O crescimento do uso de canabinoides sintéticos, também conhecidos como drogas K” – K2, K4, K9, selva, spice – tem preocupado as autoridades de saúde e de segurança pública no Brasil, principalmente em São Paulo, e já representam uma ameaça significativa à saúde pública. Chamadas erroneamente de ‘maconha sintética’ ou ‘super-maconha’, seu uso recreativo tem se tornado cada vez mais popular, especialmente entre os jovens e a população em situação de rua da maior cidade do país.

Mais de 1 mil casos de intoxicação por canabinoides sintéticos foram registrados somente este ano na capital paulista. Novo relatório da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo aponta que já foram registradas 11  mortes suspeitas de intoxicação por essas substâncias, ainda pouco pesquisadas no Brasil. A maioria das vítimas é de homens negros e jovens, entre 16 e 37 anos.

O último boletim, referente à Semana Epidemiológica 48/2023 (de 26 de novembro a 2 de dezembro), aponta um total de 17.548 notificações de casos suspeitos de intoxicação exógena atendidos no município de São Paulo, sendo 42,7% (7.492 casos) por drogas de abuso. O número de casos suspeitos de intoxicação exógena por canabinoides sintéticos foi de 1.015 (13,5% – drogas de abuso), sendo 11 casos (1,1%) suspeitos de intoxicação.

Porém, os números podem ser bem maiores já que existe ainda muita subnotificação. A Secretaria informa que o relatório foi elaborado a partir dos casos suspeitos de intoxicação exógena notificados no Sinan. “Portanto deve-se presumir que haja subnotificação, assim como atentar que são casos recentes e que a investigação epidemiológica em andamento ainda poderá trazer alterações na caracterização dos casos e seus desfechos”, ressalta.

Entenda os efeitos devastadores das drogas K

Os canabinoides sintéticos são substâncias químicas projetadas para imitar os efeitos do THC, o principal composto psicoativo encontrado na maconha. Embora tenham sido inicialmente criados como uma alternativa legal e mais acessível à maconha e possam produzir efeitos semelhantes aos da maconha, essas drogas têm se mostrado extremamente perigosas e prejudiciais à saúde porque são muito mais potentes e imprevisíveis.

De acordo com especialistas, o efeito das drogas K é até 100 vezes mais forte que o produzido pela maconha, podendo causar a perda de autonomia do corpo, o chamado ‘efeito zumbi’. Isso ocorre porque a composição química dessas substâncias varia amplamente de produto para produto, e os fabricantes frequentemente alteram suas fórmulas para contornar as leis que proíbem sua venda.

Não é só a droga e seus sintomas que são mais potentes. Os prejuízos físicos e psicológicos também são mais intensos e irreversíveis. Embora a pesquisa sobre estas substâncias ainda esteja em estágio inicial, os estudos existentes indicam que os canabinoides sintéticos podem ter efeitos negativos duradouros no cérebro e no sistema nervoso.

Os usuários relatam efeitos colaterais graves, como paranoia, ansiedade, alucinações, convulsões e até mesmo coma. Os efeitos das drogas K podem ser viciantes e levar a problemas de dependência e abuso. Além disso, o uso dessas substâncias tem sido associado a um aumento significativo do risco de overdose e morte.  

“Eu senti meus músculos tremerem e a cabeça como se estivesse saindo do meu corpo. Quando você tem esse apagão, sua mente está tão confusa, que você não está ali mais. É muita confusão mental. Fiquei tremendo por cinco minutos e movimentos fora do normal, quase que uma convulsão. “, revelou um usuário, em entrevista à Globonews. Ele contou que, por influência de amigos, aos 20 anos, ele experimentou as drogas K2, K4 e K9 – esta última a mais forte.

Diferenças para a maconha de uso recreativo

Apesar de também ter se popularizado como “maconha sintética”, usar o termo para as chamadas drogas K – conhecida nas ruas como K2, K4, K9, spice, selva ou ‘supermaconha’ – é um erro e pode trazer uma falsa ilusão sobre o real potencial da droga, apontam especialistas.

“Numa substância só, são colocados várias substâncias ao mesmo tempo, às vezes canabinoides que a gente não conhece. As ´pessoas não sabem o que estão consumindo. Mas não é maconha”,  diz Mauricio Yonamine, professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP.

O perito criminal Emerson Oliveira, da Polícia Científica de São Paulo, explica a principal diferença entre a maconha de uso recreativo e as drogas K. “O THC é um princípio ativo natural da maconha, produzido pela planta. Os canabinoides sintéticos são substâncias artificiais, produzidas em laboratório, que podem levar a óbito aquelas pessoas que utilizam”.

Mais rápidas, baratas e fáceis de produzir, mas difíceis de combater e tratar

A expansão das drogas sintéticas é, hoje, uma das maiores preocupações mundiais na área da saúde. Com efeitos muito mais potentes que as drogas ditas “naturais”, elas são rápidas, baratas e fáceis de produzir, porém, mais difíceis de combater e tratar.

Os canabinoides sintéticos consumidos no Brasil são produzidos em laboratórios caseiros e são vendidos como incenso ou produtos à base de plantas, com rótulos que afirmam serem “não destinados ao consumo humano”. A matéria-prima em pó que chega ao Brasil vem da Ásia, principalmente da China, pelos correios, e chega em pacotes pequenos, como qualquer outra encomenda, o que dificulta a fiscalização.

Como é muito forte para ser consumido diretamente, o pó precisa ser diluído e não existe fórmula única para isso. Cada traficante usa diluentes e proporções diferentes. O produto final, muito forte para ser consumido diretamente, é borrifado em folhas de pape usadas para consumo de ervas secas de tabaco ou maconha que são fumados ou vaporizados.

Em 2022, o número de apreensões dessa nova geração de entorpecentes teve um aumento de 600%, segundo o Gaeco – Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado. A polícia já identificou de 10 a 15 substâncias diferentes presentes nas drogas K consumidas em São Paulo, que vão mudando com o tempo, o que exige novas técnicas para identificação. Mas até o momento os investigadores não conseguiram chegar à substância pura para combater a origem.

Drogas são vendidas como incenso ou produtos à base de ervas

Outra questão preocupante é a falta de regulamentação e controle de qualidade desses produtos. Como os canabinoides sintéticos são vendidos como “incenso” ou “produtos à base de plantas”, eles não são submetidos aos mesmos padrões de segurança e testes que os medicamentos ou alimentos. Isso significa que os usuários nunca têm certeza do que estão realmente consumindo, o que aumenta ainda mais os riscos à saúde.

Isso se deve, em parte, à sua disponibilidade fácil e à crença errônea de que eles são uma alternativa segura à maconha. No entanto, é importante ressaltar que a maconha, apesar de seus próprios riscos, é uma substância natural que tem sido estudada há décadas, ao contrário dos canabinoides sintéticos, que são produtos químicos relativamente novos e pouco conhecidos.

Apesar dos perigos associados aos canabinoides sintéticos, eles continuam sendo comercializados e consumidos, sendo encontrados geralmente em áreas próximas a locais de distribuição e abastecimento. Não há efetividade nas medidas de combate, já que a maior parte da droga vem pelos Correios. Portanto, seus efeitos imprevisíveis e potencialmente perigosos, combinados com a falta de regulamentação e controle de qualidade, tornam essas substâncias extremamente arriscadas.

Diante dessas preocupações, é fundamental que as autoridades de saúde e os legisladores adotem medidas para combater a disseminação e o uso dos canabinoides sintéticos. Isso inclui a implementação de regulamentações mais rigorosas, a educação pública sobre os perigos dessas substâncias e o aumento da conscientização sobre os riscos associados ao seu consumo.

É essencial que sejam tomadas medidas para proteger a sociedade desses produtos, garantindo a segurança e o bem-estar de todos. Mas o professor da USP resume as dificuldades de se obter sucesso no combate às drogas K atualmente no Brasil. Segundo ele, é preciso uma ação urgente para barrar o crescimento e pulverização de traficantes e produtores de drogas devastadoras para o sistema de saúde. “Estamos a pé tentando perseguir uma Ferrari”, diz.

Como procurar ajuda em São Paulo

O município de São Paulo possui o Centro de Controle de Intoxicações (CCI) que integra o Programa Municipal de Prevenção e Controle de Intoxicações (PMPCI).

A Nota técnica 04/2023, disponível no link, orienta a conduta na rede de atenção psicossocial (RAPS) da cidade de São Paulo para a assistência às intoxicações pelos canabinoides sintéticos (“K2”, “K4”, “K9”, “selva”, “cloud 9”, “spice” ou “supermaconha”) junto a população infantojuvenil.

O serviço atende pelo número 0800 771 3733 e (11) 5012 5311, 24h por dia, e presta aos profissionais da saúde e a população em geral, informações sobre a toxicidade das substâncias químicas existentes no mercado o que possibilita a terapêutica adequada para cada caso de exposição

Em caso de suspeita de intoxicação, ligue para o Centro de Controle de Intoxicações (CCI). Acesse aqui.

Palavra de Especialista

CBD, THC e drogas K: desvendando a sopa de letrinhas

Por Liberato Brum Junior e Nelson Ferreira Claro Junior*

O mundo científico tem um dialeto próprio, com regras de escrita para os nomes de espécies animais, vegetais e substâncias químicas, que são oficialmente aceitas em todo o mundo. Por exemplo, Leucanthemum vulgare é o nome científico da flor popularmente conhecida como margarida e 1,3,7-Trimetilpurina-2,6-diona é o nome químico da cafeína.

Além desses nomes complicados, é comum os cientistas utilizarem jargões próprios, como o acrônimo DDT, que se refere ao dicloro-difenil-tricloroetano, um inseticida antigo e bastante conhecido. Essa sopa de letrinhas muitas vezes causa confusão e interpretações falsas.

Um exemplo claro dessa confusão são as novas drogas chamadas “drogas K”. Conhecidas pela ciência há pelo menos três décadas, essas substâncias foram inicialmente desenvolvidas e estudadas como tratamentos para várias doenças, como dores crônicas, mas acabaram sendo comercializadas no mercado ilegal como entorpecentes potentes, com efeitos imprevisíveis.

E, para piorar, são frequentemente confundidas e associadas ao canabidiol, que no mundo científico é chamado pelo acrônimo CBD. Segundo o DEA, órgão de controle de entorpecentes nos Estados Unidos os produtos podem ser encontrados com várias nomenclaturas, tais como: Spice, K2, K4, K9, RedX Dawn, Paradise, Demon, Black Magic, Spike, Mr. Nice Guy, Ninja, Zohai, Dream, Genie, Sence, Smoke, Skunk, Serenity, Yucatan, Fire, Skooby Snax, and Crazy Clown (DEA, 2023).

É fundamental esclarecer que tais drogas não apresentam nenhuma relação com formulações produzidas com Canabidiol obtido através da planta, nem com Canabidiol sintético utilizado na produção de medicamentos.

Como descrito acima, a droga possui moléculas específicas “fabricadas” para ocasionar alteração de sistema nervoso central, alterações sensoriais e de percepções de uma droga de abuso ilícito. Já medicamentos são desenvolvidos com moléculas com segurança e eficácia comprovadas através de inúmeros ensaios de performance, não-clínicos e clínicos.

THC tem efeito psicoativo, CDB não

O CBD (canabidiol) é um dos principais compostos encontrados na planta Cannabis sativa, conhecida como maconha ou marijuana. Essa substância faz parte de um grupo de compostos chamados fitocanabinoides.  Além do CBD, outro fitocanabinoide encontrado na planta é o THC (acrônimo de tetrahidrocanabinol).

O CBD e o THC são substâncias químicas diferentes e agem de forma distinta no organismo humano: o THC tem efeito psicotrópico ou psicoativo, alterando o estado mental e afetando a função psicológica do indivíduo, enquanto o CBD não apresenta esse efeito.

Como surgiram as drogas K

Na década de 1980, John W. Huffman, professor de química da Universidade de Clemson, Estados Unidos, estudava substâncias químicas produzidas em laboratório que poderiam substituir o THC no desenvolvimento de tratamentos para dor, inflamação e alguns tipos de câncer de pele. Ele e sua equipe criaram mais de 470 compostos sintéticos diferentes para testes em animais de laboratório.

O pesquisador comparou os efeitos desses compostos sintéticos com os efeitos já conhecidos do THC, que seria como referências nesses estudos, e descobriu que alguns deles eram até 100 vezes mais potentes. Ele reuniu os resultados de sua pesquisa e os publicou em revistas científicas. Essas substâncias produzidas em laboratório, por interagirem de maneira semelhante ao THC no organismo humano, foram chamadas de canabinoides sintéticos.

Mas após a publicação do trabalho da equipe de Huffman, foi percebida a possibilidade de produzir drogas ilícitas misturando os compostos sintéticos, seguindo a “receita” divulgada pelo professor em seus artigos científicos, com ervas inofensivas para criar uma semelhança com a maconha.

Assim surgiram as chamadas drogas K”, que são compostos ilícitos “fabricados” para causar alteração de sistema nervoso central, alterações sensoriais e de percepções. Importante destacar que são completamente diferentes e não apresentam nenhuma relação com produtos farmacêuticos à base do canabidiol, que tem estudos demonstrando sua segurança e eficácia terapêutica para síndromes de epilepsia e epilepsia refratária e que apresentam potencial terapêutico para várias outras indicações como Alzheimer, dor, ansiedade, entre outras.

Além de possuir seu próprio dialeto, o mundo científico exige responsabilidade. É nos laboratórios que são descobertas formas de atenuar dores, curar doenças e garantir uma melhor qualidade de vida. Anos de estudos e testes têm permitido que pessoas ao redor do mundo tenham oportunidades de tratamento e novas chances de viver com saúde. Somente com informação e valorização da ciência conseguiremos evitar e combater os usos inadequados dessas descobertas.

* Liberato Brum Junior, farmacêutico e gerente de Inovação e Pesquisa Clínica da Prati-Donaduzzi e Nelson Ferreira Claro Junior, Diretor de farmoquímicos da Prati-Donaduzzi

Com Assessorias

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