A violência no Brasil afeta a vida de milhares de crianças, com consequências emocionais, sociais e econômicas de longo prazo e alto custo para os governos. Apenas no primeiro semestre de 2022, foram registradas 122.823 violações contra crianças e adolescentes — cerca de 84% delas cometida por familiares (mãe, pai, madrasta/padrasto ou avós). Outro recorte mostra que, em 2021, um quarto das vítimas de violência tinha menos de 5 anos.

Os dados constam no Working Paper Prevenção da Violência Contra a Criança”, lançado pelo Comitê Científico do Núcleo Ciência Pela Infância (NCPI) e chamam atenção neste Dia Internacional das Crianças Vítimas de Agressão (4/6). Com informações do Disque 100, serviço vinculado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, e do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, a pesquisa apresenta um mapeamento da violência na primeira infância no Brasil e propõe medidas de combate a essas práticas.

Entre os pontos de atenção, a publicação alerta para a violência contra crianças no contexto familiar: um risco real no Brasil, capaz de trazer consequências adversas graves ao desenvolvimento e ao comportamento das crianças.

Figura materna é responsável pela maioria das violações

Segundo dados do Disque 100, em 2021, foram registradas 118.710 violações de direitos de crianças de 0 a 6 anos no Brasil. Em 2022, apenas no primeiro semestre, foram registradas 122.823 violações contra crianças para esta mesma faixa etária — uma média diária de 139 denúncias de violação e de 673 registros de violações tendo crianças na primeira infância como vítimas.

Na maioria dos casos, os agressores eram conhecidos das crianças. Em 2021, 58,7% das violações foram realizadas pela mãe, 17% pelo pai, 5,5% pelo padrasto/madrasta e 3,6% por avós/avôs. No primeiro semestre de 2022, o índice registrado foi de 57% para mães, 18% para os pais, 5% padrasto/madrasta e 4% avós/avôs.

“É importante olhar para a proporção de tempo em que as crianças ficam sob o cuidado de figuras maternas e tratarmos com cuidado o dado sobre a maioria das agressões serem praticadas por essas mulheres”, alerta Maria Beatriz Linhares, coordenadora do estudo. “Ou seja, ao não ponderar o tempo em que a criança fica com cada um de seus cuidadores, a percepção sobre o gênero dos agressores pode indicar maior ocorrência das figuras femininas justamente pela mãe passar mais tempo com a criança”, explica a pesquisadora.

Dados sobre maus-tratos e violência sexual são alarmantes

Maus-tratos (15.127 casos), insubsistência afetiva (13.980 casos), exposição ao risco de saúde (12.636 casos) e tortura psíquica (11.351 casos) foram os principais tipos de violência registrados no primeiro semestre de 2022.

A publicação também traz dados do Anuário Brasileiro de Segurança. Houve aumento nas taxas em todos os crimes registrados, sobretudo abandono de incapaz e maus-tratos. De 2020 a 2021 as taxas de abandono de crianças e adolescentes de 0 a 17 anos, aumentaram de 13,4% para 14,9%. O abandono de incapaz se caracteriza não apenas pela criança deixada sozinha, mas também pela negligência em cuidados básicos, como saúde e educação.

Os índices de maus-tratos subiram de 29,8% para 36,1%. Dentro desse recorte, 62% das crianças e adolescentes vítimas de maus-tratos têm entre 0 e 9 anos e 26% possuem entre 0 e 4 anos. Outro dado alarmante se refere à violência sexual: 61,3% do total de estupros são de vulneráveis (0 a 13 anos). Desses, 19,1% das vítimas estão concentradas na faixa de 5 a 9 anos e 10,5% na faixa de 0 a 4 anos.

Em relação ao perfil das vítimas de morte violenta intencional (MVI) com idade entre 0 e 11 anos, nota-se o predomínio de meninos e de vítimas de raça negra: entre os índices registrados em 2021 nessa faixa etária, 58,2% eram meninos e 66,3% negros.

Danos à saúde física e mental das crianças

Segundo Maria Beatriz Linhares, que é professora associada sênior do Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), a violência contra a criança no ambiente familiar tem impacto negativo a curto, médio e longo prazos na saúde física e mental das vítimas e em suas práticas parentais futuras, o que pode levar a um ciclo intergeracional da violência. “É preciso quebrar esse ciclo”, diz a coordenadora do estudo.

Segundo ela, crianças expostas à violência estão submetidas a situações de estresse tóxico. Isso provoca alterações fisiológicas e psicológicas que podem interferir no funcionamento do sistema nervoso central em áreas relacionadas à memória, ao aprendizado, às emoções e ao sistema imunológico. “Tais alterações podem trazer prejuízos que persistem até a vida adulta, contribuindo, inclusive, para o surgimento de doenças crônicas”, explica Maria Beatriz Linhares.

Além disso, a situação pode gerar agressividade, problemas de atenção, hipervigilância, ansiedade, depressão, problemas de adaptação escolar e problemas psiquiátricos como fobia e estresse pós-traumático. “A violência representa um fator de caos no desenvolvimento infantil na medida em que provoca uma grande instabilidade estrutural e funcional permeada por conflitos e brigas, entre outras adversidades”, acrescenta.

Programas de intervenção focados na parentalidade

Para minimizar a ocorrência da violência contra as crianças, a pesquisadora defende a implementação de programas de intervenção centrados na parentalidade. “Essas intervenções ajudam a prevenir a violência contra crianças na medida em que aumentam a compreensão dos cuidadores sobre o desenvolvimento infantil, diminuem o estresse parental e melhoram as práticas parentais com estratégias de disciplina positiva”, comenta.

Segundo Maria Beatriz, esses programas ainda reduzem os impactos da coerção e os problemas de comportamento das crianças. Além disso, eles ajudam a promover o desenvolvimento infantil nos primeiros anos de idade, e a quebrar o ciclo intergeracional da violência.

“Pesquisas indicam que independentemente do histórico de violência na infância, as mães que participam de um programa de parentalidade apresentam melhora nas práticas parentais”, completa.

Garantir equidade de oportunidades para reduzir ou eliminar desigualdades, fortalecer políticas públicas intersetoriais já existentes, buscar soluções com urgência para o problema da violência contra crianças, prevenir novos casos e manter um sistema atualizado de dados sobre notificação de casos de violência contra crianças nos âmbitos federal, estadual e municipal, separando por faixa etária, são outros exemplos de medidas que podem ser aplicadas.

Confira essas e outras informações em Prevenção da Violência Contra a Criança.

Crianças e adolescentes são maioria de denúncias de abusos sexual

Profissional de saúde deve priorizar acolhimento de crianças e adolescentes vítimas de abuso

Segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, neste mesmo período de 2022, 7.477 denúncias de estupro foram feitas à Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos. Desse total, 5.881 são crianças ou adolescentes. Em maio, a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) fez um alerta aos problemas causados pelo abuso sexual de crianças e adolescentes.

“É consenso entre especialistas que entre as consequências de abusos na infância e na adolescência estão a impossibilidade de assumir uma vida adulta saudável, dificuldade no desenvolvimento afetivo, transtorno pós-traumático, depressão e suicídio. Nesse sentido, é necessário um cuidado e suporte às vítimas e aos seus familiares”, afirmou a federação.

O presidente da Comissão Nacional Especializada em Violência Sexual e Interrupção Gestacional Prevista em Lei da Febrasgo, Robinson Dias de Medeiros, diz que são várias as barreiras que os responsáveis e as vítimas encontram ao buscar atendimento de assistência à saúde.

“Muitas dessas barreiras estão atreladas à complexidade que envolve a questão da violência sexual”, enfatiza. “Nos casos que envolvem vulneráveis, temos desde a falta de autonomia e dependência de outras pessoas para obter ajuda e assistência até a completa falta de informação e despreparo das equipes profissionais para prover atendimento integral e reduzir danos”, elucida.

Profissional de saúde como ponto focal

Sobre o papel do profissional da saúde neste contexto, o médico pontua que “em primeiro lugar, o profissional deve priorizar o acolhimento da vítima e sua família, procurando tratar os agravos à saúde decorrentes da agressão sexual, incluindo a profilaxia e tratamento das doenças sexualmente transmissíveis e infecção pelo HIV”.

Ele reforça ainda que a prevenção da gravidez indesejada decorrente do estupro, no caso das meninas e mulheres é ponto fundamental neste acolhimento. Em seguida, segundo o médico, é essencial promover as informações sobre direitos da vítima, o seguimento ambulatorial e o suporte psicológico necessário, bem como a comunicação ao Conselho Tutelar e a notificação compulsória.

“No momento, há diversas ações em construção dentro da Política de Atenção Integral à Mulher e à Criança do Ministério da Saúde”, expõe o presidente da Comissão da Febrasgo sobre atualizações de políticas públicas para este cenário em andamento.

Com Assessorias

 

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