De um lado, a indústria do cigarro, que sofreu perdas nos últimos anos. De outro, a comunidade médica, que alerta para os riscos do cigarro para a saúde. Estava previsto para esta quinta-feira (17) o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) da Ação Direta de Inconstitucionalidade movida pela CNI (Confederação Nacional de Indústria) contra a proibição do uso de aditivos em produtos derivados do tabaco no Brasil, determinada em 2012 pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Também nesta quinta, a Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS) divulgou uma nota defendendo a medida de evitar os aditivos, que, argumenta, podem modificar o sabor e o cheiro de cigarros, tornando-os mais atrativos, principalmente para os jovens. Para a OPAS/OMS, a permissão dos aditivos em cigarros seria um retrocesso nas ações para o controle do tabagismo no Brasil, o primeiro país no mundo a proibir o uso desses aditivos.
Em 2012, uma resolução da Anvisa vetou a adição de substâncias que mascarem o sabor e aroma do cigarro, sob a justificativa de que a prática poderia incentivar a iniciação de jovens no tabagismo. “Nos anos seguintes, pelo menos 33 outros países baniram produtos de tabaco com flavorizantes. Retroceder nessa medida pode atrapalhar a bem-sucedida trajetória brasileira na redução do número de pessoas que fumam”, diz a nota.
A proibição, no entanto, nunca chegou a ser posta em prática efetivamente no Brasil. Em 2013, a ministra do STF Rosa Weber concedeu uma liminar suspendendo os efeitos da resolução, pouco antes de a norma entrar em vigor. A CNI aponta, na ação, uma série de problemas na decisão da Anvisa, entre eles, o argumento, considerado genérico pela confederação, de que a venda de produtos com aditivos poderia provocar risco iminente à saúde.
A OPAS/OMS classifica a decisão da Anvisa de proibir os aditivos como “comprovadamente adequada aos propósitos de defesa da saúde pública”. Afirma ainda que ela está alinhada às determinações descritas nas diretrizes na regulamentação da Convenção Quadro do Tabaco, um acordo mundial, ratificado pelo Brasil, com medidas para prevenção e controle do tabagismo no mundo. As posições são norteadas pelas diretrizes dos acordos internacionais, sustentadas por argumentos científicos e por experiências bem-sucedidas. “Não cabe ao organismo internacional opinar sobre competência jurídica”, informa o texto.
Pneumologista alerta para riscos
De acordo com a pneumologista Penha Uchôa Sales, coordenadora da Comissão de Tabagismo da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), o cigarro com sabor representa um grande risco à saúde coletiva porque seduz o jovem a querer experimentar produtos que são comprovadamente nocivos ao organismo. “Enquanto se espera este julgamento, há cinco anos, foram registrados cerca de 1900% novos sabores de cigarro, de 2012 a 2016”, alerta a médica.
Além da questão do sabor, a indústria do fumo tem diversificado as formas de consumo da nicotina para atrair novos consumidores. É o caso do cigarro eletrônico, cigarro aquecido e demais opções, que levam o usuário a acreditar no mito de que esses produtos são menos perigosos para a saúde e que podem ajudar a parar de fumar.
Os pneumologistas alertam que não existem maneiras seguras de consumo dos derivados do tabaco. São mais de 4.700 substâncias químicas associadas a diversos tipos de doenças pulmonares, cardiovasculares e câncer, além de causar séria dependência física, psicológica e comportamental. E lembram que os dispositivos eletrônicos para fumar, que incluem os cigarros eletrônicos e aquecidos, estão proibidos no Brasil, com base em resolução de 2009 da Anvisa (RDC 46/2009).
Pneumologistas da Sociedade de Pneumologia e Tisiologia do Estado do Rio (Sopterj) aguardam, apreensivos, o julgamento da validação ou não da resolução 14/2012 da Anvisa. E já se preparam para um protesto no Dia Nacional de Combate ao Fumo (29 de agosto), caso o STF decida a favor da indústria. “Se 31 de maio foi comemorado o Dia Mundial sem Tabaco com dados de redução de consumo, esse mês, o Dia Nacional de Combate ao Fumo pode ser marcado por protesto dos pneumologistas em todo Brasil, caso a Anvisa sofra perda de autoridade nesse caso”, prevê Gilmar Zonzin, presidente da Sopterj.
A preocupação da Sopterj é que, além da revogação das regras impostas pela Agência, a CNI pede, ainda, que seja declarada a inconstitucionalidade de parte da lei que criou a Anvisa, principalmente devido ao marco regulatório de criação da Agência Sanitária Brasileira, o que lhe confere poder para regular, fiscalizar e proibir a comercialização de produtos que violem a legislação ou possam causar riscos à saúde do cidadão.
Cigarro eletrônico se expande
Até 2012, antes da resolução da Anvisa o mercado tabagista registrava cerca 60 novos tipos de cigarros no Brasil. Depois essa quantidade foi reduzida drasticamente. A partir de 214, quando o STF suspendeu as regras da Anvisa, 67 novos produtos entraram no mercado. Hoje já são mais de 90. Eles prometem conter menos nicotina e substâncias tóxicas, o que é contestado pela comunidade médica. As variações de cigarro eletrônico apenas minimizam danos e tem o poder de aumentar o número de adeptos ao fumo, novamente. Para os médicos e a Anvisa, será um retrocesso.
Na Ásia e na Europa as novas modalidades de cigarro eletrônico vêm ganhando terreno. Por isso, a Associação Médica Brasileira (AMB) enviou à Anvisa, no mês passado, uma carta reiterando a extrema necessidade de se manter a resolução 46/2009 contra a liberação dos dispositivos eletrônicos para vaporizar a nicotina (cigarros eletrônicos e cigarros aquecidos).
O pneumologista Alberto José de Araújo, especialista no assunto, integrante do Instituto de Doenças do Tórax da UFRJ e responsável pela Comissão de Tabagismo da SOPTERJ não esconde sua preocupação: “Não há evidências científicas conclusivas que sustentem a defesa dos dispositivos eletrônicos que liberam nicotina para consumo de nossa população. A eventual liberação desses produtos põe em risco uma trajetória bem-sucedida de redução do tabagismo no Brasil”. Ele lembra que as outras substâncias tóxicas do cigarro tradicional também continuam presentes nas novas modalidades e vão continuar causando danos à saúde das pessoas.
Ex-fumante é contra liberação
A advogada criminalista Vera Smitz foi fumante durante 40 anos de cigarro comum e aromatizado com sabor. Na tentativa de parar de fumar, depois de ouvir de um médico que se continuasse teria pouco tempo de vida, investiu nos cigarros eletrônicos. O que não adiantou. Ela parou há cinco anos depois de um tratamento. Para Vera a comunidade médica é de grande importância nesse momento no combate ao cigarro, informando os males e os custos da pessoa e do sistema de saúde com as doenças.
“O sistema de saúde não tem estrutura nem para tratar doenças simples, que dirá as doenças provocadas pelo cigarro, que são graves. O custo recai sobre a saúde pública e a população sofre por falta de recursos, enquanto a indústria de cigarros ganha bilhões. Ainda tem o custo de quem fuma. Eu gastava uns R$600 por mês. Depois passei para os cigarros eletrônicos que eram caros e prometiam ajudar a parar de fumar, mas não funcionou”, encerra Vera Smitz.
Ações reduziram prevalência de fumantes
A maioria dos fumantes começa a consumir produtos de tabaco antes dos 18 anos de idade, o que torna esse público estrategicamente importante para a indústria do tabaco. Um estudo realizado em 2014 nos Estados Unidos demonstrou que 73% dos estudantes da high school (equivalente no Brasil ao Ensino Médio) e 53% dos alunos da middle school (equivalente ao Ensino Fundamental) que haviam consumido derivados de tabaco nos últimos 30 dias, usaram produtos com sabor.
Segundo pesquisa do Ministério de Saúde o número de fumantes vem caindo ano a ano. Hoje, os dados mais recentes registramque nas grandes cidades o índice está na média de 10,2% de fumantes. Atualmente, o Brasil figura como um dos países que têm implementado as principais medidas de controle de tabaco e com isso reduzido a prevalência de fumantes. Em 1989, pesquisas realizadas no país mostraram que a prevalência de fumantes na população com 18 anos ou mais era de 34,8%. Em 2008, esse índice caiu para 18,5%. Em 2013, a prevalência continuou em queda: 14,7%. Isso significa uma redução de mais de 50% em 24 anos.
Cenário mundial
De acordo com a Opas/OMS, diretrizes parciais aprovadas por consenso durante a 4ª Conferência das Partes (COP) em 2010 determinam que a regulamentação dos ingredientes destina-se a reduzir a atratividade dos produtos de tabaco podendo, assim, contribuir para diminuir a prevalência do seu uso e a dependência entre usuários novos e contínuos.
Recomenda-se aos países que regulamentem, proíbam ou restrinjam colorantes e ingredientes que possam ser usados para melhorar o gosto ou criar a impressão de que sejam positivos para a saúde. O mesmo vale para ingredientes que estejam associados à energia e vitalidade.
“Vários países já adotaram medidas para regulamentar a adição desses agentes, como Austrália, Canadá, Estados Unidos, França, Singapura e Tailândia. Na América Latina, a Costa Rica, o Equador, o Panamá e o Uruguai já estão empenhados na regulamentação dos produtos de tabaco e avançam nos processos institucionais necessários para isso”, informa ainda a nota da Opas/OMS.
Fonte: OPAS/OMS, SBPT e Sopterj, com redação