Simon Schama, em ‘Paisagem e Memória’, faz uma análise histórica da relação do homem com a natureza. Essa relação faz a natureza ser inconscientemente intrínseca ao homem. Num sentido holístico, o homem faz parte da natureza.

Com o movimento ambientalista, essa relação foi explicitada. Vemos, felizmente, que esse movimento começou fragmentado, se tornou uma causa completa, e se especializou. Hoje podemos falar de bem-estar animal, mudanças climáticas, pegada de água, de carbono etc. Todos esses assuntos e vários outros são vertentes ambientalistas, e o ser humano e suas causas sociais passaram a ser constituintes desse movimento.

Acho que normalmente pensamos que esse sentido de ambientalismo pode ser visto no interior. Como a maioria de nós é de ser urbano, acho que dificilmente sentiríamos ser parte do meio ambiente. Somente naquelas aulas de meditação ou de ioga teríamos a oportunidade de nos conectarmos à natureza, como “inspire, expire, sinta a natureza”.

Como ser parte do ambiente numa cidade urbanizada

Bem, me mudei para o subúrbio há uma década e vi que isso é possível: ser parte do meio ambiente numa cidade quase totalmente urbanizada. Eu não vou romantizar o subúrbio, sei dos problemas sérios estruturais que temos, mas consigo ver tanta beleza que decidi escrever sobre isso.

A primeira coisa que percebi é a relação comunitária. Todo mundo se conhece e se ajuda de uma forma ou de outra. De verdade. Não estou falando de dinheiro, porque quando não se há, se criam outras formas de solidariedade. E o ser humano é ótimo em criar.

Dormimos sem trancas nas casas porque sabemos quem mora aonde e sempre temos alguém de olho em gente estranha entrando no bairro. E nunca vai faltar farinha ou açúcar na sua receita quando o armazém ou o mercadinho estiver fechado. Seu vizinho com certeza os terá e os emprestará com o sorriso que carrega o senso de utilidade e de amizade. Vejo no nosso cotidiano o valor não monetário de se sentir útil e de ajudar sem nada em troca.

Animais de rua X animais na rua: um bode querido por todos

A segunda coisa que percebi são os animais na rua. Existem os animais de rua, abandonados, mas que sempre têm comida, água e remédio, e os animais na rua. Eu sei do perigo que eles correm ao andarem livres, mas nunca vi tantos animais com donos que passeiam e voltam para suas casas livremente.

Foi difícil em me acostumar com isso e perceber essa tradição peculiar. Engraçado notar que nos últimos meses vi isso se materializar no reaparecimento de um enorme bode na favela em que moro. (Aqui abro parênteses para fazer um breve comentário. Falo favela porque é meu lugar de fala, ninguém mais pode chamar onde moro de favela, nem de comunidade, mas, por favor, de bairro do subúrbio).

Saindo dessa breve digressão, voltemos ao bode. Sim, um bode. Na verdade, o senhor bode, idoso e respeitado. Parece que ele tem um dono individual, que o trata e alimenta muito bem. Mas, na verdade, para mim, ele é o bode de todos.

No meio da manhã está na calçada comendo seu “brunch”, como diriam os dois Zecas, e caminha vagarosamente por todo o bairro durante o dia, de noite ele vai para casa. E isso, todos os dias. Meu filho ama o bode. Mas nem todos têm essa conexão com a natureza, aqui representada pelo senhor bode.

Eis que um dia as crianças em grupo se reuniram em volta do bode e ele correu atrás delas. Invadiu uma escola e a matéria que saiu num jornal de amplo público foi que o senhor bode teria atacado violentamente as crianças dessa escola. E o dono levou o bode para outro local. Uma pena, todos sentem falta do icônico bode.

Por que não incentivar uma campanha de bem-estar animal na escola?

Neste episódio pitoresco, temos duas grandes lições.

Acho que a primeira é que esse fato poderia ter inspirado a escola a fazer uma campanha de bem-estar animal. No longo prazo, teríamos crianças mais conectadas com a natureza e conscientes sobre o fato dos animais sentirem dor, medo, raiva, alegria etc.

Com crianças teria sido um trabalho magnífico e com resultados tão esplêndidos para a natureza como um todo, e para os animais particularmente. Essas crianças teriam levado a experiência do bode por onde quer que fossem.

A segunda é o impacto do jornalismo. A matéria simplesmente falou do “ataque” do bode às crianças e que a instituição de ensino teria procurado o dono do bode, que o levou embora. Acho que nosso dever é de informar a todos com o devido cuidado. Provavelmente a vizinhança não foi entrevistada, o comportamento normal, diário, do animal não foi avaliado muito menos publicado. Afinal, é só um bode.

Bem, o que eu quero escrever aqui é que o bode é simbólico. Simbólico, por um lado, por expressar a relação local e natural suburbana das pessoas com os animais na rua e, por outro, por expressar a relação externa de um meio de comunicação com aqueles que não têm voz. A comunidade é o local onde aconteceu o incidente. Não temos nada a falar sobre o incidente? Tantos comércios próximos à escola, por que não perguntar o que realmente aconteceu?

Bem, não importa, o bode é o bode, e o favelado é estruturalmente favelado.

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