A síndrome de burnout ganhou destaque na mídia, devido à mudança na 11ª Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-11). A Organização Mundial de Saúde (OMS) não classificou a síndrome como doença na recente atualização. A condição continuará inscrita numa subcategoria que não inclui doenças, chamada “Problemas com a Organização do seu Modo de Vida”. Até o ano passado era o código Z73 e agora passa a ser QD85.

Caracterizada pela tensão resultante do excesso de atividade profissional, o burnout tem entre os sintomas o esgotamento físico e mental, a perda de interesse no trabalho e a ansiedade e a depressão. Em seu novo livroBurnout: a doença que não existe”, lançado pela Editora Appris, o médico psiquiatra e psicanalista Estevam Vaz de Lima faz um convite para reflexão sobre o tema. O provocativo título traz a essência do questionamento do autor sobre a existência de falsas doenças.

“Se é uma doença, é preciso descrevê-la e identificá-la em termos de semiologia médica, ou seja, dispor de conjunto de sinais e sintomas para que se possa estabelecer um diagnóstico de forma clara e realizar diagnósticos diferenciais com outras doenças ou síndromes, o que é impossível no caso de burnout”, relata o psiquiatra.

Burnout não se sustenta como doença ou síndrome

Segundo o autor, um dos aspectos mais intrigantes da decisão da OMS é que ela adotou os critérios de um questionário chamado MBI – Maslach Burnout Inventory para a síndrome. O MBI é rigidamente protegido por direitos autorais e é preciso pagar por seu uso. A OMS está, na prática, incluindo em seu rol a primeira “doença” sujeita ao pagamento de direitos autorais.

Para o psiquiatra e psicanalista, há pelo menos oito razões principais que, isoladamente, são suficientes para concluir que burnout não se sustenta como doença ou síndrome.

“Atualmente, 93% das pesquisas sobre burnout no mundo são baseadas no MIB. Nele, mesmo que uma pessoa responda que nunca teve nenhum dos sentimentos ou experiências ruins ali descritos, receberá, no mínimo,  o ‘diagnóstico’ de ‘burnout leve’. Ou seja, a partir do MBI é impossível concluir: ‘Você não tem burnout’, explica Estevam Vaz de Lima.

Livro questiona os 132 sintomas atribuídos ao burnout

Dividido em 14 capítulos, Burnout: a doença que não existe abrange diversos aspectos que apontam que a síndrome de burnout não se sustenta como condição médica ou doença. Mas o médico,  perito oficial do Tribunal Regional do Trabalho, também alerta que não questiona o fato de as pessoas adoecerem sob determinadas condições de trabalho.

“Lido todos os dias com o crescente problema dos transtornos mentais relacionados ao trabalho e com pessoas que sucumbem a indiferença, descaso, autoritarismo, grosseria etc. Portanto, ao questionar o burnout, não estou colocando em dúvida o sofrimento alheio. Os problemas são outros, e muitos…”

O principal teórico e autor da “bíblia” do burnout (“The burnout companion to study and practice: a critical analisys”), o psicólogo holandês Wilmar Schaufeli compilou 132 sintomas do burnout na literatura internacional. O psiquiatra Estevam Vaz de Lima acredita que, com todos esses sintomas, a síndrome seria a mais extraordinária, surpreendente e grave “doença” da qual já se ouviu falar.

“De ejaculação precoce a diabetes, de ciúmes a hipertensão arterial, de vaginismo a esbranquiçamento do cabelo, de prurido na pele a infarto do miocárdio, tudo cabe no saco sem fundos do burnout. Envolve mais de 20 doenças orgânicas e todos os sistemas anatômicos e funcionais do corpo humano”, conta.

“E como no saco sem fundos do burnout cabem 140 sintomas, cerca de 30 categorias diagnósticas da Psiquiatria, 24 doenças gerais e centenas de experiências comuns do dia a dia que não caracterizam nenhum transtorno mental, o assédio moral vai junto, também, para dentro desse saco sem fundos”.

Palavra de Especialista

Burnout” e assédio moral: juntos num saco sem fundo

Por Estevam Vaz de Lima*

Conforme exponho em meu livro Burnout: a doença que não existe”, o número de problemas com a noção de burnout é tamanho que torna-se difícil fazer uma lista deles. Uma lista pressupõe a citação de itens, um por um, dispostos linearmente ou em colunas.

Ocorre que as inconsistências e absurdos da noção de burnout são de tal modo imbricadas umas com as outras, que seria mais preciso falar em um emaranhado do que em uma lista.  Imagine um emaranhado de linhas. Você consegue perceber que é um emaranhado, mas é impossível entender como se dão os nós ali dentro. É o caso do burnout, a que me refiro como “um estado de confusão”.

Neste artigo, não vou me estender sobre aspectos mais amplos e gerais do “burnout” – por exemplo, que é o maior desserviço para a Medicina e para a opinião pública dos últimos 50 anos, só competindo com as malfadadas “personalidades múltiplas” da psiquiatria americana; ou que é uma “síndrome” com 140 sintomas, que se confunde com ao menos trinta categorias diagnósticas da psiquiatria e com centenas de experiências comuns da vida em geral, cabendo tudo no saco sem fundos da alegada “doença”.

(A síndrome das “personalidades múltiplas” fez mais sucesso que o burnout e permaneceu nos DSMs – o sistema classificatório americano – por décadas, até que se revelasse uma grande farsa. Para quem quiser ter uma ideia de até que ponto pode chegar a credulidade humana na área dos transtornos mentais, sugiro assistir ao documentário “As 24 personalidades de Billy Milligan”, da Netflix).

Assim, hoje apresentarei questões relativas a burnout e assédio moral. É frequente a ideia de associação entre os dois fenômenos, seja feita por profissionais ou leigos, que imaginam e mesmo publicam sua suposição de que uma pessoa que sofreu assédio moral acabe por desenvolver “burnout” – entre aspas, pois é impossível realizar objetivamente o diagnóstico médico dessa inexistente “doença”.

Burnout” não só não tem nada a ver com assédio moral, como são conceitos antagônicos e mutuamente excludentes, pois o primeiro diz respeito a um problema individual e o segundo remete o assunto para questões organizacionais. Não há uma só linha nos principais teóricos do “burnout” que inclua o assédio moral como um fator causador dessa “síndrome”. No Brasil, entretanto, há autores que associam uma coisa com a outra e não é difícil entender porque façam isso, dado que cabe tudo e sempre um pouco mais nas “teorias” sobre burnout.

Um trio de médicos americanos parece ter se dado conta da incompatibilidade entre os dois fenômenos e publicou um interessante artigo onde deixam isso claro. Intitulado “Porque burnout é o nome incorreto para o sofrimento do médico”, dizem, entre outras coisas:

“O termo burnout sugere […], em essência, que o problema reside no indivíduo que, de alguma forma, está falhando. Os médicos consideram seu trabalho desafiador, mas acreditamos que “burnout” é uma deturpação. […] Acreditamos que os médicos não estão burned out, mas sofrendo danos morais. […] O dano moral localiza a fonte de sofrimento, apropriadamente, fora do médico e dentro da própria estrutura de negócios da saúde.” (Dean, W., Dean A. C. &Talbot, S. G., 2019. “Why ‘Burnout’ is the Wrong Term for Physician Suffering).

Fica evidente que o “burnout” – que esses autores também colocam entre aspas – mais esconde do que revela as causas do sofrimento psíquico relacionado ao trabalho, sobretudo se considerarmos que o assédio moral é uma das principais, senão a principal causa de adoecimento mental relacionado ao trabalho. Vale considerar, ainda, que os argumentos apresentados nesse artigo aplicam-se a qualquer organização, seja relacionada a trabalhadores da área da saúde ou não.

Concluindo: como no saco sem fundos do burnout cabem 140 sintomas, cerca de 30 categorias diagnósticas da Psiquiatria, 24 doenças gerais e centenas de experiências comuns do dia a dia que não caracterizam nenhum transtorno mental, o assédio moral vai junto, também, para dentro desse saco sem fundos.

Sobre o autor

Estevam Vaz de Lima é médico formado pela Escola Paulista de Medicina (Unifesp), psiquiatra pela Associação Brasileira de Psiquiatria/Associação Médica Brasileira e psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise/International Psychoanalytical Association. É também médico psiquiatra e perito oficial do Tribunal Regional de Trabalho da 2ª Região, professor convidado do Curso de Formação de Juízes da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 2ª Região e do curso “Transtornos Mentais Relacionados ao Trabalho” do Instituto de Psiquiatria, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

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