É isso mesmo o que você leu neste título: a cada cinco minutos, três pessoas morrem, vítimas de quem jurou um dia defender o direito à vida. A estimativa assustadora sobre erros médicos cometidos no Brasil levanta uma questão sensível e ainda considerada um tabu na área de saúde. Nenhum dinheiro vai trazer de volta a vida de um ente querido. Mas e se fosse um parente seu? Você entraria na Justiça?
Eu desisti de processar o “assassino” do meu pai, que estaria completando 75 anos hoje. José Jesus de Macedo, o Seu Zezinho, da foto ao lado, se foi aos 51 anos, vítima de um erro médico em Itaperuna, no Noroeste do Estado do Rio de Janeiro. Estava forte e saudável quando foi orientado pelo seu médico de confiança a fazer uma cirurgia para retirada de uma pedra no rim. Mas pegou uma infecção hospitalar e, mesmo assim, recebeu alta.
O médico mandou “dar comida pra ele” porque estava de “pirraça” e não queria comer. Mas como alguém com o corpo tomado por uma infecção generalizada pode ter algum apetite? Com a enorme incisão que não cicatrizava e minava pus, qualquer leigo à distância identificaria que havia algo mais grave ali.
Meu pai emagreceu 20 quilos em menos de 10 dias. E quando foi, enfim, levado para outro hospital já estava fazendo confusão mental e foi diagnosticado o quadro de septicemia, do qual veio a falecer exatamente 100 dias após se submeter às mãos negligentes daquele em quem confiava. A sepse, aliás, é um dos maiores responsáveis pela grande quantidade de mortes nas UTIs brasileiras.
Foram 100 dias vendo meu pai agonizar. Chegou a ter aquele chamada “melhora da morte”. Até andou pelos corredores do hospital. Um milagre, dizia um médico, amigo da família. Eu confiei que ele sairia daquela, mas a maldita infeccção não cedia. E ele não resistiu, sofrendo um choque séptico.
A falha no diagnóstico até mesmo a equipe médica que tentou socorrê-lo em outro hospital chegou a admitir. Mas uma tia trabalhava no local e a maioria dos meus parentes morava – e ainda mora – na cidade que é conhecida pelos excelentes serviços médicos que presta. E mais em respeito a ela, ouvi a turma do “deixa disso”. E abri mão de ir até as últimas consequências para ver aquele médico não pagar monetariamente pelo que fez porque a vida do meu pai jamais teria preço, mas impedi-lo de privar outras famílias do convívio de seus entes queridos.
829 brasileiros morrem diariamente por erro médico
Os números ainda são bastante nebulosos, o que prejudica inclusive identificar se um determinado médico já cometeu alguma falha grave. Mas uma das poucas pesquisas realizadas nos últimos anos comprova em números o que todo brasileiro já sabe: muitos erros médicos são cometidos por aqui.
Segundo o mais recente Anuário da Segurança Assistencial Hospitalar no Brasil, realizado pelo IESS (Instituto de Estudos de Saúde Suplementar) em parceria com a Faculdade de Medicina da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), 829 brasileiros morrem diariamente em hospitais públicos e privados por algum tipo de falha médica, número equivalente à impressionante marca de três mortes a cada cinco minutos.
Tocar o dedo nessa ferida ainda é um tabu no meio médico. E, infelizmente, ainda conta com a anuência e o silêncio irresponsável de entidades de classe em nome da ética médica (ou seria corporativismo?).
Apenas 2.186 punidos: 96% continuam exercendo a Medicina
O estudo foi realizado no final de 2017. No ano anterior, o número de mortos chegou a 302.610. Em paralelo, de 2010 a 2017, o Conselho Federal de Medicina puniu apenas 2.186 médicos. No entanto, 59% das punições foram sigilosas e 96,3% dos punidos continuaram a exercer a Medicina. Ou seja, a despeito da gravidade das falhas, as punições têm sido, no mínimo, frágeis e desproporcionais.
Mas como proceder quando se é vítima de um erro médico? A quem recorrer? O que de fato caracteriza um erro médico? Procedimentos com fins estéticos, como cirurgias plásticas, podem ser enquadrados como erro médico caso o resultado alcançado não tenha sido o planejado? Essas e outras questões são detalhadas pelo advogado especializado em Direito Médico e da Saúde, Caio Guimarães Fernandes.
Segundo ele, embora os dados não demonstrem, a lei brasileira é bastante clara com relação aos deveres dos médicos e instituições e direitos dos pacientes que, de alguma maneira, sofrem algum tipo de erro médico.
Acredito que muitas pessoas deixem de buscar reparação pelos danos sofridos, não pelo fato de desconhecerem seus direitos, mas por não acreditarem na eficiência da Justiça. Pensam em toda morosidade que um processo pode ter, na ideia do médico, mesmo sendo um mau profissional, continuar intocável, e por consequência desistem de buscar seus direitos”, afirma o advogado, que é sócio fundador da Bonnato & Guimarães Fernandes Advogados Associados.
Passo a passo para decidir se processa ou não
O especialista explica que o trabalho, em um primeiro momento, é voltado para organizar e avaliar de maneira prática e clara as informações trazidas pelo cliente, para ter condições de efetivamente verificar se houve a má prestação do serviço médico ou hospitalar. “Desta forma, nosso trabalho traz benefícios em uma via de mão dupla, pois garantem a reparação daquelas pessoas que foram lesadas por esta conduta, assim como valoriza o bom profissional da área da saúde, que atua sempre alinhado com os princípios éticos-legais decorrentes da prática da medicina”, diz.
Diante da complexidade do assunto, o advogado Caio Fernandes listou cinco tópicos que todo cidadão deve saber sobre erro médico. É um serviço de utilidade pública que esperamos – de coração – que você não precise nunca usar, mas é bom ficar consciente e de seus direitos. Afinal, ninguém, nem mesmo um médico que se acha Deus, tem o direito de tirar uma vida humana.
1 O que é um erro médico?
É um ato praticado pelo médico no exercício de sua função que causa danos à pessoa. Para caracterizá-lo é preciso identificar, inicialmente, se a obrigação do profissional era de meio ou de resultado, pois essa análise é fundamental para o desdobramento da apuração de eventual problema na conduta do profissional da área da saúde. “A obrigação de meio é aquela em que o médico é impossibilitado de garantir o resultado. Ele irá empenhar todo o seu conhecimento e melhor técnica para tentar chegar à ‘cura’ do paciente. Já a obrigação de resultado se dá quando o médico garante o resultado, por exemplo, nos casos de intervenções estéticas, cirurgias plásticas, etc.”, explica o advogado.
Caso a obrigação seja de meio, deve ser apurada a culpa do médico, isto é, verificar se houve negligência, imprudência ou imperícia na sua atuação. É a chamada responsabilidade subjetiva. Nos casos das obrigações médicas de resultado não haverá a necessidade de verificar a culpa deste, pois ele está obrigado a entregar o resultado prometido. Qualquer resultado diverso do esperado deverá ser reparado, tratando-se aqui de responsabilidade objetiva.
“O médico deverá ser responsabilizado em outras situações, como por exemplo não informar o paciente dos possíveis resultados negativos que a intervenção pode ocasionar. A questão é que essas informações afetam diretamente na decisão do paciente de se submeter de livre e espontânea vontade ao tratamento ou cirurgia”, informa o especialista. “O profissional também deverá indenizar o paciente quando agir de forma contrária à vontade manifestada do paciente, como, por exemplo, o paciente não querer realizar um procedimento de uma determinada maneira e o médico, desrespeitando a sua vontade, realiza-o mesmo assim”, completa.
2 Quais são os tipos de erros médicos que existem e como enquadrá-los?
Existem três tipos de erros médicos: erro de diagnóstico, erro de procedimento ou erro no procedimento. “O diagnóstico é equivocado quando destoa da realidade do paciente. Ele irá direcionar equivocadamente o procedimento ou tratamento que, embora executado com correção, não produzirá o efeito desejado, pois o diagnóstico da doença foi equivocado”, explica o advogado. Erro no procedimento escolhido é quando se acerta o diagnóstico mas se erra no tratamento sugerido. “É falha no tratamento em si, na intervenção invasiva na medicação prescrita”. Já o erro no procedimento significa que o diagnóstico foi correto, o procedimento escolhido também é o adequado, mas houve falha ou má execução do profissional durante a aplicação desse procedimento. “Como, por exemplo, fazer intervenção cirúrgica no joelho errado, perfurar um órgão durante a cirurgia, fazer sutura inadequada causadora de sangramento, entre outros”, pontua Fernandes.
3 Quem responde por um erro médico? O médico? O Hospital? O Plano de Saúde?
É possível que tanto o médico, como o hospital e o plano de saúde respondam individual ou solidariamente pelo erro praticado pelo médico. As instituições respondem quando há vínculo e a responsabilidade se divide por uma série de circunstâncias, como, por exemplo, o atendimento ter ocorrido via plano de saúde em hospital credenciado ou a falha ter relação com os três agentes envolvidos. No entanto, a depender do caso, é possível que ainda nessas situações a responsabilidade seja individualizada, não só em situação de dano como até de falecimento do paciente.
“A exemplo, podemos ter causas em que a responsabilidade saia da esfera de atuação do próprio médico, como são os casos da Infecção hospitalar, acomodações sem condições de uso, instrumentos inadequados, má prestação de serviço de enfermagem, má prestação de serviço na hotelaria ou dano resultado de atitudes de omissão médica são algumas das possibilidades mais recorrentes”, informa. “Vale ressaltar que hospitais e planos de saúde somente respondem caso haja a comprovação de dano efetivo causado pelo médico, mas podem ingressar com uma ação contra o médico para reaver eventuais valores pagos ao paciente lesado pela atitude do profissional”, detalha o advogado.
4 Prontuário médico é do paciente
Pouca gente sabe, mas o paciente tem acesso irrestrito ao seu prontuário médico, que pode ser usado como prova em caso de erro médico. “O ideal é que o paciente busque um advogado especializado com domínio técnico sobre a matéria para um atendimento ágil e personalizado. E um dos documentos que sem dúvida ele vai precisar é o prontuário médico. É bom que o paciente saiba que ele pode acessá-lo quando quiser, nenhum médico ou instituição pode impedi-lo de analisar o material ou tê-lo consigo”, explica Caio.
5 O que a lei prevê de direito no caso comprovado de erro médico?
A lei prevê que haja reparação integral do dano, seja ele material (valores gastos, que serão gastos e que se deixou de ganhar por causa desta conduta lesiva do profissional da saúde), dano moral (caso haja a lesão à integridade moral do paciente) e danos estéticos (que importam não necessariamente na diminuição da beleza do indivíduo, mas sim na deformidade causada à integridade física do paciente em comparação ao corpo antes da intervenção. Ou seja, os danos estéticos visam reparar a lesão à integridade física do indivíduo).