de Isaac, de 5 anos, diagnosticado com DMD, descreve o impacto devastador do diagnóstico.
Os exames de sangue mostraram níveis muito altos de CPK. Após o teste genético, a confirmação da distrofia muscular de Duchenne foi um choque. Parecia o fim do mundo”, disse Regiane, emocionada. “A dor é indescritível. Uma mãe sofre junto com a criança”, completou.
A história de Regiane reflete a luta de muitas famílias no Brasil, que não apenas enfrentam a dor emocional, mas também mobilizam campanhas online e recorrem à Justiça para financiar os tratamentos de seus filhos.
Como o medicamento age no organismo
De acordo com a Sarept, o tratamento com microdistrofina Elevidyz consiste em uma terapia de transferência de genes de dose única para infusão intravenosa projetada para abordar a causa subjacente da DMD por meio da produção direcionada de microdistrofina no músculo esquelético.
De acordo com a Sarept, o tratamento é considerado inovador, pois, “além de abordar a causa genética raiz de Duchenne, foi desenvolvido para atender todas as mutações no gene da distrofina, com exceção em pacientes com qualquer deleção no exon 8 e/ou exon 9 no gene DMD, que são contraindicados para o tratamento”.
A distrofina é responsável por ligar as proteínas do interior da célula muscular a outras proteínas do exterior, garantindo a estabilidade da fibra muscular e a transmissão da força de contração para todo o músculo. O portador de Duchenne não produz essa proteína, por isso, ao longo do tempo, a ausência da distrofina afeta a mobilidade motora e o funcionamento dos demais músculos do corpo.
O que o tratamento irá fazer é justamente entregar um gene que codifica uma forma abreviada de distrofina para células musculares conhecidas como microdistrofina, permitindo que o corpo passe a produzir uma quantidade desta proteína capaz de limitar o avanço da doença”, explica a neurologista e neuromuscular infantil, Clara Gontijo.
Fonte: Agência Brasil, Agência Câmara de Notícias, Portal do STF e Assessorias