O jornalista Maurício Kubrusly, de 79 anos, assistiu com atenção e foi aplaudido de pé na estreia do documentário Kubrusly: Mistério Sempre há de Pintar Por Aí, durante a abertura da 11ª Mostra de Cinema de Gostoso, no Rio Grande do Norte, na última sexta-feira (22). A produção exibida pela Globoplay revisita reportagens, detalhes da vida pessoal do ex-Fantástico e mostra como está a vida dele com Demência Fronto Temporal (DFT).

Com o avanço da doença, o jornalista só reconhece a esposa, a arquiteta Beatriz Goulart, que conheceu em um site de relacionamentos e com quem vive há mais de 20 anos. O jornalista já perdeu a capacidade de escrita e leitura, mas guardou um trecho da canção ‘Esotérico’, de Gilberto Gil – um dos versos dá nome ao documentário.

Recluso após o diagnóstico, o jornalista Maurício Kubrusly e sua esposa vivem há dois anos em Serra Grande, no Sul da Bahia, junto com Shiva, simpático cachorro que o acompanha na praia. Ela explica que a escolha para se mudar foi motivada pela precariedade no Centro de São Paulo, onde viviam. Com o avanço da demência, o jornalista ficava cada vez mais impressionado com as pessoas que moravam nas ruas, às quais distribuía comida.

No começo, ele não gostou. Falava: ‘Por que você não me trouxe para esse fim de mundo? Aqui não tem ninguém. Aqui não é a Bahia nada, só tem gente loira’.  Depois, quando a gente começou a passear por outros bairros, mais populares, ele foi gostando. Mas ele já desligou de saber onde está. Antes, a gente andava quilômetros, agora caminhamos uns 500 metros, porque ele se cansa”, contou, em entrevista ao jornal O Globo.

Kubrusly deixou São Paulo do coração para mergulhar na natureza. A memória se foi, mas, como ele sempre diz, permanece sua enorme paixão pela vida e pela gente brasileira”, foram as frases exibidas durante o programa. O jornalista havia deixado a Globo em maio de 2019, após 34 anos, mas já estava afastado da emissora por problemas de saúde meses antes.

Beatriz revelou que durante a exibição do filme, ele se emocionou e a abraçou forte.

A gente não sabe falar sobre demência, não sabe falar sobre a morte, tem vergonha, diz que é para preservar a privacidade das pessoas. Mas eu só penso naquela pichação que fizeram na Rio-92 quando o cacique Raoni e Sting se encontraram: ‘Ou a gente se Raoni ou a gente se Sting’.

Duro de pensar: Bruce Willis também vive com demência frontotemporal

No final de 2022, a família do consagrado ator norte-americano Bruce Willis também divulgou que ele foi diagnosticado com demência frontotemporal. Em março daquele ano, ele já havia anunciado a aposentadoria da atuação por conta de um distúrbio de fala denominado afasia que o impedia de se comunicar adequadamente.

Em comunicado, a família do ator – conhecido por seus papéis em eletrizantes filmes de ação como “Duro de Matar”, “Armageddon” e “Looper”, entre muitos outros – explicou que os problemas com a fala eram apenas alguns dos sintomas que ele estava enfrentando e afirmou que era um alívio ter um diagnóstico claro sobre sua doença após tanto tempo.

Neste tipo de demência chamada ocorre importante comprometimento da fala, tendo o ator se afastado da profissão após este diagnóstico. Curiosamente, antes de ser diagnosticado com essa doença, Willis era um ativo defensor da conscientização sobre as demências, pois ele mesmo havia vivenciado um caso de demência em sua família – sua madrasta. Isso o inspirou a se envolver na luta contra esse tipo de doença.

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Mas afinal, o que é a demência frontotemporal e como ela afeta as pessoas?

As demências são uma condição médica de ocorrência relativamente frequente. Estima-se que existam 50 milhões de pessoas acometidas por alguma forma de demência no mundo, sendo que 10 milhões de novos diagnósticos ocorrem a cada ano. Desses, 60% são decorrentes de Doença de Alzheimer (DA), sendo projetado um número total de 150 milhões de casos de DA em 2050. No Brasil existem aproximadamente 1,7 milhões de idosos com demência.

demência é uma condição médica que afeta a capacidade do cérebro de funcionar adequadamente. Com o tempo, pode levar à perda de memória, alterações de humor e comportamento, problemas de comunicação e coordenação, e uma série de outras complicações. Infelizmente, muitas pessoas sofrem com a demência e, muitas vezes, suas vidas são drasticamente alteradas por essa condição”, explica Carlos Roberto Caron, professor de Neurologia da Faculdade Evangélica Mackenzie do Paraná (Fempar).

Geralmente aparece em seus portadores entre os 45 e 64 anos de idade, tendo início de forma lenta e em caráter progressivo. Além da genética, não há outros fatores de risco conhecidos.

Diferença entre demência frontotemporal e Alzheimer

Doença possui semelhanças com o Alzheimer, porém com diferenças significativas e pode afetar diferentes funções cognitivas

O diagnóstico de Maurício Kubrusly foi divulgado em agosto de 2023, mas os primeiros sinais surgiram bem antes, em 2016. Inicialmente, acreditava-se que ele sofria de Alzheimer. De fato, as duas são doenças crônicas neurológicas degenerativas, que se instalam ao longo de um período de tempo que pode abranger de meses a anos.

Ambas são doenças que afetam a cognição do indivíduo, o que pode prejudicar aspectos como a memória, linguagem (com leitura, escrita e fala), adequação do comportamento social, auto-organização, funções executivas e em alguns casos a perda da capacidade de reconhecimento de faces e de objetos”, detalha o neurologista do Hospital Edmundo Vasconcelos, Tiago Sowmy.

Porém, a demência frontotemporal é diferente do Alzheimer em relação à sua apresentação clínica e à sua fisiopatologia. Segundo o médico, é uma doença multifacetada e pode se apresentar de várias formas, com sintomas que podem ser mais comportamentais (variante comportamental da demência) ou mais relacionados à linguagem (afasia progressiva primária), em que ocorre dificuldades para falar, escrever e compreender ordens simples ou complexas advindas de outras pessoas.

No início, ambas podem se apresentar de maneira parecida. O paciente pode apresentar alguma dificuldade cognitiva sem grande repercussão, pois a doença ainda não se desenvolveu para que o diagnóstico fique mais preciso. Não é incomum que apenas durante o curso da patologia, de sua evolução clínica e da investigação laboratorial que fique discriminada qual o tipo de demência frontotemporal apresentada pelo paciente”, explica o especialista.

Sintomas comportamentais e cognitivos

Os sintomas da demência frontotemporal são alteração do comportamento e de personalidade e, com o decorrer do tempo, podem surgir distúrbios cognitivos. Os sintomas comportamentais se iniciam com um quadro de desinibição, apatia ou falta de engajamento nas atividades diárias, podendo evoluir para um comportamento de impulsividade e comportamentos antissociais, inclusive com episódios de agressividade.

Não é incomum percebermos uma dificuldade para a realização de juízos de valor, ou seja, de julgamentos ou ainda uma inflexibilidade nas atitudes ou ações. É muito comum que o próprio paciente não tenha consciência da doença e dos sintomas que apresenta (anosognosia)”, destaca o médico.

A tendência é que, por ser uma doença degenerativa progressiva, os sintomas se agravem ao longo do tempo, tornando a convivência e os cuidados ainda mais complexos, o que afeta a vida dos familiares e dos cuidadores.

Os sintomas da doença costumam iniciar com maior frequência na faixa dos 50 e dos 60 anos, sendo que 10% dos casos se dão acima dos 70 anos. Tiago Sowmy acrescenta que cerca de 40% dos pacientes diagnosticados têm antecedentes familiares, com alguns tipos de mutações genéticas.

Diagnóstico com tomografia, ressonância e avaliação neuropsicológica

A neurocirurgiã Danielle de Lara, que atua no Hospital Santa Isabel (Blumenau/SC), explica que a DFT afeta mais a personalidade, o comportamento e a função da linguagem, diferente da Doença de Alzheimer, que se caracteriza por afetar inicialmente mais a memória. Como o número de idosos aumenta na maioria dos países, inclusive no Brasil, a demência frontotemporal está se tornando mais frequente.

Danielle relata que o diagnóstico é predominantemente clínico e leva em conta as alterações de comportamento e personalidade do idoso. “São realizados exames de tomografia e ressonância para determinar quais as partes e quanto o cérebro está afetado”, informa.

Tiago indica que o primeiro passo para identificar a doença é a realização de uma investigação ampla que afaste outras patologias que possam explicar os sintomas. Entre os exemplos, ele aponta, estão casos de neurosífilis, doenças hepáticas, doenças metabólicas associadas à disfunção tireoidiana, depressão, transtorno bipolar e até mesmo o uso de drogas e medicações que possam simular os sintomas.

Após essas doenças serem descartadas, o médico responsável poderá realizar um diagnóstico clínico apoiado por exames de imagem que podem mostrar alterações e o surgimento de atrofias nas regiões dos lobos frontal e temporal. Além da ressonância magnética, podem ser utilizados exames de imagem, como o PET e o SPECT, que buscam avaliar não mais a anatomia ou estrutura do cérebro, mas principalmente o seu metabolismo e o seu funcionamento”, destaca o médico.

Para além disso, há ainda trabalhos científicos e pesquisas que podem identificar a presença de proteínas que se relacionam com uma das variantes da demência frontotemporal. Por fim, ainda reforça que há algumas alterações genéticas familiares que podem favorecer a manifestação da doença.

O diagnóstico também se baseia em uma avaliação neuropsicológica, feita por um profissional especializado que consegue mapear os domínios cognitivos mais afetados. A avaliação de todos esses aspectos será determinante para se fazer um diagnóstico mais apurado. Infelizmente ainda não existe um tratamento específico, mas o grande objetivo de um diagnóstico precoce é o controle de sintomas que o paciente possa apresentar, além de descartar doenças potencialmente tratáveis”, finaliza.

Apoio da família é fundamental no tratamento

Já em relação ao tratamento da doença, a neurocirurgiã explica que se baseia em medidas de apoio ao paciente e controle dos sintomas, com apoio de fonoaudiólogos, terapeutas e fisioterapeutas.

O tratamento quase sempre é de suporte ao paciente, ou seja, estímulo diário em um ambiente deve seguro e familiar, reforçando a noção de orientação do paciente. O papel da família também é importante para estimular a prática de exercícios físicos, acompanhada de uma boa alimentação”, conclui a neurocirurgiã.

Carlos Roberto Caron reforça que não existe ainda um tratamento medicamentoso para curar ou reverter efetivamente os sinais e sintomas de uma demência, sendo muito importante que os familiares ou cuidadores do paciente sejam orientados em relação aos cuidados necessários para que a sua qualidade de vida seja mantida da melhor forma possível.

Para o professor, a conscientização sobre a demência e outras condições médicas pode ser um passo importante para ajudar as pessoas a lidar com essas condições. Quando familiares de pessoas famosas – como Bruce Willis e Mauricio Kubrusly – falam abertamente sobre esses problemas, e divulgam os seus diagnósticos, “isso pode ajudar a diminuir os estigmas associados às doenças neurológicas e mentais, incentivando a busca por ajuda e apoio e fomentando a pesquisa em busca de melhores tratamentos”.

Com Assessorias

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