A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira (27), por 35 votos a 15, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 164/12) que proíbe o aborto em qualquer circunstância, incluindo os casos previstos hoje na legislação, como estupro e risco à vida da gestante.
Conhecido como PEC do Estupro ou PEC do Estuprador, o texto propõe alterar o Artigo 5º da Constituição Federal para inserir a expressão “desde a concepção” na inviolabilidade do direito à vida – ou seja, garantir proteção absoluta ao embrião e ao feto, como se fossem nascidos vivos.
Na prática, se aprovada pelo Congresso Nacional, a proposta vai proibir a interrupção de gravidez em qualquer situação, mesmo nas já legalizadas, como em casos de estupros, anencefalia fetal, risco à vida da gestante ou até mesmo procedimentos de fertilização in vitro. A proposta segue agora para análise de uma comissão especial, mas já provoca preocupações entre especialistas em saúde e direitos humanos.
A psicóloga perinatal Rafaela Schiavo, fundadora do Instituto MaterOnline, alerta que, se aprovada, a PEC será um retrocesso para a saúde pública, especialmente em um país onde uma menina ou mulher é estuprada a cada oito minutos. A especialista esclarece dúvidas sobre os impactos dessa medida na saúde mental de vítimas de violência sexual.
“A PEC representa um retrocesso para a saúde pública das meninas e mulheres?”
Sim. A cada oito minutos, uma menina com menos de 14 anos é sexualmente violentada no Brasil. Muitas vezes, esses abusos ocorrem dentro de casa, e essas meninas não conseguem relatar o abuso ou identificar a gravidez até que os sintomas físicos surjam, geralmente próximo ou além das 22 semanas. Uma gravidez nessa idade é extremamente prejudicial.
“Quais são as barreiras que as jovens enfrentam atualmente para acessar o aborto legal?”
Muitas. Atualmente, a lei brasileira permite o aborto em casos de violência sexual, risco de vida para a mãe e anencefalia. Mesmo nesses casos, as jovens enfrentam barreiras significativas, como a objeção de consciência de profissionais de saúde, que as obriga a buscar alternativas em outras cidades ou estados, muitas vezes inviáveis.
“Quais são as consequências psicológicas de impor uma gravidez resultante de estupro a uma menina?”
São devastadoras. Impor uma gravidez resultante de estupro a uma menina agrava seu trauma, destrói sua autoestima e confiança em adultos e profissionais de saúde e pode levar a consequências graves para sua saúde mental e bem-estar.
“Como o machismo estrutural afeta a questão do aborto e o acesso das meninas aos seus direitos?”
Afeta profundamente. Homens muitas vezes acham que devem controlar o corpo da mulher, que têm o direito de decidir o que fazer ou não. Mesmo o direito ao aborto legalizado não é garantido de fato, com profissionais tentando convencer a menina a não abortar.
“Quais são os impactos da objeção de consciência dos profissionais de saúde?”
São prejudiciais. Objeção de consciência é quando um profissional de saúde se recusa a realizar um aborto devido a suas crenças pessoais ou religiosas. Isso força muitas meninas a buscar o procedimento em outras cidades ou até em outros estados, enfrentando grandes dificuldades para exercer seu direito e expondo-se a mais traumas, como ouvir os batimentos cardíacos do feto durante a ultrassonografia.
“Como as consequências legais da PEC comparam com as penas para estupradores?”
Injustas. Essa lei pode fazer com que mulheres que busquem um aborto enfrentem penas mais severas do que os estupradores. É inadmissível que uma mulher sofra mais tempo presa do que o agressor. A lei, se aprovada, será um retrocesso enorme e afetará a saúde mental delas para o resto de suas vidas.
“Como a falta de apoio institucional afeta as meninas e mulheres que buscam o aborto legal?”
É muito desgastante. Elas enfrentam custos adicionais com viagens, falta de apoio institucional e o trauma de passar por essa experiência longe de casa.
PEC 164/12 obriga crianças a serem mães
Dados de 2023 revelaram que houve uma média de um estupro a cada seis minutos no país, sendo que as vítimas são majoritariamente mulheres e meninas (88,2%), negras (52,2%), de no máximo 13 anos (61,6%), estupradas por familiares ou conhecidos (84,7%), dentro de suas próprias residências (61,7%) – a violência é, portanto, majoritariamente intrafamiliar e praticada contra crianças.
Se aprovada, a ordem constitucional deixaria de admitir que, nos casos de gestação decorrente de estupro – praticado majoritariamente contra crianças – o aborto pudesse ser legalmente realizado, obrigando essas pessoas a gestarem e parirem nessas condições”, completa Laura Molinari, da campanha Nem Presa Nem Morta e que também constrói a campanha Criança Não É Mãe.
‘Incompatível com a vida’: “nenhum aborto é desejado”
Eliza Capai precisou fazer um aborto em 2020, depois de receber o diagnóstico de que o feto tinha uma má-formação que impossibilitava sua vida fora do útero. Ela narra a jornada no documentário “Incompatível com A Vida”, que reúne relatos de outras mulheres em situação semelhante.
Também criou um site com informações, canais de acolhimento, e um passo a passo para quem busca judicializar um pedido de aborto no Brasil. Em entrevista à revista AzMina, ela diz que sempre teve certeza de que jamais iria abortar. “Eu diria que nunca a gente tem controle, que nenhum aborto é desejado. Ninguém quer abortar.”
Eliza observa que a falta de educação sexual e outras circunstâncias, como a violência sexual, levam a gravidezes não desejadas, cujos pais não tem condições – sejam econômicas, mentais ou emocionais – de criar seus filhos.
É muito triste encarar a verdade, mas meninas e mulheres são estupradas, engravidam e precisam de acolhimento. Gestações podem gerar problemas de saúde e colocar a vida materna em risco: como obrigar uma criança a já nascer órfã? Gravidezes desejadas podem gestar fetos que não sobreviverão, e obrigar a continuidade da gestação pode causar sérios danos à saúde mental e física da gestante. Seria muito melhor se estas situações não existissem, mas ignorar esta realidade em função de dogmas descolados da vida real gera apenas uma sociedade muito mais violenta e triste“, comenta.
De autoria de Eduardo Cunha, a PEC é considerada inconstitucional por alguns parlamentares. “Ao proibir o aborto em quaisquer circunstâncias, esse texto é incompatível com os direitos fundamentais e com os princípios da dignidade da pessoa humana”, afirmou o deputado Bacelar (PV-BA).
Eu só consigo ver como misoginia. Eu já tentei dar outras explicações, mas isso é um lugar de ódio ao corpo feminino. A discussão sobre o aborto não é sobre a vida como os pró-vida colocam. Ela é sobre o ódio às mulheres”, diz o parlamentar.
PEC 164/12 pode proibir técnicas de reprodução assistida
De acordo com dados do Sistema Nacional de Produção de Embriões, no ano de 2023, foram realizados 56.821 ciclos de fertilização in vitro no Brasil e 115.745 embriões foram congelados.
Letícia Vela, advogada do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, explica que, ao conferir ao óvulo fecundado ou ao embrião o direito absoluto à vida desde a concepção, como pretende a PEC 164/2012, abre-se a possibilidade de proibição futura de técnicas de reprodução assistida e pesquisas em células embrionárias para fins terapêuticos.
Em casos de fertilização in vitro, por exemplo, a técnica utilizada passa pela fertilização fora do corpo e, em seguida, pela implantação no útero. Nesse momento, pode haver perda de embriões, o que incidiria em uma violação à Constituição caso a PEC seja aprovada. Nesse sentido, milhares de famílias que dependem de reprodução assistida para ter filhos teriam seu sonho impedido”, afirma.
Segundo ela, o mesmo valeria para a utilização de células-tronco embrionárias humanas em pesquisas e terapias, que têm como objetivo, enfrentar e curar patologias que limitam e degradam a vida de grande número de pessoas, como atrofias espinhais progressivas, distrofias musculares, esclerose múltipla, neuropatias e outras doenças do neurônio motor.
Impedir a continuidade de realização de pesquisa em células embrionárias proíbe todo e qualquer avanço da ciência e possibilidade de cura de graves doenças”, complementa.
Fãs do BTS mobilizam a internet contra PEC do Estuprador
A ofensiva da extrema-direita no Congresso Nacional acontece poucos meses depois de uma mobilização histórica contra o PL 1904/24, conhecido também como o PL do Estupro, e gerou uma nova reação das organizações da campanha Criança Não é Mãe, criada na ocasião e que desde então têm acompanhado a pauta no Congresso e promovido diversas mobilizações, como o envio de emails a parlamentares da CCJ pelo site da campanha: https://criancanaoemae.org.br.
Na última semana, a campanha ganhou um importante reforço do “Army Help The Planet”, coletivo criado por fãs do BTS para promover causas socioambientais, tanto presencial, como virtualmente. Com a hashtag #ArmyContraPEC164, os fãs do grupo pedem que a CCJ retire o projeto da pauta, além de promover um abaixo-assinado e angariar assinaturas contra a PEC 162/12. A tag chegou aos assuntos do momento no X (antigo Twitter).
A manifestação contra a PEC 164/12 é mais uma das causas engajadas pelo projeto, conhecido por seu engajamento político, com campanhas como a “Tira O Título Army”, que viralizou nas redes em 2022, e se manifesta de longa data contra PLs e PECs nocivos para causas socioambientais, como o PL da Bala Solta, PL do Veneno, PL da Grilagem, PL 1904 e a PEC do Marco Temporal.
Confira a nota técnica contrária à PEC: https://criancanaoemae.org.br/