Olá, Martha! Esperamos que esteja bem! Viemos aqui hoje trazer uma notícia do seu plano de saúde. Por decisão da sua operadora, Unimed Nacional, e apesar de todos os nossos esforços para a manutenção da sua permanência, ele será cancelado a partir de 1° de maio de 2024.”
Sempre pagamos pontualmente o convênio médico. De uns anos para cá, ele passou a nos aterrorizar, com reajustes abusivos. Depois, descredenciou os principais hospitais que utilizávamos. Agora, simplesmente decidiu descredenciá-la”, disse João à Folha de S. Paulo.
Ele ainda tentou, sem sucesso, reverter a rescisão. “A Qualicorp disse que não tinha o que fazer, que era uma decisão da Unimed. E a Unimed alegou ter direito a rescindir o contrato. Não ofereceram nenhum plano alternativo. Procuramos outros corretores e a resposta foi a mesma: não há nada mais para ela”, disse.
Após a repercussão do caso, a Ouvidoria da Unimed telefonou para João, informando que o plano de Martha seria retomado. A família entrou na Justiça e obteve liminar favorável, garantindo a permanência da idosa no plano. “Até porque eles podem recuar hoje, e amanhã cancelarem a minha mãe novamente”, afirma.
Cancelamento é previsto, mas com aviso prévio de dois meses
Para Daniella Torres, professora de Direito e especialista em Direito Médico do Centro Universitário de Brasília (Ceub), o bem-estar de dona Martha foi posto em xeque ao ser submetida a decisões arbitrárias.
Casos como esse não são isolados, uma vez que há um aumento crescente de pessoas que estão em tratamento sob custeio do plano de saúde e, de maneira inesperada, têm o convênio cancelado de forma unilateral.”
A ANS diz que a lei que regulamenta os planos de saúde permite o rompimento de contratos coletivos por adesão de forma unilateral e injustificada, por vontade da operadora ou do cliente, desde que atenda alguns requisitos.
Um deles é o aviso prévio de 60 dias do cancelamento, para que o beneficiário não seja pego de surpresa como tem acontecido. E se o paciente estiver internado, o plano de saúde deve arcar com os custos até a alta.
Daniella explica o que pode levar ao cancelamento unilateral por parte das operadoras de saúde e como a legislação brasileira vigora nesses casos. Segundo a especialista, as operadoras de plano de saúde desempenham função fundamental para a manutenção da saúde de seus contratantes.
Porém, em situações adversas, o ideal de “proteção” e “segurança” é convertido num imenso obstáculo aos conveniados, sendo a vida de um beneficiário submissa às decisões da operadora.
Direito fundamental associado à dignidade da pessoa humana
A docente do Ceub afirma que existe um entendimento judicial, sob uma perspectiva normativa, quando o contrato firmado para a obtenção de um plano de saúde aborda um direito fundamental associado à dignidade da pessoa humana, que deve ser interpretado sob a ótica de quem é atendido pelo serviço.
Segundo os termos do Código de Defesa ao Consumidor, o acordo celebrado deve preservar a vida, saúde e segurança do conveniado. Porém, ao analisar a legislação brasileira vigente, os planos de saúde apresentam disposições normativas detalhadas pela ANS, que também abordam a rescisão contratual nos diferentes tipos de planos de saúde, incluindo a possibilidade de ruptura do contrato de forma desmotivada”, alerta Daniella Torres.
A Resolução Normativa nº 379/2015 da ANS elucida que nos contratos firmados para a obtenção de planos individuais ou familiares, a operadora poderá rescindir o contrato em caso de fraude ou por não pagamento de mensalidade a partir de 60 dias consecutivos, nos últimos 12 meses de vigência do contrato.
É importante salientar que, nessas situações, o consumidor deve ser notificado até o 50º dia da inadimplência e não há disposição sobre a dissolução unilateral do contrato por parte da operadora”, destaca.
Já nos casos de planos coletivos por adesão, como o da paciente Martha, nos quais há uma entidade administradora que realiza a mediação entre a operadora e o cliente (no caso, a Qualicorp), e nos planos coletivos empresariais, as disposições são diferentes dos convênios individuais ou familiares, explica o estudante de Direito do CEUB, Lucas de Pádua.
De acordo com as normas da ANS, a operadora pode rescindir o contrato desde que haja previsão contratual e que seja válida para todos os associados. Deste modo, está determinado que o contrato coletivo só pode ser rescindido injustificadamente após o término do período de 12 meses e com a realização de notificação prévia de 60 dias.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a operadora não pode encerrar o contrato só porque quer, especialmente se isso prejudicar o tratamento médico do beneficiário do plano. A jurista afirma, então, que o contrato pode permitir o encerramento desde que haja um motivo válido. Em outras palavras, o plano pode ser cancelado, mas a operadora deve continuar fornecendo tratamentos médicos necessários.
Este é um direito que as operadoras têm, mas elas também têm o dever de garantir os cuidados essenciais para a sobrevivência do contratante até que ele possa sair do tratamento”, completa.
Idosos são expulsos de planos de saúde, diz Idec
Rescisão unilateral fere Código Civil, Código de Defesa do Consumidor e Estatuto do Idoso
Para a advogada Marina Magalhães, pesquisadora do programa de saúde do Idec (Instituto de Defesa Consumidor), apesar de prevista na lei, a rescisão unilateral e imotivada é abusiva e fere tanto o Código de Defesa do Consumidor quanto o Código Civil.
Um dos princípios que regem os contratos é a boa-fé. Esses casos em que o consumidor paga 30 anos um plano e, quando adoece e precisa de tratamento, é cancelado, se caracteriza um claro caso de má-fé.”
Em 2023, o Idec já alertava para as práticas abusivas dos planos de saúde em relação aos idosos. O Idec manifestou repúdio veemente à grave distorção de fatos propagada por entidades representativas de planos de saúde, no sentido de tentar convencer a opinião pública de que idosos são caros e desequilibram financeiramente o setor de saúde suplementar.
Pesquisa do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS) sobre aumento no número de consumidores idosos vinculados a planos de saúde nos últimos dez anos mostrava que o número de expulsos do mercado de saúde suplementar superou o de novas adesões em mais de 200 mil.
Apesar de ter havido crescimento relativo do número de idosos em todos os tipos de plano, é justamente nos coletivos em que se verifica o maior aumento. Planos esses que não têm limite de reajustes e podem ser cancelados unilateralmente a qualquer momento“, explica a coordenadora do programa de Saúde do Idec, Ana Navarrete.
Segundo ela, são consumidores com um vínculo cada vez mais precário com o mercado, sujeitos à expulsão direta (cancelamento) ou indireta, por causa de reajustes abusivos e proibitivos.
Como o envelhecimento afeta a saúde suplementar
A especialista afirma que, segundo o próprio estudo, este fenômeno não está sendo puxado pela adesão de pessoas já idosas aos planos, mas sim pelo envelhecimento natural de consumidores que, a duras penas, continuam a pagar mensalidades cada vez mais elevadas para conseguir manter seus planos.
Para o Idec, a discussão na saúde suplementar deve passar pela revisão das políticas de prevenção, promoção, cuidado e gestão na saúde suplementar, e não no tratamento do envelhecimento como fator de risco para as empresas, a ser “amortizado” por meio da legalização de práticas abusivas e expurgos, como sugere a divulgação de dados avulsos e incompletos por parte das empresas.
Esse tipo de abordagem só afasta a sociedade do tratamento adequado da questão e tem o potencial de agravar a sustentabilidade do sistema de saúde, além de ofender frontalmente o Estatuto da Pessoa Idosa.
Desafio para todo o sistema de saúde
Como o próprio estudo indica, o envelhecimento é um fenômeno que afeta não só a saúde suplementar, mas a sociedade brasileira como um todo (nesta de forma muito mais acelerada, inclusive). Trata-se de um desafio para todo o sistema de saúde, a ser discutido e encarado coletivamente, especialmente diante da sua natureza intersetorial.
No SUS, por exemplo, mais do que apenas as políticas e unidades de referência específicas para idosos, será necessário fortalecer e adaptar toda a Atenção Básica às novas necessidades de saúde desta população. Na assistência social, será necessário valorizar quem dedica suas vidas a cuidar destas pessoas, como por meio de uma Política Nacional de Cuidados.
A ANS diz que em casos de rescisão contratual, a operadora tem obrigação de informar sobre a possibilidade de contratação de outro plano de seu catálogo ou em outra operadora com a portabilidade de carências. A agência disponibiliza uma cartilha sobre o tema neste link.
Com Idec, Ceub e Folha de S. Paulo