Se você pudesse escolher entre viver com Alzheimer e esquecer-se aos poucos de todos os seus amigos – e até de você mesmo – a morrer mais rapidamente, sem nenhum sofrimento a si próprio ou aos outros. O que você escolheria? Antônio Cícero, poeta e escritor de 79 anos, diagnosticado há pouco mais de um ano com Alzheimer, optou pela eutanásia, o suicídio assistido. O imortal membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) morreu na manhã desta quarta-feira (23), na Suíça,  um dos poucos países do mundo que autoriza o procedimento em caso de doenças incuráveis.

O figurinista Marcelo Pies, com quem o artista conviveu por quatro décadas, contou que Antônio Cícero não revelou para ninguém que planejava sua morte, muito menos desta forma, embora desse claros indícios de sua intenção ao defender inúmeras vezes a eutanásia.

“Ele sempre, sempre defendeu a liberdade de se cometer eutanásia e suicídio assistido. Nisso, ele foi de uma coerência admirável. Por isso, não reagi com tanta surpresa [a esta decisão]”, disse Marcelo ao Globo. Nesta quinta-feira (24/10), o viúvo do escritor trará as cinzas dele para o Brasil.

Apenas Marcelo foi informado da decisão do marido. A irmã do escritor, a cantora Marina Lima, só soube na véspera e ficou inconsolável, mas aceitou a decisão. Antes do dia marcado pata o procedimento, Antônio Cícero passou dois dias com o marido em Paris, onde visitou museus e restaurantes de que tanto gostava e revisitou lugares icônicos.

“Com toda a certeza, foi uma morte digna. Ele morreu em paz, segurando a minha mão, muito tranquilo e sem nenhuma ansiedade. Depois do medicamento, ele dormiu e, em meia hora ou um pouco mais, morreu. O futuro para quem tem Alzheimer é sabido. Ainda não há cura nem tratamento eficaz. Respeitei a decisão dele e o apoiei. Admiro imensamente a coragem e a determinação. Ele sempre apoiou todas as formas de liberdade, e essa foi mais uma”.

Em carta endereçada a amigos e familiares, o poeta escreveu que “estava lúcido bastante” para entender a situação “insuportável” em que se encontrava. “Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi. Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia. Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo”, relatou, sobre os sintomas provocados pelo Alzheimer.

Confira a carta na íntegra do, mais do que nunca, imortal Antônio Cícero:

Queridos amigos,

Encontro-me na Suíça, prestes a praticar eutanásia. O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer. Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem.

Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade.

Apesar de tudo isso, ainda estou lúcido bastante para reconhecer minha terrível situação. A convivência com vocês, meus amigos, era uma das coisas — senão a coisa — mais importante da minha vida. Hoje, do jeito em que me encontro, fico até com vergonha de reencontrá-los. Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo.

Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi. Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia. Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo.

Eu os amo muito e lhes envio muitos beijos e abraços!

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