O advogado Gustavo Macieira, de 28 anos, doou sangue pela primeira vez na vida em 2010, como parte de um “trote do bem” junto com estudantes da sua turma de Direito numa faculdade no Rio de Janeiro. Homem cis gay, como se autodefine – ou seja, se reconhece no sexo masculino, com orientação homossexual -, ele teve que mentir sobre sua identidade no formulário que teve que responder e à enfermeira que o atendeu.

Nesta segunda-feira (29), Gustavo volta a um banco de sangue, dez anos depois, mas dessa vez, não terá que omitir sua orientação sexual. O advogado será um dos primeiros a aderir à campanha inédita de doação de sangue LGBTI que acontece esta semana no Banco de Sangue Herbert de Souza, do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE), e em mais três hospitais públicos do Estado do Rio – Barra Mansa, Nova Friburgo e Volta Redonda.

A campanha inédita marca as comemorações do Governo do Estado pelo Dia Mundial do Orgulho LGBTI (28 de junho) e a recente conquista, junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), do direito de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, intersexos, entre outros, também serem doadores.

Ainda é procedimento de rotina nos bancos de sangue que na rápida anamnese feita com os candidatos à doação eles sejam questionados sobre a frequência de parceiros sexuais com que se relacionam, sejam eles héteros ou homossexuais.

A explicação é que  o risco de uma infecção sexualmente transmissível (IST) é maior em relações com diferentes parceiros sem proteção. O que não pode mais, no entendimento do STF, é impedir que pessoas sejam discriminadas por sua identidade de gênero e orientação afetiva-sexual.

Vai ser muito simbólico o ato desta segunda-feira. Quando eu comentei com alguns amigos sobre a decisão do STF muitos se assustaram por não terem conhecimento de que em 2020 ainda existia esse tipo de restrição odiosa. Para mim, é a oportunidade de ajudar a salvar vidas, mantendo a minha dignidade e sendo fiel a quem eu sou”, afirma.

Macieira hoje atua na defesa e garantia dos direitos de outras pessoas como ele no Centro de Cidadania LGBTI da Capital, um equipamento da Superintendência de Políticas LGBTI da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos (SEDSODH), que organiza a campanha.

Programação estadual contou com hasteamento de bandeira gigante no Palácio Tiradentes, sede da Alerj (Fotos: Uanderson Fernandes / SEDSODH)

Uma conquista histórica para o movimento LGBTI

Para representantes da pasta, este é um momento histórico e inédito para toda a comunidade LBTI, já que a decisão do STF no dia 8 de junho derruba as  restrições à doação de sangue por homens gays e bissexuais no Brasil, bem como as travestis e as mulheres transexuais.

Doar sangue e salvar vidas sempre foi um desejo de muitos, mas a barreira do preconceito sempre foi um obstáculo. “Derrubamos essa barreira e vamos juntos promover essa campanha”, ressalta o subsecretário de Promoção, Defesa e Garantia dos Direitos Humanos, Thiago Miranda.

Até então, era oficialmente era proibido pela Anvisa (Agência de Vigilância Sanitária), por meio da Resolução RDC n° 34/14, e pelo Ministério da Saúde (Portaria n° 158/16) que homens que mantivessem relações sexuais com outros homens nos últimos 12 meses pudessem doar sangue.

A mudança é mais do que necessária, ainda mais em tempos de coronavírus, quando os doadores praticamente desapareceram dos bancos de sangue em todo o país, o que vem sendo lembrado quase toda semana aqui no ViDA & Ação com a divulgação de inúmeras campanhas para incentivo à doação.

A secretária Fernanda Titonel  lembra que no mês de junho também é celebrado o Dia Mundial do Doador de Sangue (14/6) e por isso a ação com a população LGBTI se torna ainda mais significativa. “Nada mais simbólico que aliar as duas datas para a realizar uma grande campanha de doação de sangue”,  destaca.

A Semana Mundial do Orgulho LGBTI no Estado do Rio foi oficialmente aberta na sexta-feira (26/6) com o hasteamento de uma grande bandeira com as cores do arco-íris em frente à sede da Assembleia Legislativa (Alerj). Medindo 30 metros de comprimento, a bandeira foi confeccionada e doada pelo estilista Almir França e também foi levada no sábado (27/6) à Pedra do Arpoador, em Ipanema, um dos pontos turísticos da cidade. 

Norma do Ministério da Saúde seguia recomendação da OMS

As restrições a doadores de sangue eram previstas na Portaria nº 158 de 4 de fevereiro de 2016 do Ministério da Saúde, que definia que “homens que tiveram relações sexuais com outros homens” (ou HSH) não podem doar sangue pelo período de 12 meses. A norma seguia recomendações da Organização Mundial da Saúde, mas a própria OMS reconhecia que o assunto deve ser debatido novamente à medida em que testes e mecanismos de segurança para doações de sangue avancem.

Esta restrição não levava em consideração o comportamento do possível doador, apenas sua orientação sexual, embora seus defensores neguem isso. Por outro lado, a Constituição Federal prevê em seu artigo V que nenhum brasileiro ou estrangeiro residente no país será discriminado de qualquer forma, incluindo questões relativas ao gênero e orientação sexual”, argumentou o advogado Paulo Iotti, presidente do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero – GADvS.

A norma presumia serem indivíduos potencialmente contaminados com infecções sexualmente transmissíveis, independentemente das práticas sexuais reais das pessoas em questão. “Um casal gay monogâmico, que só pratica sexo entre si e com preservativo estava proibido de doar sangue. Isso prova a inconstitucionalidade da discriminação em questão, por violar os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da igualdade”, comentou o advogado.

Ainda segundo ele, sob o ponto de vista médico, a restrição contrariava o entendimento de décadas, que superou a discriminatória noção de ‘grupos de risco’, genericamente considerados, para adotar o conceito de ‘comportamento de risco’, que depende da conduta concreta, descoberta através do questionário padronizado da doação de sangue.

Um dos maiores pontos de questionamento está no fato de o questionário e a proibição para doação de sangue ignorar o uso de preservativo, que o próprio Ministério da Saúde define como “o método mais conhecido, barato e eficaz de prevenir infecções pelo vírus HIV.” Em seu canal no Youtube, o médico Dráuzio Varella já falou sobre o tema, em vídeo de 26 de janeiro de 2016. “Esse conceito de ‘Grupo de Risco’ ficou para trás […], foi substituído por ‘Comportamento de Risco’, esse é o conceito moderno. Essa restrição, hoje não tem mais nenhum sentido em existir.”

Obviamente, queremos que se tomem todas as precauções necessárias para que o sangue doado não contenha nenhuma infecção, apenas apontamos que proibir todo HSH de doar sangue sem que esteja em celibato sexual por um ano configura profundo preconceito anticientífico que, por isso, é inconstitucional”, disse Iotti.

Luta iniciada há quatro anos na Justiça

O GADvS é uma das organizações que participam do movimento Equal Blood Brasil, que reúne diversas instituições que lutam pelos direitos LGBTI+ e vinha lutando há quatro anos pela aprovação da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5543 de 2016 que considerava a restrição um desrespeito ao direito constitucional da população LGBTI.

Presente em diversos locais como Reino Unido e Canadá, o movimento global ganhou força também no Brasil para pressionar as autoridades a avançar nesta questão de justiça e saúde pública, contanto com o apoio de diversas organizações LGBTI, como o Grupo Dignidade, de Curitiba (PR), que já atuava nesta causa há alguns anos, à frente da campanha “Igualdade na Veia”, Aliança Nacional LGBTI+, Grupo Arco-Íris e Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP.

É uma generalização supor que toda relação sexual envolvendo homens gays inerentemente representa um risco de infecção pelo HIV. Seria mais condizente com a realidade, tomar como regra para inelegibilidade de doação, a ocorrência recente de uma relação sexual desprotegida, independentemente da orientação sexual, identidade de gênero ou outra condição das pessoas envolvidas”, comentou Toni Reis, diretor executivo do Grupo Dignidade.

Inicialmente protocolada em 7 de junho de 2016 no STF, a ADI tramitou até ser julgada em 19 de outubro de 2017, quando os ministros Edson Fachin (relator), Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux julgaram a ação procedente, enquanto Alexandre de Moraes a julgou parcialmente procedente. O ministro Gilmar Mendes, requereu vistas do processo para julgar a questão, portanto o julgamento foi suspenso, retornando à pauta do STF apenas em 17 de dezembro de 2019.

O julgamento estava previsto para o dia 11 de março, mas foi transferido e adiado devido às medidas de isolamento contra o coronavírus. A votação ocorreu de forma virtual no dia 8 de junho, mantendo a segurança quanto à saúde pública. “Esta vitória é importantíssima para se combater um preconceito histórico contra homens gays e bissexuais na doação de sangue, bem como das travestis e das mulheres transexuais, que transfobicamente têm sua identidade de gênero feminina negada ao serem consideradas como ‘homens’ (HSH)”, comentou Paulo Iotti, presidente do GADvS.

Procedimentos de segurança na hora de doar sangue

Os organizadores da campanha no Rio de Janeiro pedem que os doadores fiquem atentos aos impedimentos para doação e também às orientações para participação. “Vivemos um momento delicado no país e precisamos seguir as orientações. Participem deste momento, mas usem máscara, respeitem o distanciamento e sigam todas as recomendações“, acrescentou Thiago.

Por conta da pandemia e do isolamento social, a campanha organizada pelo Programa Rio Sem Homofobia, ligado à Superintendência de Políticas LGBTI da SEDSODH. seguirá todas as recomendações sanitárias e incluirá medidas para evitar aglomerações. No HUPE, serão aceitos apenas doadores pré-agendadas, dentro do limite de 20 por dia, divididas entre o período da manhã e tarde (até 15 horas). Também receberão a campanha a Santa Casa de Barra Mansa (somente no dia 29), o Hospital Raul Sertã, em Nova Friburgo, e o Hospital São João Batista de Volta Redonda (de 30 de junho a 3 de julho).

Recomendações

Para doar sangue, é necessário que o doador leve documento original com foto, esteja bem de saúde, tenha entre 16 e 69 anos. Menores de 18 anos devem levar autorização e documento do responsável. Além disso, o doador deve ter peso mínimo de 50kg, não estar em jejum, evitar alimentos gordurosos três horas antes, ter dormido pelo menos seis horas. O intervalo mínimo entre uma doação e outra é de dois a três meses.

Não podem doar sangue as pessoas que fazem uso de drogas ilícitas injetáveis, que tenham quadro de hepatite após os 11 anos de idade, malária e evidência clínica ou laboratorial de doenças transmissíveis pelo sangue, como HIV, hepatite B e C e Doença de Chagas. 

Outros impedimentos temporários são febre, gripe ou resfriado, gravidez atual ou parto recente (90 dias para parto normal e 180 dias para cesárea), amamentação (até 1 ano após o parto). Uso de alguns medicamentos, tatuagem ou piercing (mínimo um ano), vacinação (de acordo com o tipo de vacina), transfusão de sangue (mínimo um ano), extração dentária (sete dias), anemia e cirurgia.

Após a doação, evite esforços físicos exagerados e bebidas alcoólicas por 12 horas, não dirija veículos de grande porte, não fume por duas horas, faça um pequeno lanche, beba muita água e mantenha o curativo no local da punção por 4 horas. 

Locais para doação

Rio de Janeiro
Data: 29 de junho a 3 de julho
Horário: 8 às 15 horas*
Local: Banco de Sangue Herbert de Souza – Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE)
Endereço : Boulevard Vinte e Oito de Setembro 109 – Vila Isabel – Rio de Janeiro
*Por conta do isolamento social, as doações serão realizadas mediante agendamento pelo telefone (21) 2868 8134.

Barra Mansa
Data: 29 de junho
Horário: 7 às 11 horas*
Local: Banco de Sangue da Santa Casa de Barra Mansa
Endereço: Rua Pinto Ribeiro 205 (anexo à Santa Casa)
*Por conta do isolamento social, as doações serão realizadas mediante agendamento pelo telefone (24) 3323-1918

Nova Friburgo
Data: 29 de junho a 3 de julho
Horário: 8 às 11h30*
Local: Hemocentro Regional de Nova Friburgo
Endereço: Av. Pres. Costa e Silva, 349 – Centro – Hospital Raul Sertã
Por conta do isolamento social, as doações serão realizadas mediante agendamento pelo telefone (22) 2523-8084  

Volta Redonda
Data: 30 de junho a 3 de julho
Horário: 7 às 13 horas
Local: Hospital São João Batista
Endereço: Rua Nossa Senhora das Graças 235 – Colina
Telefone: (24) 3339-4242

Com Assessorias

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