A adoção do lockdown – uma quarentena mais rigorosa já adotada em várias cidades do Brasil – pode ajudar no enfrentamento da grave questão de saúde pública causada pela pandemia do novo coronavírus, mas não pode ser vista como a única estratégia para o Brasil reduzir drasticamente os casos. O alerta é do médico sanitarista e epidemiologista Eduardo Azeredo Costa, ex-diretor de Farmanguinhos – a unidade voltada à pesquisa de medicamentos da Fiocruz.

Lembrando tempos de Oswaldo Cruz com a vacina obrigatória, Costa acredita que o bloqueio total como atividade compulsória e regras mais restritivas deixa “absolutamente fora de pauta a vigilância epidemiológica como instrumento importante e complementar do isolamento social”. Para o especialista, os antídotos para conter a pandemia são “vigilância epidemiológica e controle organizado em base comunitária”. Na semana passada, a Fiocruz recomendou o lockdown para o Estado do Rio de Janeiro conter o avanço da epidemia e evitar uma “catástrofe” humana.

O lockdown está soando não como uma panaceia, que não é, mas como uma ameaça. Por isso, nosso desafio é fazer a nossa parte na saúde o melhor possível para que os que vivem em condições precárias não sejam, de novo, os que mais sofram com o remédio (lockdown) fruto do descaso continuado”, ressalta

O médico lamenta ainda a falta de um plano de ação para o período pós-isolamento social. Ele elenca fatores políticos, tecnológicos, sanitários e sociais como obstáculos para o desenvolvimento de ações conjuntas para enfrentar a pandemia. Outra visão polêmica é em relação à testagem em larga escala, como preconiza a Organização Mundial de Saúde (OMS). E questiona: “46 milhões de testes para quê?”.

Em recente entrevista à jornalista Ana Helena Tavares, publicada pelo ViDA & Ação, Azeredo também havia feito severas críticas à política de saúde adotada pelo presidente Jair Bolsonaro. “O desastre Bolsonaro é muito maior do que o do coronavírus”, disparou o ex-secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos estratégicos do Ministério da Saúde. Ele é a favor da estratégia populacional de isolamento horizontal, adotada no Brasil. “A de alto risco (vertical) é mais complexa e de efeito limitado”,

Confira, abaixo, um resumo do artigo do especialista publicado no Observatório da Medicina no site da ENSP/Fiocruz três dias antes de o ministro da Saúde, Nelson Teich, ‘jogar a toalha’, num momento em que várias cidades do país adotaram o lockdown como medida emergencial, diante da incapacidade do governo federal de comandar estratégias coordenadas com os estados para o enfrentamento da pandemia.

ALERTA RENOVADO

Por Eduardo de Azeredo Costa*

Noticiário de fora do Brasil desses primeiros dias de maio dão conta de que o país se tornará provavelmente o país do mundo com maior incidência e mortalidade pela Covid-19. E alguns creem que já poderia ser se não fosse a enorme subnotificação de casos e óbitos, inclusive pela falta de meios diagnósticos. Oficialmente havia em 9 de maio pouco mais de 10 mil óbitos e 155 mil casos confirmados.

O conjunto de razões para o agravamento epidêmico da Covid-19 no Brasil inclui um primeiro fator político, em particular a intervenção negacionista do presidente da República (Jair Bolsonaro) e de seu governo, que levou até à demissão de seu ministro da Saúde (Luiz Henrique Mandetta) que pregava o isolamento social e estimulava a abertura de novos hospitais e leitos.

No entanto, desconhecemos um plano de ação que tenha sido deixado para orientar o uso e expansão dos leitos hospitalares públicos e privados, dentro da visão de uma rede assistencial qualificada, ao qual nessa crise deviam estar todos os prestadores diretamente subordinados. De outro lado, o novo ministro (Nelson Teich) assumiu sem condições políticas de atuar e sem equipe própria.

O segundo fator é o inadequado desenvolvimento tecnológico e industrial do Brasil. A importação domina os suprimentos da saúde. Medicamentos, vacinas e testes diagnósticos quando produzidos no país têm princípios ativos ou componentes importados. A falta de inovação em nossos insumos estratégicos levou à importação de tecnologias antes dominadas. O balanço de pagamentos do setor saúde apresentou um défict da ordem de 10 bilhões de dólares anuais em 2015.

A economia exportadora de commodities do setor primário, ao revés de estimular indústria complementar, como foi incentivado com a área de petróleo, no agronegócio não existiu e, criando superávit comercial, desestimulou a indústria nacional mesmo de produtos de baixa tecnologia, além de promover estragos ambientais e sociais de longo prazo. Enfim, não temos um projeto nacional-desenvolvimentista há muito tempo. Assim, não somos capazes de, mesmo na situação da pandemia, intervir mais diretamente em decisões produtivas para atender necessidades emergentes de modo planificado.

As fragilidades do SUS e a desigualdade social

No entanto, esses não são os únicos fatores para termos agravado os problemas no campo da saúde. As fragilidades de nosso sistema de saúde ficaram expostas. E não se limitou à carência de recursos, como poderiam alguns simplificar. No nível da União não há estrutura federal capaz de unificar as ações de saúde no país e nem mesmo coordená-las.

De fato, essa falta de direção e coordenação efetiva, vem mais facilmente à tona na área de saúde pública voltada para a prevenção de doenças, do que na assistencial. Não tendo instrumentos administrativos ágeis, o Ministério da Saúde precisa recorrer à rede de televisão para divulgar normas, sem espaço real de debate interno técnico.

O nível central não desenvolveu um núcleo técnico denso, pois como não existe ação direta substantiva a postura é de gestão, isto é, de negociar tudo para que seja executado com a rede de operação, cujas unidades não estão administrativamente subordinadas. E o MS nem mesmo dispõe de um planejamento orientado para a equidade para indução de ações, fundamental em um país com tantas desigualdades injustas e muita diversidade.

O conjunto de unidades de saúde que prestam serviços é fragmentado e concentrado nos grandes centros, onde se situam seus hospitais de maior densidade tecnológica. Sendo um sistema de saúde híbrido, público e privado, tem focos de interesse e atuação diversos.

A base municipal é absolutamente desigual variando de cidades com uma heterogeneidade que vai de poucos milhares a milhões de habitantes. E ainda não existe uma carreira e quadro nacional de saúde, como preconizado desde a Lei 8142/90, que permita capacitação e treinamento continuado do pessoal da saúde, como já comentamos em artigo recente.

E o quarto fator e mais grave é a escandalosa concentração de renda e desigualdade social entre os brasileiros, levando à experiência cotidiana negativa para os milhões das periferias e favelas em termos de habitação, saneamento, transporte e emprego. E também de acesso aos serviços de saúde públicos.

Como esses fatores se tornam visíveis?

1 – Presidente incentiva a resistência ao isolamento social, inclusive em manifestações públicas. Governadores passam a ter protagonismo, mas têm problemas políticos com alguns municípios e empresários.

2 – Falta de máscaras, reagentes e equipamentos. Esforços desencontrados face a obstáculos à importação num mundo com alta demanda dos mesmos. Iniciativas isoladas próprias de um sistema de saúde com direção pulverizada. Iniciativa de compra absurda de reagente para diagnóstico: testes para 22% da população (46 milhões), sem explicar para o quê. Enquanto isso, em notícia de 6 de abril, o secretário nacional de Vigilância em Saúde declara que existem 100 mil testes aplicados ainda sem resultado. De modo pouco qualificado, alertam-se nas redes para a falta de TESTES EM MASSA.

3 – Ausência de informações padronizadas confiáveis sobre número de casos e óbitos. Todos estão mostrando sua contabilidade ou curvas e histórias de casos pela imprensa. Nenhum tratamento epidemiológico razoável dessa contabilidade foi mostrada até hoje.

4 – Preparo da atenção hospitalar inadequado. Falta um plano nacional georreferenciado dos leitos de UTI e intermediários. A distribuição dos leitos hospitalares já era precária e insuficiente. Quem deveria ter recursos e projetos prontos agora seria o nível federal para a localização e execução visando equidade e risco. Leitos já implantados em alguns locais sem pessoal. Não há notícias sobre a distribuição das ambulâncias ‘avançadas’ (com respiração assistida) do SAMU. Não há registro de uma atividade de integração entre a rede de atenção primária à saúde à rede hospitalar, cuja entrada continua a ser baseada na emergência.

5 – Ausência de articulação efetiva do nível de atenção primária para vigilância e controle epidemiológico. Até hoje não se definiu como tratar a questão da quarentena em casas de pobres, nas vilas das periferias ou favelas. Nenhum projeto foi mencionado visando o  isolamento institucional para casos e não casos infectados e em observação, quando as condições de habitação não permitem a quarentena.

6  – Pessoal da saúde super-exposto ao risco com treinamento e equipamento de proteção inadequado ou ausente resultando em altas taxas de adoecimento e mortes. Estudo de entidade de enfermagem mostra que 65% não tiveram treinamento e 33% trabalham sem material de proteção para lidar com a COVID-19.2  Vários trabalham em mais de um local, como plantonistas! Um escândalo.

7 – Advoga-se o “lockdown”, como se fosse a mesma atividade de isolamento social com compulsoriedade e regras mais restritivas, lembrando tempos de Oswaldo Cruz com a vacina obrigatória.  Esse assunto merece uma observação adiante por estar absolutamente fora de pauta a vigilância epidemiológica como instrumento importante e complementar do isolamento social.

Ganhamos tempo com a curva achatada. E agora?

Depois de dois meses de isolamento social e parada de muitas atividades obtivemos a mitigação da epidemia no Brasil. Ou seja, achatamos e alongamos a curva de incidência acumulada de casos e óbitos. Ganhamos, pois, tempo. Mas, a possibilidade de deslocamento para as classes populares, estava prevista. Usamos bem esse tempo? Cremos que sim no aparelhamento hospitalar e manejo clínico-hospitalar dos casos, ainda que não possamos avaliar tecnicamente.

A análise por município com maiores ou menores taxas não significa que assim permanecerão, se tornando um desafio aos estados. O acompanhamento e articulação eficiente precisam da vigilância (Informação para a ação), braço da inteligência epidemiológica.

Isso quer dizer que para vários estados do Brasil a hora seria da vigilância epidemiológica e controle. Todavia se, ocupados com o atendimento hospitalar, não aproveitamos pelo menos três meses que tivemos para prepará-las. Devemos fazer o quê?

Não temos como evitar fazer outras perguntas: – O que vão fazer com os trabalhadores da saúde do front? Qual o plano para que sejam treinados adequadamente? Os EPIs estão já disponíveis?

Sem essas questões resolvidas devemos impor lockdown (fechar o comércio e outras atividades coercitivamente)? Aí meus compatriotas as perguntas são outras:

Como vai acontecer nas comunidades pobres? Com o apoio das milícias? Violência policial? Amontoar o dia inteiro por semanas em precárias moradias? E depois do lockdown? Tudo estará resolvido? Teremos vigilância efetiva para evitar outras ondas de transmissão?

Não há respostas seguras, empurramos para a frente as respostas. Contamos, no entanto, com a incrível solidariedade dentro de comunidades, como a divulgada pelo The Intercept em Paraisópolis (SP), como estratégia de sobrevivência vigorosa.5

Muitos de nós, lamentamos, até nos sentimos frustrados, como epidemiologistas, de não estarmos em condição de contribuir de modo efetivo na maior epidemia de nossa história recente. Pessoalmente, hesitei muito em escrever dando opiniões tipo “receita”. Em 22 de março, numa entrevista para a jornalista Ana Helena Tavares6, ponderamos algumas questões, na linha de unidade e responsabilidade social.Para o bom controle, mesmo divergindo, preconizei a disciplina social na hora das decisões de uma autoridade nacional de saúde (de fato agora inexistente). A Unidade de Ação é fundamental para o controle.

Enfim, nosso compromisso ético-profissional de sanitaristas e epidemiologistas pede, não futurologia, mas uma sugestão de ação.

Esboço de plano de ação para controle epidemiológico

Numa abordagem simplificada a campanha para a eliminação (supressão) de uma doença transmissível tem duas fases. A primeira é a fase de ataque. Nela, de modo indiscriminado, se usa uma vacina ou outro meio de controle, como o isolamento social, que impede o adoecimento e a transmissão para parcelas expressivas da população à risco. Assim se diminui a taxa de transmissão a níveis que se pode complementar na segunda fase de modo mais inteligente, de vigilância e controle.

Nessa, a partir de casos suspeitos notificados pelos serviços de atenção  primária que são encaminhados para diagnóstico e tratamento, é feita a pesquisa com o teste diagnóstico PCR para verificar se entre seus contatos há pessoas contaminados e transmitindo a doença, apesar de não terem sintomas, como bem sugeriu Bittencourt. Toda a família, vizinhos próximos e seus companheiros de trabalho serão também testados e postos em observação. Os positivos aos testes serão isolados e se promove a continuidade da observação por visitas sanitárias, administrando a quarentena, das pessoas e da comunidade contaminada.

Outros locais de concentração de pessoas ou de migrantes devem ser visitados para busca ativa de casos suspeitos e infectantes. Assim vai sendo feito o apaga fogo da transmissão nas comunidades. (Na Campanha de Erradicação da Varíola dizia-se, em inglês, ‘mopping up’, que era a ‘secagem das poças’ de suscetíveis remanescentes.) Esse trabalho deve ter o acompanhamento da rede de assistência social no caso da Covid-19 para viabilizar a quarentena ou isolamento.

Essa atividade para ser bem feita deve ter pessoal treinado e boa articulação nas comunidades como os agentes de saúde. Ela depende das UAPS, UBS, Clínicas e Policlínicas de família. Ou no, caso de alguns estados, também das UPAS, que não devem só encaminhar para hospitais, mas notificar o caso e encaminhar para as unidades de atenção à família. Certamente, no Brasil, para as comunidades pobres podemos precisar de casas de (hospedagem) de isolamento para muitos casos.

Essa prática é que foi utilizada na Coréia do Sul, adicionando alguns pontos de vigilância fora do ambiente da saúde como aeroportos e fábricas com muitos trabalhadores, como fazíamos no nordeste usando as feiras para buscar casos e vacinar contra a varíola nos anos 1960.  É importante registrar que na Coréia da Sul foram utilizados apenas 258 mil testes PCR  conforme amplamente divulgado pela Ministra de Relações Exteriores daquele país.9 Sua população é de cerca de 50 milhões de habitantes (0,5% da população foi testada com eficiência).

2,5 milhões de testes seriam suficientes

Já para o acompanhamento da situação imunitária devemos fazer amostragem seriada ou por painéis representativos de áreas ou comunidades, municípios ou estados e repeti-los. O estudo mais importante para pensar em como acompanhar a evolução da Covid-19 está sendo realizado no Rio Grande do Sul pela Universidade Federal de Pelotas. Foi lá que se pode com 4.500 testes usados em amostra com representatividade para o estado, dizer que o número de casos pode ser até 10 vezes maior do que o diagnosticado. Aplicado ao Brasil poderia significar que já temos mais de 1,5 milhão de casos.

Esse tipo de procedimento deveria estar sendo feito para o Brasil inteiro, acionando um grupo técnico coordenador. O acompanhamento por amostragem da proporção de já infectados em intervalos periódicos para verificar a evolução não necessitaria, até o final do ano, mais do que 400 exames de IGG por estrato geográfico de interesse, como municípios, micro-regiões homogêneas ou estados.

Pensando em 2 mil desses estudos repetidos três vezes temos 2,4 milhão de testes. Podemos garantir que no total do país para diagnóstico e rastreamento epidemiológico (busca ativa) não precisaríamos mais do que 2 milhões de testes de PCR e 500 mil para IGM (de maior importância para diagnóstico quando o PCR for negativo). Veja-se que assim podemos falar em 5 milhões de testes ao longo de seis meses. Esse número relativamente alto, decorre do atraso dessas operações de vigilância ativa em relação ao momento que a Coréia do as Sul aplicou.

Não podemos deixar de reforçar que um grupo para exame periódico e freqüente por PCR  são os trabalhadores do ‘front’ da saúde. Esse estudo-procedimento deve ser organizado nacionalmente, a par de providência sérias de treinamento e estudo de fluxo de trabalho e proteção pelo uso de EPIs (equipamentos de proteção individual). (Não podemos deixar de registrar que em Wuhan, a taxa de incidência dos casos em trabalhadores da saúde, desde os motoristas de ambulância, acompanhou o da população geral. Isto é, dada a organização do trabalho e equipamentos, não tiveram sobre-risco.10)

Nossa infra-estrutura nos leva de todas as formas a evitar o uso mais intensivo de laboratórios com equipamentos e por isso mais aquisição de testes de pouca ou duvidosa sensibilidade ou especificidade fragilizam resultados levando a teorias simplistas de não resposta imunitária à infecção. (Enquanto fala-se sobre testes para uso planejado, a Anvisa concede registro para venda em farmácias dos testes. Qual uso?)

CONCLUSÃO:

O enfoque predominantemente técnico não pode descartar o compromisso social e político do autor com os trabalhadores e a nação brasileira. Para muitos, o lockdown está soando não como uma panaceia, que não é, mas como uma ameaça. Por isso, nosso desafio é fazer a nossa parte na saúde o melhor possível para que os que vivem em condições precárias não sejam, de novo, os que mais sofram com o remédio (lockdown) fruto do descaso continuado, agravado pelo coronavírus no Brasil. A hora é a da vigilância epidemiológica e controle organizado em base comunitária.

*Médico sanitarista e epidemiologista, foi secretário de saúde de um dos governos de Leonel Brizola no Rio de Janeiro e secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos estratégicos do Ministério da Saúde, durante o governo de Dilma Rousseff. 

Artigo resumido para a jornalista Ana Helena Tavares, do blog Quem Tem Medo da Democracia, com Redação e edição de Rosayne Macedo

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