Apesar de ter assinado em 1948 a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Brasil protagonizou, durante as décadas de 1960 e 1970, casos cruéis de tortura promovidos pelo Estado. A prática teve início a partir de 1964, quando o governo democrático sofreu um golpe de estado militar e foi sumariamente deposto.

Até hoje, diariamente, em todo planeta, pessoas são sistematicamente torturadas, independentemente do sexo ou da idade. A prática ocorre, sobretudo, em países com regimes ditatoriais, embora também sejam registradas em democracias já consolidadas.

Um exemplo foi o escritor Marcelo Rubens Paiva, filho de Rubens e Eunice Paiva e autor do livro ‘Ainda Estou Aqui’, que deu origem ao filme consagrado  pelo Oscar foi agredido durante um desfile em São Paulo. Marcelo é cadeirante desde que sofreu um acidente e ficou tetraplégico. Mesmo assim, continuou escrevendo e sua obra mais recente propagou para o mundo inteiro os horrores da ditadura no Brasil.

As sequelas físicas e psicológicas desta prática vil e covarde perduram nas vítimas até os dias de hoje, além de arranhar, irrevogavelmente, a imagem do nosso país perante os olhos do mundo”, diz o professor e escritor Aroldo Veiga.

Por isso, o Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura (26 de junho) figura como um “contragolpe no obscurantismo” que se alastra pelo mundo, nesses tempos em que a desinformação e o negacionismo parecem estar em moda.

É preciso bater, incansável e obstinadamente, na tecla contra o retrocesso e a favor das conquistas humanitárias. Só assim, resistindo e rememorando a nossa história, é possível não repetir os erros do passado, e continuar evoluindo no caminho da civilidade e do humanismo.

O psicólogo e psicanalista Marcos Torati enaltece a força das famílias enlutadas pela ditadura e analisa . “A busca por respostas possibilita a ritualização do luto, um direito subtraído pela ocultação do cadáver. Nesse caso, o tempo não cura, a verdade não aparece e a justiça falha e tarda”, afirma. “São os atos de amor para com os desaparecidos que sustentam a silhueta humana do corpo que a Ditadura Militar tentou apagar”.

Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura é comemorado em 26 de junho, por iniciativa da Organização das Nações Unidas que, nesta data, no ano de 1987, promoveu a assinatura da Convenção contra a Tortura, Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes por parte dos Estados-membros da Organização, da qual o Brasil é signatário.

Para marcar a data e reforçar a luta contra a tortura e a defesa dos direitos humanos, Vida e Ação traz dois artigos de especialistas sobre o tema. Confira!

Palavra de Especialista

Ainda Estou Aqui: o luto familiar dos entes de desaparecidos políticos

Por Marcos Torati*

Com a vitória no Oscar do filme brasileiro “Ainda Estou Aqui”, que trata do luto da Família Paiva pela perda de Rubens Beyrodt Paiva – sequestrado e morto no DOI-CODI em 1971 –, vem à tona a urgência de debater os lutos não resolvidos da Ditadura Militar.

Três desafios afligem a família em um luto inconcluso. Primeiro, a ocultação do corpo e da verdade força a família do desaparecido a escolher entre apostar na esperança do regresso ou presumir a morte para poder seguir a vida em frente. Exige-se dela uma tarefa mais complexa do que no luto comum: em vez de processarem a perda em razão da morte constatada, aqui o dilema é “manter vivo” ou “matar” subjetivamente uma figura, da qual desconhecem o paradeiro. Portanto, o sumiço do corpo prolonga a prática da tortura, agora infligida atemporalmente aos familiares. 

Seguidamente, outro aspecto desse luto traumático é o preconceito. Como os discursos oficiais da Ditadura Civil-Militar estereotipavam os opositores do governo como “subversivos” e “rebeldes”, até hoje os familiares das vítimas sofrem discriminação em função desse legado narrativo. Sua busca por justiça continua sendo censurada e criticada como um ato de defesa em prol de “criminosos”.

Quando a Doutrina de Segurança Nacional disseminou a ideia de que as pessoas presas, mortas, torturadas, ocultadas e desaparecidas “mereceram” esse destino por ameaçarem à pátria, a dor dos familiares é invalidada, a justiça é negada e o desejo de reparação é obstado. 

Por fim, a sensação de impunidade é outro trauma que entra no processo de elaboração do luto familiar. As autoridades, ao abnegarem a responsabilidade pelos crimes cometidos no período da Ditadura, perpetuam o ciclo de dor e de violência. Sendo assim, a resiliência interna das famílias é a única arma contra a opressão e a injustiça.

Tais famílias tendem a se sentir desamparadas em razão da contenção solitária do próprio trauma. Por isso, a literatura, os filmes, as peças teatrais, os protestos e os movimentos de resistência, além de catárticos, proporcionaram alívio à sensação de loucura familiar imposta pelas deslegitimações da Ditadura Civil-Militar.

Romper o pacto de medo

Nesse cenário, as famílias que rompem com o pacto de medo atestam publicamente sua sanidade, revelando assim a verdadeira ameaça da sociedade: o governo. Se precisam ocultar fatos e corpos, atestam tacitamente que são criminosos. 

Enfrentar o silenciamento é essencial para construir uma ressignificação dos fatos, produzindo uma memória coletiva sobre os eventos traumáticos e fantasmáticos. Desse modo, o sofrimento pode ser retirado da sensação de ser um delírio pessoal, ganhando assim um caráter de realidade que possibilita novas inscrições psíquicas. Através da realidade pessoal compartilhada, o processo de luto das famílias pode ser facilitado.

Por meio da relação com outros interlocutores, o testemunho familiar perde o efeito do desmentido, da negação da tortura, da morte e da desqualificação realizada pelo sistema necropolítico da Ditadura. A justiça, enquanto vingança sublimada, requer agressividade; e a capacidade de resistir às perversões do Estado evidencia a força interna das famílias enlutadas.

Com a validação social e jurídica dos depoimentos, a família alivia o fardo de sustentar sozinha a memória do desaparecido, agora localizado no domínio público. Afinal, a história de vida de um desaparecido é um capítulo inacabado, possui começo e meio, mas sem os ritos e símbolos e fatos que confirmam o seu fim. É um nome sem corpo, um morto sem a celebração final da passagem pelo mundo que ampara a elaboração sadia do luto.

Em que medida a busca por respostas influencia o equilíbrio emocional dos familiares?

Apesar de ser torturante emocionalmente, o sofrimento da busca por respostas pode ser a forja do trabalho de luto. Quando a família mobiliza todos os seus esforços para solucionar o enigma do desaparecimento, ela pode pacificar os sentimentos de culpa provocada pela inércia e resignação em razão do medo de represálias. 

A investigação empírica do desaparecimento permite à família concluir a separação entre fantasia e realidade, e entre a descoberta e o que foi contado, deduzindo a verdade pelo reconhecimento da mentira. Quando ela atravessa o rochedo das omissões, ocultações e falácias, passando pelo instante de ver, compreender e concluir dedutivamente, o status de desaparecido pode ser alterado para morto.

Presumir a morte, por mais difícil que seja, possibilita preservar a memória em detrimento da esperança do retorno. Assim, a figura desaparecida pode ser retirada desse limbo subjetivo, do lugar de ser um morto-vivo, um ausente-presente, um ente fora das coordenadas do espaço-tempo, que se presentifica eternamente porque a família foi privada do direito de simbolizá-lo no reino dos mortos. 

Portanto, a busca por respostas possibilita a ritualização do luto, um direito subtraído pela ocultação do cadáver. Nesse caso, o tempo não cura, a verdade não aparece e a justiça falha e tarda. Tudo isso convoca os familiares a agirem ativamente para concluir o luto do desaparecido, construindo artificialmente, a partir dos próprios esforços, os ritos de passagem que possibilitam admitir a perda.

Em última análise, através do teste de realidade, o psiquismo é capaz de criar uma representação simbólica para a morte a partir da noção do corpo sem vida. Contudo, a noção de “desaparecimento” é um conceito irrepresentável para a mente, algo inominável e vazio de sentido, tal qual ao conceito de “nada”. Contudo, são os atos de amor para com os desaparecidos que sustentam a silhueta humana do corpo que a Ditadura Militar tentou apagar.

*Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, com especialização em psicanálise (abordagem winnicottiana) e psicoterapia focal. É supervisor de atendimento clínico e professor e coordenador de cursos de pós-graduação em Psicologia e Psicanálise.

Palavra de Especialista

Sequelas da ditadura perduram nas vítimas até os dias de hoje

Por Aroldo Veiga*

Sofrimento, angústia, dor, suplício, tormento. São palavras usadas na tentativa de se definir tortura, um termo oriundo do latim que faz alusão ao ato de torcer ou deformar. Provavelmente você, assim como eu, nunca sofreu tal desprazer. E ainda que houvesse sofrido, não seria capaz de encontrar, na língua portuguesa, uma só palavra capaz de descrever o verbo em toda a sua plenitude, por maior que seja o seu acervo lexical, imaginativo e de dedução.   

Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura é comemorado em 26 de junho, graças a uma iniciativa promovida pela Organização das Nações Unidas que, nesta data, no ano de 1987, promoveu a assinatura da Convenção contra a Tortura, Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes por parte dos Estados-membros da Organização, da qual o Brasil é signatário.

Diariamente, em todo planeta, pessoas são sistematicamente torturadas, independente do sexo ou da idade. A prática ocorre, sobretudo, em países com regimes ditatoriais, embora também sejam registradas em democracias já consolidadas.

O Brasil, apesar de ter assinado em 1948 a Declaração Universal dos Direitos Humanos, protagonizou, durante as décadas de 1960 e 1970, casos cruéis de tortura promovidos pelo Estado. A prática teve início a partir de 1964, quando o governo democrático sofreu um golpe de estado militar e foi sumariamente deposto.  

A data marcou, por todo país, o início de uma sucessão de barbaridades em larga escala, que ia desde o sequestro de pessoas contrárias ao regime até prisões e torturas brutais que, por vezes, evoluíam para mutilações e assassinatos. Tais práticas se intensificaram a partir de 1968, com a decretação do AI-5, o mais repressivo ato institucional promulgado pelo governo militar.

Mais de quatrocentos brasileiros – inclusive mulheres e crianças – entraram para as estatísticas oficiais de mortos e desaparecidos, em que pese as mais de mil ossadas encontradas em uma só vala na cidade de São Paulo. Estima-se que pelo menos vinte mil pessoas tenham sofrido torturas durante o regime militar no Brasil, a maioria em paus-de-arara e cadeiras do dragão. As sequelas físicas e psicológicas desta prática vil e covarde perduram nas vítimas até os dias de hoje, além de arranhar, irrevogavelmente, a imagem do nosso país perante os olhos do mundo.      

O Brasil, que em sua Constituição de 1988 prevê o crime de tortura como inafiançável, não tinha, desde a sua redemocratização, há cerca de quatro décadas, um governo que celebrasse a tortura, fato que torna o dia de hoje ainda mais relevante. Nesta data, por todo mundo, atividades são realizadas no sentido de se promover suporte emocional, jurídico e material aos vitimados.    

Além disso, a data figura como um contragolpe no obscurantismo que se alastra pelo mundo, nesses tempos em que a desinformação e o negacionismo parecem estar em moda. Por tudo isso, é preciso enaltecer a importância deste dia e bater, incansável e obstinadamente, na tecla contra o retrocesso e a favor das conquistas humanitárias. Só assim, resistindo e rememorando a nossa história, é possível não repetir os erros do passado, e continuar evoluindo no caminho da civilidade e do humanismo.   

* Aroldo Veiga é professor, escritor, especialista em Língua, Linguagem e Literatura e autor do livro “Trono de Cangalha”.

Com Assessorias

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