‘Fui ingênua, pensei que se o presidente tivesse me chamado para conversar, ele estaria disposto a mudar’. O desabafo é da cardiologista Ludhmila Abrahão Hajjar, uma das mais severas críticas do negacionismo de Jair Bolsonaro. A médica chegou a ser dada como certa no cargo de nova ministra da Saúde, em lugar do general Eduardo Pazuello. Ela deixou Brasília na segunda-feira (15/3), assustada com a reação de bolsonaristas que desprezam a ciência e eram contra a sua indicação pelo Centrão.

Ela se reuniu no domingo (14/3), por quase quatro horas, com Bolsonaro e o próprio Pazuello – do qual cuidou quando este foi infectado pela Covid-19. E recusou o convite para o cargo em uma segunda reunião com o presidente, na segunda-feira, com a presença do 01 – o senador Flávio Bolsonaro. Segundo ela, não houve “convergência técnica” com as ideias do presidente para a pasta.

A médica contou em entrevistas às TVs CNN e Globonews que foi alvo de ataques virtuais, sofreu várias ameaças de morte e duas tentativas de invasão no hotel em que estava hospedada. O estabelecimento, no entanto, nega a ocorrência. “Eu fiquei assustada como, nesse momento de tristeza, uma pessoa da sociedade civil, que está aqui para o bem do país, sofre esse tipo de agressão. Tem muita gente querendo o mal do Brasil”, lamentou.

A cardiologista disse que seu telefone foi divulgado em grupos de WhatsApp e ela foi obrigada a adotar um esquema de segurança após ela e seus familiares receberem ameaças de morte pelas redes sociais. Em entrevista à colunista Bela Megale, de O Globo, a médica revelou que está “com carro blindado e segurança”.

À Globonews, ela também disse que contou ao presidente sobre as ameaças; ele minimizou. ‘Faz parte do trabalho’, teria dito Bolsonaro, que admitiu receber uma enxurrada de informações contra ela. O nome da médica foi avalizado por Artur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, com apoio de outros parlamentares do Centrão e integrantes do Judiciário, mas vinha sofrendo críticas por parte da ala bolsonarista.

“Meu partido é o Brasil e a saúde das pessoas”

Na avaliação da médica formada pela Universidade de Brasília (UnB) e professora da Universidade de São Paulo (USP), o agravamento do quadro da pandemia levou o país ao epicentro global da crise sanitária. Durante a entrevista à CNN, a médica disse que não tem medo de ataques e, como médica e pelo juramento que fez, não tem bandeira partidária e não escolhe o paciente.

Não tenho ligação política. Meu partido é o Brasil e a saúde das pessoas. Cuido de pessoas da esquerda e da direita e continuarei cuidando. Eu não tenho medo e é por isso que estou aqui. A causa é muito maior”, frisou.

Médica cardiologista do Incor-USP foi cotada para assumir lugar de Pazzuelo no Ministério da Saúde (Reprodução de Internet)

Para a cardiologista, o governo precisa abandonar o discurso de uso da cloroquina e do tratamento precoce, porque são ineficazes e isso poderá provocar consequências cada vez piores. “O Brasil precisa de uma liderança na Saúde. Espero que o presidente a encontre, senão a dívida que o país vai pagar vai ser imensurável”, afirmou. Ela contou que, no início da pandemia, chegou a receitar cloroquina, mas, diante dos resultados de estudos que mostram a ineficácia do medicamento, abandonou a ideia.

Na avaliação da profissional de saúde, o governo errou no combate à pandemia desde o início e precisa “virar essa página o mais rápido possível”, alinhando o discurso de forma nacional e buscar uma solução para o aumento de leitos nos hospitais e a compra em massa de vacinas para um amplo programa de imunização.

Acho que o Brasil, até o momento, errou no combate à pandemia. E ele precisa de uma virada de entendimento e de ações. O governo subestimou a doença no início e está pagando o preço agora. Está correndo atrás da vacina de maneira tardia”, destacou.

Ludhmila ainda lamentou o abandono do discurso negacionista e de crítica ao lockdown (bloqueio total), necessário neste momento para evitar um colapso nos hospitais. “O que não está dando e tem que ser mudado”, afirmou. Também criticou a polarização e frisou que o lockdown salva vidas. “Essa maldade usada em redes sociais, é um atraso para o Brasil. Essa narrativa não tem lógica e não tem fundamento”, afirmou.

Apesar das críticas, Ludhmila disse que foi uma grande oportunidade conversar com o presidente e falar sobre o que ela pensa. “Eu fiquei muito honrada pelo convite do presidente Bolsonaro, mas este não é o momento para que eu assuma a pasta, principalmente por motivos técnicos”, afirmou. Segundo ela, o combate à pandemia está acima de qualquer ideologia e é preciso que ele seja pautado pela ciência.

Críticas ao governo em jornal uma semana antes

Uma semana antes de ser convidada para o cargo, em entrevista recente ao Jornal Opção (GO), Ludhmila Hajjar criticou a condução da pandemia no Brasil. A médica fez uma avaliação categórica sobre o enfrentamento da pandemia: “O Brasil está fazendo tudo errado na pandemia e está pagando um preço por isso”.

Foi uma ineficiência na adoção de medidas que poderiam ter minimizado muito a prevalência da doença. Hoje temos um número muito pequeno da população vacinada. Isso tudo tem um resultado hoje catastrófico, que estamos, infelizmente, assistindo no nosso dia a dia”, completou.

Ela também criticou o tratamento precoce: “Boa parte dos médicos que defendem tratamento precoce para Covid-19 são completos ignorantes na profissão”. Ludhmila frisou a importância da vacinação e a necessidade urgente de rever as formas de condução da pandemia.

O que realmente faltou foi ciência, combater o negacionismo, união das classes. Não tem sentido, no momento em que as pessoas estão morrendo por falta de leitos, governador e presidente ficarem trocando farpas”, avaliou.

Veja abaixo trechos da entrevista da médica ao jornal Opção, de Goiás:

Colapso hospitalar: “O que estamos assistindo agora é realmente uma onda de aceleração no número de casos e do número de mortes com, mais uma vez, o colapso do sistema de saúde. Ao mesmo tempo que avançou a terapia e avançou o diagnóstico, melhorou o rastreio dos casos, a desaceleração e a incongruência nas medidas sanitárias foram, infelizmente, responsáveis pelo o que estamos vivendo hoje.”

Escassez de vacinas: “Não tivemos uma política de adoção das vacinas que pudesse ter atendido a população de uma maneira geral. Hoje temos um número muito pequeno da população vacinada. Isso tudo tem um resultado hoje catastrófico, que estamos, infelizmente, assistindo no nosso dia a dia. (…) O Brasil deveria estar hoje com cinco ou seis vacinas disponíveis. E o Brasil não fez isso. Mas ainda dá tempo de fazer. E é o que temos cobrado incessantemente.”

Medidas restritivas: “É óbvio que o isolamento social tem de ser preservado, todas as pessoas têm de estar aderentes. Agora, se é lockdown ou toque de recolher depende do Estado. Depende do Estado e depende do município. Mas isolamento social tem de ser para todos. O problema é que as pessoas perderam o crédito na classe política, perderam o crédito em muitos órgãos de imprensa, cada um falando uma coisa.”

Lockdown nacional: “Não concordo com a medida. Discordo completamente. O Brasil é um país continental que tem 27 Estados. Cada Estado tem a sua epidemiologia local, a sua realidade, o seu número de leitos. A questão de fazer lockdown e toque de recolher tem de ser tratado Estado por Estado, semana a semana, pelos técnicos e cientistas locais. Não acredito que deve haver uma medida nacional única que sirva para todo o Brasil. Tem de ser tratado individualmente.”

União Nacional: “É lamentável ver governador brigar com o presidente, presidente brigar com governador. Toda esta energia tinha de ser usada no combate à pandemia. Este é o problema. Isto não está sendo feito. No que o povo vai acreditar? Na propaganda da televisão, no que o presidente fala, no que o Ministério da Saúde orienta ou no que o governador fala? O discurso tem de ser um só.”

Kit Cloroquina: “Imagine se só o Brasil teria a cura dessa doença! Só os instagrammers, tuiteiros e os youtubers brasileiros saberiam como tratar a fase precoce. Isso é uma vergonha internacionalmente discutida. Sabemos que cloroquina não funciona há muitos meses, que azitromicina não funciona há muitos meses, que ivermectina não funciona há muitos meses. Mas ainda tem esses kits por aí. Tem conselhos que defendem. Tem conselhos que não negam. É uma conjunção de fatores – o não conhecimento e a não adoção de práticas baseadas em evidências científicas – que só coloca a vida das pessoas em risco.”

Máscara e pesquisa alemã citada por Bolsonaro: “A pesquisa científica da Alemanha citada é uma vergonha. É um questionário. Não teria nem que ser discutido. Quem faz isso refuta tudo que há de ciência. A máscara e a vacina são as duas melhores maneiras de se prevenir. É mais um fruto da falta de conhecimento, que é o que estamos – de uma maneira lamentável – vivendo.”

É possível reverter os erros? “Não digo reverter, mas minimizar a gravidade, reduzir o tamanho da perda. Tem de haver uma transformação da sociedade como um todo. A pessoa, o paciente, o cidadão tem de ter um engajamento na sua vida, sobre a sua saúde. Isso é fato. A começar da responsabilidade de cada um. Segundo, tem de haver uma mudança de comportamento básico da classe política de uma maneira geral. É momento de união. Eu, como médica, estou na linha de frente desde o início da pandemia no Brasil. Fico extremamente triste quando vejo que, ao invés de estarem unidos, nossos líderes estão discutindo para ver quem deu e quem não deu recurso. Não tem cabimento! Agora é hora de olhar para as pessoas, para os pacientes, para os hospitais e para o sistema de saúde. Para o sistema de transporte, para as medidas protetivas, para a aquisição de vacinas. Tem de haver um choque nessa história. Parece que as pessoas estão adormecidas.”

Ex-médica de Pazuello e outros políticos

Não foi a primeira vez que a cardiologista Ludhmila Abrahão Hajjar foi apontada para assumir a gestão do ministério. De acordo com o jornal Correio Braziliense, ela já teve seu nome cotado para substituir o então ministro Luiz Henrique Mandetta.

Ela não assumiu o Ministério da Saúde em abril de 2020, mas passou o ano na linha de frente da Covid-19. Foi uma das técnicas convidadas por Bolsonaro para discutir tratamentos e protocolos adotados contra a Covid-19. Desenvolveu pesquisas e tratou pacientes, incluindo Eduardo Pazuello, quanto este testou positivo para o vírus.

A médica ganhou destaque com uma tese de doutorado que mudou o protocolo de cirurgias cardíacas, na qual constatou que o uso de 30% menos de sangue transplantado no procedimento melhora o prognóstico do paciente. O estudo foi publicado na revista Jama (Journal of American Medical Association).

Formada pela Universidade de Brasília (UnB), Ludhmila é especialista em Clínica Médica, dirigindo a própria clínica em São Paulo, cardiologia, terapia intensiva e medicina de emergência, além de atuar como coordenadora de cardio-oncologia do InCor. É também professora da Associação de Cardiologia da Faculdade de Medicina da USP e diretora de tecnologia e inovação da Sociedade Brasileira de Cardiologia, além de participar de atividades assistenciais, de ensino e pesquisa.

Natural de Anápolis (GO), participou das decisões de enfrentamento junto ao prefeito Roberto Naves (PP), como conselheira médica. Ela atuou, ainda, como coordenadora da UTI Cardio Covid do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e exerce a especialidade no Incor e na rede de hospitais Vila Nova Star, tendo longa passagem, ainda, pelo Sírio Libanês.

Com CNN, Globonews e Correio Braziliense

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