Até que ponto pode ir o desespero de uma pessoa na busca pela cura? Até vender tudo o que tem e tentar um tratamento caro e sem eficácia comprovada em outro país? Um caso investigado pelo Fantástico deste domingo (16/7) acende o alerta para tratamentos sem a devida comprovação científica que são oferecidos a pacientes de doenças crônicas ou incuráveis.

Desta vez, o alvo são pacientes brasileiros de doenças como câncer, alzheimer, parkinson e outras doenças graves que recorrem a uma clínica na Flórida (EUA), onde um médico brasileiro oferece um tratamento sem eficácia garantida. Por cada sessão, de cerca de duas a três horas, pacientes chegam a desembolsar cerca de R$ 200 mil.

Marcio Aurélio Martins Abreu, um oftalmologista formado em1985 na Escola Paulista de Medicina, em São Paulo, que mudou o nome para Marc Abreu, anunciou em abril de 2023, durante reunião anual da Sociedade de Medicina Termal dos EUA, realizada em San Diego, Califórnia, que teria obtido a cura de um câncer de próstata, o que teve muita repercussão no Brasil.

“Meu paciente Scott, depois de dois anos, está com remissão completa de um câncer de próstata de estágio quatro”, disse o médico, que usou a mesma “tecnologia” que ele criou e aplica em seus pacientes com doenças neurodegenerativas.

Conforme a notícia publicada no site do canal de TV por assinatura CNN Brasil no dia 26 de abril, o paciente americano diagnosticado com câncer de próstata em estágio terminal tinha expectativa de vida de apenas quatro meses. O mesmo médico já tinha aparecido na TV brasileira promovendo um tratamento térmico para Alzheimer, Parkinson e outras doenças neurológicas.

Marc Abreu é apresentado como pesquisador da Universidade de Yale e como inventor de um equipamento aprovado pela FDA, a Agência de Saúde Americana. A tecnologia é chamada de “túnel térmico cerebral” (BTT, na sigla em inglês), que dá nome ao instituto que ele criou nos EUA, onde trata pacientes do mundo todo.

Túnel térmico cerebral nunca foi publicado em artigo científico

Fantástico foi até a cidade de Aventura, na Flórida, conhecer o tratamento de Marc Abreu. As pessoas que vão em busca da cura tiram sangue, passam por testes cognitivos, provas de força e, depois, o tubo de calor.

O túnel seria uma espécie de ligação que vai desde o cérebro até uma pele bem fininha entre o olho e o nariz. Então, medindo a temperatura dessa pele, daria para saber a temperatura cerebral, e sem colocar um termômetro no cérebro, o que seria muito invasivo.

Um termômetro para medir externamente a temperatura do cérebro: uma invenção que parecia útil, a partir de um achado científico que parecia importante. Mas tem um detalhe: a “descoberta” ficou nisso  – na notícia que saiu no site da Universidade de Yale, há 20 anos, e na repercussão que teve na imprensa brasileira. 

Segundo a reportagem do Fantástico, até hoje, a descoberta nunca foi publicada numa revista científica. E, para o mundo da Ciência, se não publicou, não existe.

No caso da “descoberta” do “túnel térmico cerebral”, por exemplo, Marc Abreu só apresenta um texto, de 2020, 17 anos depois do anúncio do “túnel”. Não é um artigo científico, não passou pela avaliação de outros pesquisadores, nem foi aceito por nenhuma revista.

Ainda segundo o Fantástico, nos 16 anos que passou em Yale, de 2000 a 2016, Marc Abreu não teve nenhum trabalho publicado. O médico só publicou quatro artigos na vida. E todos antes da história do túnel, antes de trabalhar na renomada Universidade, quando era instrutor clínico em Harvard, uma espécie de monitor de alunos que estão nos últimos anos do curso de Medicina.

Mesmo sem publicar nada, segundo o Fantástico, Marc Abreu foi além. Passou a usar o equipamento que ele inventou — aprovado pela FDA como termômetro para outra coisa – para supostamente “induzir” sinais no cérebro. Tudo acoplado a um tubo superaquecido, com o objetivo de atrair doentes muito graves, desesperados.

Segundo Marc Abreu, o tratamento serviria para ativar um tipo especial de proteína: as proteínas de choque térmico. Para saber se o tratamento funciona mesmo seria preciso acompanhar o paciente depois de ele voltar pra casa. “Mas o doutor Marc nunca fazia isso”, diz a reportagem.

Pacientes vendem casa, carro, fazem vaquinhas

Em aplicativos de mensagens e redes sociais existem muitos relatos de tratamentos inúteis com o doutor Marc. E de gente que vendeu casa, carro, fez vaquinhas, pediu empréstimos, viajou pra clínica e não teve resultado. Em cinco dias na clínica, ouvindo as explicações confusas do doutor Marc, foi impossível entender como funciona o “tratamento”.

O cientista Dario Rodrigues, que presidiu a sessão em que o médico brasileiro anunciou a suposta cura de câncer, afirma que, no evento na Califórnia, ninguém percebeu muito bem qual era a técnica proposta por Marc Abreu. O pesquisador destaca também que as informações apresentadas são muito superficiais e não provavam que o câncer tinha sido curado e, mesmo que provassem, seria só um caso.

“Tem que ser feito um estudo com vários pacientes. Normalmente, a primeira fase de estudos clínicos tipo 5, 10 pacientes, talvez 20 pacientes em que os primeiros vão ser avaliados só para segurança”, afirma Dario Rodrigues.

O Doutor Marc nunca fez nada disso: não desenvolveu estudos prévios de segurança nem tem dados que reúnam um grande número de pacientes – o chamado estudo clínico. Assim, restam casos isolados, que, cientificamente, não comprovam nada.

Quem é Marc Abreu, oftalmologista que criou método que oferece cura para várias doenças?

O médico diz que aplica o tratamento no tubo há sete anos, tempo que seria mais do que suficiente pra fazer um ensaio clínico. Mas enquanto isso não acontece –e se é que vai acontecer–, ele fica relatando casos isolados, sem valor científico.

Para tratamentos que anunciam uma suposta cura milagrosa, os cientistas sempre lembram: “No que diz respeito ao contexto científico, não, não, não é significativo”, ressalta Dario.

“Na Flórida, Marc Abreu segue atuando nas sombras da medicina, sem reconhecimento da comunidade científica, cobrando caro e apostando na dúvida e no desespero dos pacientes”, conclui a reportagem.

G1, com Redação

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4 Comments
  • Eliane
    Eliane
    17 de julho de 2023 at 12:25

    O jornalismo sério é fonte de boa informação, essencial para tomadas de decisão seguras.

    Reply

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