O Brasil vem enfrentando um cenário preocupante em relação à dengue. O que poucas pessoas sabem é que os quadros de dengue podem afetar também a saúde ocular e até levar à cegueira. Complicações oftalmológicas vêm sendo descritas por especialistas em pelo menos 10% dos casos de infecção pelo vírus da dengue.

Esta semana chamou a atenção o caso da estudante de Medicina Isabela Kemp, de 24 anos, filha do deputado estadual Pedro Kemp (PT-MS), que teve a visão quase totalmente afetada por causa da dengue. Ela chegou a ficar com apenas 20% da visão do olho esquerdo e apenas 3% do olho direito. O diagnóstico foi de uma neurorretinite rara causada pelo vírus da dengue.

Isabela descobriu a doença no dia 10 de fevereiro. Nos primeiros dias, teve dor muscular e nas articulações nos primeiros dias, seguidos de sintomas como coceira e vermelhidão nas palmas das mãos e dos pés. “Fazia exames de sangue para acompanhar a taxa de plaquetas e leucócitos que o vírus faz cair, mas sem imaginar o que viria depois”, contou.

Seis dias após o diagnóstico, começaram a surgir pontos de embaçamento no campo visual do olho esquerdo, que foram piorando progressivamente durante a fase aguda da incubação da dengue, já num quadro inflamatório intenso, o que a levou a procurar atendimento médico imediato. Ela só contava com 30% de visão três dias depois disso.

Em vídeo no instagram, ela conta que começou a perder acuidade (capacidade de percepção visual) seis dias depois dos primeiros sintomas.

“Começou com pontinho de embaçamento no meu campo visual periférico da visão esquerda e no outro dia já tinha afetado a visão direita. No domingo eu tava com apenas 30%  da minha visão”, desabafou a universitária.

Tropismo na retina

Isabela comentou que procurou médicos em Campo Grande (MS), onde mora, dois dias depois, na segunda-feira (19), foi até a cidade de São Paulo para se consultar com um médico que já havia atendido um paciente com sintoma parecido. A essa altura, Isabella estava com apenas 3% da visão de um olho e 20% do outro.

O oftalmologista consultado em São Paulo, que havia atendido uma paciente com a mesma complicação em 2015, explicou que a causa da perda da visão se deu pelo vírus da dengue ter um ”tropismo”  (propensão de infectar determinado tipo de célula ou tecido) por algumas camadas da retina. Também houve pontos de isquemia da camada da retina devido à inflamação intensa.

“Em São Paulo, o médico me informou que o vírus teve um tropismo pela retina dos meus olhos. O vírus se identificou pela retina e viu nela um ambiente favorável para se replicar, e por isso, meu sistema imune começou um processo inflamatório para tentar impedir a proliferação. Com o processo inflamatório, minha visão foi afetada. E por conta da grande inflamação que ocorreu na retina, teve alguns danos que podem ser irreversíveis”, explicou.

Infectologista da Fiocruz explica possíveis sequelas

Infectologista da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) que estuda a doença há quase quatro décadas, Rivaldo Venâncio confirma que complicações nos órgãos e sequelas relacionadas à dengue são possíveis mesmo entre quem não tem comorbidades, como é o caso de Isabella Kemp, que ele chegou a acompanhar nos últimos dias.

“O vírus da dengue circula no organismo como um todo. Embora raro, nos órgãos onde ele passa pode haver complicação, inclusive nos olhos. Se ele se replica no fígado, é possível algumas pessoas terem complicações sérias nele. Assim como no coração pode comprometimento cardíaco e no rim, o hepático”, descreve o especialista ao Campo Grande News.

Segundo ele, tudo depende da resposta imunológica de cada paciente e não são conhecidas condições de saúde que favoreçam o agravamento da doença. “É preciso ver como o organismo reage à presença do vírus. Mas, no caso da dengue, complicações assim são sempre raras”, reforça.

Ao G1, o especialista explica que a dengue é uma doença sistêmica, ou seja, acomete vários órgãos e tecidos do organismo, em diferentes intensidades. Mesmo que alguns órgãos não sejam afetados, há a circulação do vírus pela corrente sanguínea que pode provocar algumas alterações. Segundo o infectologista, fígado, coração, rins e até os olhos costumam ser os mais atingidos.

“Eu já vi casos de comprometimento hepático bem, bem grave. A resposta imunológica provocada pela presença do vírus pode causar danos a alguns tecidos ou alguns órgãos específicos. Nós temos também comprometimento neurológico, por exemplo, síndrome de Guillain-Barre ou encefalite. Felizmente, são observações muito, muito, muito raras”, destacou o médico.

Além de destacar que essas sequelas são raríssimas, Rivaldo ressalta que normalmente elas são revertidas. “No entanto, infelizmente, não são 100% dos casos com comprometimento grave, como os envolvimentos de coração e fígado (principalmente), que se recuperam plenamente”, completou.

25% dos casos de dengue afetam os olhos

Médico que atendeu Isabella em Campo Grande, o oftalmologista Alvaro Hilgert disse ao Campo Grande News que cerca de 25% dos casos de dengue afetam os olhos. Na maioria deles costuma ocorrer uma inflamação leve chamada episclerite. A estudante teve outro tipo de inflamação: a neurorretinite rara causada pela dengue. Problemas parecidos também podem ser causados pelo zika vírus e a chikungunya, alerta o médico.

A maior preocupação é quando o sintoma chega ao centro da visão, como aconteceu com a estudante. Isso aumenta, segundo ele, a possibilidade de ficarem sequelas. “Infelizmente, ele pode deixar uma sequela na visão com a diminuição da acuidade visual principalmente no campo central”, diz.

Ter procurado atendimento nas primeiras horas ajudou a estudante a limitar os danos aos olhos. “É muito importante quando o paciente tem uma perda da acuidade visual, que seja atendido prontamente. Isso favorece uma recuperação melhor e com menos sequelas”, atesta Hilgert.

Jovem recuperou 80% da visão

isabela acredita que o tratamento precoce, ainda em Campo Grande, evitou problemas mais graves na visão. Ela relatou que recuperou boa parte da visão (cerca de 80%), mas ainda não está enxergando como antes. A universitária  relata dificuldade para diferenciar algumas cores claras e um embaçamento na região central do campo de visão do olho esquerdo. E segue tomando medicação para controlar a inflamação e fazendo tratamento para que a visão se restabeleça em 100%. 

“Hoje, minha visão não é a mesma de antigamente. Tenho dificuldade para diferenciar algumas cores, preciso usar o modo de acessibilidade do celular e do computador, onde as letras são maiores e as cores são mais nítidas, pois hoje, estou enxergando com melhor nitidez apenas cores fortes como preto e amarelo. Também, meu olho esquerdo ficou com um embaçamento na região central da visão, mas que é compensado pelo olho direito, que hoje está melhor recuperado”, diz ela.

A jovem, que está no último ano de Medicina, ainda não sabe se vai haver algum grau de sequela definitiva com o tempo. E reconhece que o processo de recuperação é lento e um ”trabalho de formiguinha”. “Hoje eu estou bem animada com o processo de recuperação, pois a cada dia eu estou melhorando um pouquinho mais, sem deixar essa situação me abalar”, destacou a jovem.  

”Cada melhora, cada pontinho de luz que eu vejo eu estou agradecendo. A visão é uma dádiva e nós precisamos agradecer por ela. Tenho fé que vou melhorar cada vez mais”, disse nas redes sociais, agradecendo o apoio de todos, inclusive o carinho da avó que acendeu velas pela recuperação dela. Ela alerta a sociedade para “ter consciência que a dengue é uma doença grave e merece atenção, tanto no individual quanto no coletivo”.

Há uma semana, ela postou um vídeo explicando o que aconteceu e agradecendo pela visão. Na legenda, escreveu um poema, dedicado também à namorada, Fabiana Goal. “Muito obrigada Senhor! Muito obrigada pelo que me deste. Muito obrigada pelo que me dás. Muito obrigada pela beleza que os meus olhos vêem no altar da natureza. Olhos que fitam o céu, a terra e o mar Que acompanham a ave ligeira que corre fagueira pelo céu de anil. Muito obrigada Senhor! Porque eu posso ver meu amor”.

Dengue também pode causar coreorretinite

Em recente consulta de rotina no serviço de Oftalmologia do Hospital Federal da Lagoa, no Rio de Janeiro, a jornalista Roni Filgueiras foi identificada com “lesão de coreorretinite em região temporal do olho direito, sem sinal de atividade presente”. Ela ficou surpresa quando o médico revelou o achado e lhe explicou o que era.

“Tiago, mineiro de Barbacena, resolveu vasculhar meus olhos num exame de retina de praxe. E descobriu que tenho uma larva (protozoário) hibernando na retina”, contou. “Segundo outro residente, pode ter sido de toxoplasmose. E o Rio de Janeiro é o estado do Brasil onde há os maiores índices da doença. Mas a lesão também pode ter sido provocada pelo Aedes Aegypti“.

Em geral, conforme a lileratura médica, a causa mais comum da coreorretinite são as infecções congênitas nos recém-nascidos, ou seja, infecções por citomegalovírus e toxoplasmose, passadas de mãe para filho. Outras doenças infecciosas como dengue, zika e chikungunya e a presença de doenças autoimunes também são fatores de risco.

Esse tipo de inflamação pode gerar sintomas como vermelhidão, ardor e baixa visão, e trazer complicações como catarata, edema macular e descolamento de retina. “Caso eu tenha algum episódio de baixa imunidade ou meu olhar começar a perder a visão, tenho de correr pro oftalmo”, disse a paciente.

Oftalmologistas alertam para manifestações oculares da dengue

Em meio ao cenário de epidemia de dengue, Pedro Antonio Nogueira Filho, especialista em córnea e doenças oculares externas e chefe do pronto-socorro do H. Olhos, faz um alerta:

“A dengue pode causar hemorragias retinianas e na conjuntiva, além de ruptura de vasos sanguíneos que comprometem a qualidade visual. Em alguns casos, pode levar à cegueira”.

Segundo Maria Beatriz Guerios, oftalmologista geral e especialista em glaucoma, a dengue também pode causar hemorragias intraoculares devido à queda do número de plaquetas nos pacientes que contraem a virose.

“A dor no olho é o sintoma oftalmológico mais conhecido e comum nos quadros de dengue. Esta manifestação é decorrente da inflamação no nervo óptico que causa a chamada neurite óptica“, explica.

Além da dor no olho, a neurite óptica pode causar dificuldades para enxergar, para distinguir cores e distância. A maioria dos casos tende a melhorar em algumas semanas. “Caso os sintomas persistam, é preciso ir a um oftalmologista para um exame mais apurado do nervo óptico e da retina”, alerta Dra. Maria Beatriz.

Hemorragia na parte posterior do globo ocular pode ser grave

A hemorragia ocular relacionada à dengue pode ocorrer na conjuntiva, tecido que reveste a parte da frente do globo ocular. “Nestes casos, embora a vermelhidão seja intensa, costuma desaparecer em algumas semanas, sem grandes consequências”, diz a médica.

Por outro lado, as hemorragias que ocorrem na parte posterior do olho, especialmente aquelas que atingem a retina e o vítreo, podem ser graves e ameaçar a visão. Os sintomas nestes casos podem variar. Entre as principais estão:

  • Flashes de luz
    Manchas escuras na visão
    Aumento importante das moscas volantes (pontinhos pretos que se deslocam com os movimentos oculares)
    Distorção do campo visual
    Perda visual repentina ou que aumenta com o passar das horas
    Sombras na visão
    Embaçamento visual
    Visão avermelhada (a pessoa vê as imagens em tons mais avermelhados)

Sintomas ocorrem em 10% dos casos de dengue

A oftalmologista reforça que os sintomas oculares da dengue ocorrem em cerca de 10% dos casos. Justamente por não ser tão prevalentes, as manifestações oftalmológicas podem passar despercebidas. Além disto, alguns sintomas podem aparecer após a fase aguda da dengue.

Apesar de a dengue clássica ser mais branda que a dengue hemorrágica, sempre é importante consultar um oftalmologista levando em conta que a dengue pode afetar a visão.

“A avaliação oftalmológica deve ser feita na primeira semana após o diagnóstico para prevenir a evolução das condições mais graves, principalmente àquelas que podem resultar das hemorragias na parte de trás dos olhos”, finaliza Dra. Maria Beatriz.

Com Assessorias e informações do Campo Grande News e G1

 

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