Uma operação da Polícia Civil do Rio de Janeiro coloca em xeque uma das mais tradicionais ações voluntárias em benefício de pacientes de câncer de mama no Brasil – e também uma das mais conhecidas ONGs em defesa de mulheres que sofrem com a doença, a Fundação Laço Rosa. Gleice Milesi da Cunha foi presa preventivamente na semana passada, acusada de chefiar uma quadrilha que faz comércio ilegal de cabelo para fabricação de perucas que seriam usadas durante a fase de tratamento quimioterápico.
Ela se escondia em um motel no Rio e foi denunciada por Denildes de Palhano, uma paciente que desconfiou do esquema por trás das ações promovidas pela Laço Rosa, ONG com sede no Rio que promove diversas ações durante a campanha mundial Outubro Rosa. Uma reportagem do Fantástico deste domingo (26/4) revelou o esquema milionário que se aproveitava da boa intenção de milhares de pessoas que doavam cabelos, acreditando que estes ajudariam a recuperar a autoestima das pacientes.
Denildes teve câncer de mama em 2005 e, depois de curada, passou a participar de grupos de apoio a mulheres com a doença. Em 2009, começou a estranhar que muita gente doava cabelos, mas poucas pessoas recebiam perucas. Foi então até a Laço Rosa, questionou, pegou o próprio cabelo que havia doado de volta e resolveu investigar o sumiço das doações.
Ela descobriu que os cabelos iam parar nas mãos de Gleice Milesi, que deveria confeccionar as perucas. Tempos depois, ao ser apresentada como namorada de um amigo, Gleice teria lhe confessado os desvios. “Ela confessou sentada na minha frente. Falei para ela ‘parou a palhaçada’. ‘Eu sei quem é você, você é chefe de uma quadrilha. Eu vou prender você’”, contou na entrevista ao ‘Fantástico’.
Segundo a policia, Gleice montou um negócio milionário a partir das doações para doentes de câncer: abriu uma fábrica, quatro lojas e começou a vender também pela internet. De acordo com as investigações, na Laço Rosa, o cabelo era separado e entregue para Gleice, que até fazia algumas perucas, mas a maior parte das doações, ficava com ela pra ver vendida. Foi assim que Gleice Milesi expandiu os negócios e criou um rede de venda de cabelo humano, a marca Di Milesi, com representação até em Miami.
“Levantamos até 10 empresas envolvidas com o nome dela e com nome de familiares. Todos fazendo parte dessa quadrilha inclusive com remessas desse material de cabelo humano para o exterior”, diz o delegado à frente do caso. Em uma operação esta semana, a polícia foi a 13 endereços para localizar Gleice, conseguiu apreender mais de meia tonelada de cabelo.
Na fábrica de Gleice, chamada de Fundação Terapia da Mulher, no Recreio, Zona Oeste do Rio, a polícia disse que não foi encontrada nenhuma peruca para doação, tudo estava etiquetado para venda. Nas lojas, os produtos não tinham nota fiscal e nem documentos que comprovassem a origem dos produtos. Algumas mechas tinham etiqueta cujo preço por quilo apontava o valor de R$ 8,7 mil.
“É humanamente impossível esquecer quem está ganhando dinheiro em cima de uma doença”, disse Denilde, que teve que parar sua investigação por causa da volta do câncer de mama. “O único medo que eu tenho é das pessoas pararem de doar por causa de pessoas que não são sérias. Tem muita ONG séria e muita gente séria”, comentou ela, depois de ver Gleice presa.
ONG sabia dos desvios, diz polícia
Em depoimento aos policiais, Gleice Milesi disse que há cerca de cinco anos começou a trabalhar com a Fundação Laço Rosa, mas que atualmente se reportava diretamente a Patrícia do Carmo Bullé, gerente de relações institucionais da ONG. Segundo ela, Patrícia lhe fornecia os cabelos humanos doados e que existia um contrato iniciado em 2016. A cada quilo, duas perucas são doadas à Laço Rosa e uma peruca fica com a declarante, como forma de contraprestação, ou seja, de pagamento pelo serviço.
Patricia também é alvo da investigação. Em depoimento, ela disse que não havia documentado a quantidade de perucas que já foram entregues para as pacientes. A sede da Laço Rosa estava fechada no dia da operação e na casa da presidente da ONG, Marcelle de Medeiros, a polícia encontrou R$ 45 mil, cuja origem não foi comprovada. Marcelle disse que tinha vendido um carro, mas não apresentou nenhum documento.
A presidente da ONG disse à polícia que um terço do cabelo fornecido a Gleice para a fabricação de perucas permanecia com ela como forma de pagamento, que não sabia dizer se recentemente receberam alguma remessa de perucas fabricadas por Gleice e que a informação de que parte do cabelo doado à Laço Rosa fica com o fabricante como forma de pagamento não é divulgada e os doadores não tem conhecimento sobre isso.”
Gleice está em prisão preventiva e, segundo o promotor que acompanha o caso, vai responder pelo crime de associação criminosa e mais. “Fraude no comércio e o crime contra o consumidor, que é omitir informação relevante sobre o produto omitir ao consumidor a informação”, explica. A Polícia ainda está apurando quanto dinheiro a organização de Gleice movimentou.
“Já apuramos mais de cinco imóveis sendo comercializados. Imóvel com valor de mais de R$ 2 milhões de reais na orla do Rio de Janeiro. É bom enfatizar que é necessária a doação para as pessoas precisam receber os cabelos. Então de forma alguma que seja interrompida essa doação”, diz o delegado.
Presidente da Laço Rosa nega participação
Em nota nas redes sociais, também enviada à imprensa, a Laço Rosa informou que está contribuindo com as investigações e a pessoa identificada como criminosa foi Gleici Milese, que não atua na ONG. A fundação também negou ter conhecimento do desvio praticado pela funcionária Patrícia.
“A Fundação Laço Rosa repudia veementemente e não compactua com atos ilícitos. A instituição não comercializa e nunca comercializou cabelos de nenhum tipo. Informa que está contribuindo e prestando todos os esclarecimentos solicitados pelos órgãos competentes. Reitera ainda que há 10 anos desenvolve um trabalho social idôneo de apoio a pacientes em tratamento de câncer de mama em todo o Brasil em diversas frentes”.
No instagram, Marcelle Medeiros, presidente da ONG, também postou um vídeo, em que reconhece que houve “uma falha no processo de gestão” e alega que foi vítima de pessoas oportunistas.
“Transparência é inegociável, se não puder (ter doação de cabelos), não teremos mais”, disse ela, afirmando que a OnG é o legado da sua história e a de sua família, afirmando que seu pai, marido e duas irmãs foram acometidos pelo câncer. “Eu não seria uma pessoa monstruosa”, declarou.
Demonstrando estar bastante abalada pelas denúncias, ela prosseguiu afirmando “trabalhar todos os dias para que os pacientes não tenham que esperar na fila”. Ela ainda se dirigiu a apoiadores, pedindo desculpas. Aos patrocinadores e artistas que doaram imagens, pessoas que torcem pelo nosso trabalho e para todos os doadores de cabelo, entendo sua decepção”, disse ela.
Número de doações é desconhecido
Doações de cabelo deram origem a ‘negócio social’
Voluntários defendem ONG
“Tive o prazer de conhecer a Marcele, uma pessoa incrível que dedica todo o seu tempo e amor em prol das mulheres com câncer. Marcele, haters e oportunistas sempre vão existir, pouco te conheço, mas tenho certeza da sua idoneidade. A visita ao projeto que você criou me transformou numa pessoa melhor. Não desista, não desanime, as mulheres com câncer de mama precisam de você”, escreveu.
Criada em 2010, a Laço Rosa foi fundada por Aline Ferreira, irmã de Marcelle, que descobriu a doença quando estava grávida de cinco meses. Ela teve que fazer uma mastectomia total do seio esquerdo e, um mês depois, iniciou a quimioterapia, quando o cabelo começou a cair. Na época, Aline se recusou a usar perucas. Aline morreu um mês depois da fundação da ONG pelas irmãs Marcelle e Andrea, que realizaram desejo dela de ter uma instituição que oferecesse apoio e informação a vítimas do câncer de mama.