Por Iago Fernandes*

A cena é chocante. Um adolescente de 14 anos mata o pai, a mãe e o irmãozinho de 3 anos — todos dormindo —, joga os corpos numa cisterna e, no dia seguinte, vai à escola como se nada tivesse acontecido. Quando pressionado pela polícia, confessa. E diz, com a frieza de quem fala sobre um videogame: “Eu faria tudo de novo.”

Diante disso, como médico atuante na saúde mental de crianças e adolescentes, só consigo afirmar: isso não é normal — nem emocional, nem moralmente. Algo muito grave já estava adoecido dentro desse garoto, muito antes dos tiros acontecerem.

Quando um adolescente é capaz de cometer um ato tão extremo, com frieza, premeditação e ausência de remorso, é preciso investigar com cuidado o que está por trás. Isso pode indicar traços de psicopatia juvenil, associados no DSM-5 ao transtorno de conduta com especificadores de frieza emocional — os chamados callous-unemotional traits.

Mas antes de rotular, é preciso compreender. Nenhuma criança nasce com vontade de matar. Por isso, é urgente olhar para as raízes. Esse adolescente vivia conflitos com os pais por causa de um namoro virtual, tinha acesso a armas em casa, tomou suplemento para se manter acordado a noite toda e, segundo a polícia, agiu com um grau de planejamento incomum para sua idade.

Frieza ou sofrimento psíquico crônico?

Comportamentos assim não surgem do nada. Eles podem estar relacionados a distúrbios no desenvolvimento emocional, experiências de negligência afetiva e à ausência de vínculos seguros com os cuidadores — como discutido por Bowlby na Teoria do Apego. Quando esse vínculo é falho ou inconsistente, a criança pode aprender a bloquear emoções como mecanismo de sobrevivência. Mas esse bloqueio cobra um preço alto na adolescência.

Pensando nos critérios diagnósticos, há sinais de alerta: ausência de empatia, dificuldade em sentir culpa, manipulação e desprezo por regras sociais. Essas características, quando presentes desde a infância, acendem o sinal para um padrão persistente de comportamento antissocial — como mostram autores como Cleckley e Hare em suas pesquisas sobre psicopatia.

No entanto, a resposta não está apenas na psiquiatria. A sociologia também ajuda a compreender. Vivemos em uma sociedade que banaliza a violência, isola adolescentes, hipervaloriza o imediatismo. Como esperar maturidade emocional de jovens que muitas vezes estão se criando sozinhos, sem escuta, sem apoio, sem rede?

Há ainda o fator da impulsividade juvenil. O cérebro do adolescente está em formação — especialmente o córtex pré-frontal, responsável pelo controle de impulsos e julgamento moral. Por isso, é essencial diferenciar maldade de imaturidade, e frieza de sofrimento psíquico crônico. Nem todo ato violento indica um transtorno, mas todo transtorno grave não tratado pode sim resultar em violência.

A literatura científica mostra que adolescentes com traços de frieza emocional tendem a responder mal às intervenções tradicionais — mas isso não significa que estão perdidos. A adolescência ainda é uma janela de oportunidade. É nesse momento que podemos frear a progressão para um transtorno de personalidade antissocial na vida adulta.

Entenda o caso do parricida de Itaperuna

Aos 14 anos ele matou o pai, a mãe e o irmão. E ainda foi à delegacia

A pergunta que muitos fazem é: o que fazer com alguém assim?

Primeiro: avaliar. Com equipe especializada, testes neuropsicológicos, análise da história de vida e investigação do ambiente familiar, escolar e emocional.

Segundo: tratar. Medidas socioeducativas isoladas não bastam. É necessário apoio psicológico intensivo e, muitas vezes, acompanhamento psiquiátrico.

Terceiro: prevenir. Isso só será possível com políticas de saúde mental escolar, formação de professores para identificação precoce de sinais de risco e pais que não se sintam culpados por pedir ajuda.

O caso de Itaperuna choca porque é raro — mas também escancara o despreparo coletivo diante do sofrimento psíquico silencioso que tantos adolescentes carregam.

Adolescentes não explodem do nada. Eles implodem por anos antes disso. Precisamos escutar os silêncios deles — antes que esses silêncios virem tragédia.

*Iago Fernandes é graduado em Medicina pela Universidade de Taubaté (Unitau), pós-graduado em Psiquiatria e Bem Estar (Ebramed), Psiquiatria da Infância e Adolescência (Afya) e TDAH e Autismo (CBI of Miami). É membro da comunidade Internacional de Cannabis Medicinal (WeCann) e da Sociedade Brasileira de Estudos de Cannabis (SBEC), além de atuar como terapeuta ericksoniano (ACT – Institute)

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