Embora praticamente resolvido pela Polícia Civil, ainda há muito o que esclarecer no parricídio de Itaperuna (RJ), em que um adolescente de 14 anos matou a família inteira e ainda foi à delegacia denunciar o desaparecimento do pai, da mãe e do irmãozinho de apenas 3 de idade. Para além da investigação policial, é preciso entender o perfil psicológico do adolescente, conhecer a dinâmica da família e os conflitos que culminaram em ato tão extremo.
A Criminologia é uma ciência social multidisciplinar que estuda o crime, o criminoso, a vítima e o controle social, buscando entender as causas, consequências e formas de prevenção da criminalidade. Ela utiliza métodos empíricos para analisar o fenômeno criminal, investigando fatores sociais, psicológicos, biológicos e ambientais que contribuem para a ocorrência do crime.
Ao se avaliar especificamente os fatores psicológicos, é preciso incluir nas investigações a possibilidade de um quadro de psicopatia, diante da frieza emocional e ausência de remorso com que o adolescente confessou os crimes. É no que acreditam profissionais de saúde mental ouvidos pelo Vida e Ação sobre o caso que chocou a cidade de Itaperuna e tem repercutido em todo o país nos últimos dias.
De acordo com o jovem médico Iago Fernandes, pós-graduado em Psiquiatria da Infância e Adolescência, o adolescente de Itaperuna apresenta traços de psicopatia juvenil, associados na quinta edição do ‘Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais’ (DSM-5), ao transtorno de conduta com especificadores de frieza emocional — os chamados callous-unemotional traits.
Pensando nos critérios diagnósticos, há sinais de alerta: ausência de empatia, dificuldade em sentir culpa, manipulação e desprezo por regras sociais. Essas características, quando presentes desde a infância, acendem o sinal para um padrão persistente de comportamento antissocial — como mostram as pesquisas sobre psicopatia”, ressalta.
Mesma opinião tem a psiquiatra Danielle Admoni, especialista em Infância e Adolescência e colunista do Portal Vida e Ação, ao analisar o perfil do adolescente a partir das reportagens publicadas na imprensa.
É um caso bastante assustador e sugere uma personalidade antissocial, a psicopatia, por não ter realmente nenhuma empatia, nenhum remorso, e buscar justificar os meios. A proibição de viajar para ver a namorada justifica o que ele fez? E esse irmãozinho, por exemplo, ele podia estar bravo com os pais, mas e o irmão? O que tinha a ver com a história?”.
Ela ainda lembra relatos de familiares e vizinhos sobre o comportamento introspectivo do adolescente, que pode esconder um quadro de psicopatia. “A tia falou que era um menino mais quieto, que ficava na dele, o que só acaba reforçando um pouco isso. Não era um menino que dava muito trabalho, mas que de repente vai lá e faz uma coisa assustadora. Ele fala sem remorso, o que reforça ainda mais a suspeita de um transtorno de personalidade antissocial”.
Também para a psicóloga Verônica Coutinho, membro do Conselho Editorial de Vida e Ação, a psicopatia pode ser uma hipótese de diagnóstico do adolescente de Itaperuna. “Na psicopatia existe o cinismo, a insensibilidade social, a falta de empatia com o outro. Normalmente o psicopata é uma pessoa que se acha melhor do que os outros; que não liga pra nada, que na infância, por exemplo, pode machucar algum bicho”,
Para Verônica, também é preciso investigar quadros de depressão ou de bipolaridade e o contexto familiar em que o jovem estava inserido. “Existe a predisposição, por exemplo, para a bipolaridade, tipo 1, tipo 2, e para a depressão. Um lar realmente tóxico, desestabilizado, desestruturado, pode ser gatilho para esse tipo de doença. A bipolaridade, por exemplo, e outros transtornos de humor aparecem nessa fase de 14 aos 25 anos. É a fase aonde mais se tem um gatilho”, ressalta.
A psicóloga Rosângela Sampaio, também colunista do Vida e Ação, avalia que depressão, transtorno de conduta, traumas e até psicopatias infantis podem se manifestar cedo. “Mas com intervenção correta, podem ser acompanhados e tratados. Eles precisam ser acolhidos com responsabilidade, escuta e acesso ao cuidado”, ressalta.
‘Nenhuma criança nasce com vontade de matar’
Mas antes de rotular, é preciso compreender, na opinião dos especialistas. “Nenhuma criança nasce com vontade de matar. Por isso, é urgente olhar para as raízes. Esse adolescente vivia conflitos com os pais por causa de um namoro virtual, tinha acesso a armas em casa, tomou suplemento para se manter acordado a noite toda e, segundo a polícia, agiu com um grau de planejamento incomum para sua idade”, diz o médico Iago Fernandes, em no artigo publicado no Vida e Ação.
O caso de Itaperuna choca porque é raro, mas também escancara o despreparo coletivo diante do sofrimento psíquico silencioso que tantos adolescentes carregam. Adolescentes não explodem do nada. Eles implodem por anos antes disso. Precisamos escutar os silêncios deles — antes que esses silêncios virem tragédia”, diz.
Isso não é normal — nem emocional, nem moralmente. Algo muito grave já estava adoecido dentro desse garoto, muito antes dos tiros acontecerem. Quando um adolescente é capaz de cometer um ato tão extremo, com frieza, premeditação e ausência de remorso, é preciso investigar com cuidado o que está por trás”, diz o especialista.
Contexto familiar precisa ser investigado: entendendo os sinais
Precisa investigar um pouco mais a história de vida dessa família. Não dá para falar outra coisa sem conhecer o menino, mas sugere realmente uma questão familiar bem importante, de ninguém ter percebido os sinais e ter levado ele para um acompanhamento. Ele deve ter feito outras coisas estranhas ao longo da vida que talvez não foram percebidas”, avalia a psiquiatra Daniella Admoni.
A psicóloga Rosângela Sampaio adverte que os sinais não podem ser naturalizados ou atribuídos apenas à “fase da adolescência” e explica como identificar que um adolescente apresenta um comportamento compatível com algum transtorno grave de personalidade ou de humor.
Adolescentes não adoecem sozinhos. Eles são reflexo dos contextos em que estão inseridos. A violência, nesses casos, não nasce de um dia para o outro. Ela vai sendo construída em silêncio, muitas vezes com sinais que aparecem no comportamento: isolamento, irritabilidade constante, desmotivação, mudanças bruscas de humor, queda no rendimento escolar, discursos de desesperança ou de ódio direcionado à família.
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Diante da comoção social em torno do caso do parricida de Itaperuna, Vida e Ação retomou a série ‘Adolescentes’, do Vida e Ação, que tenta investigar o por que de tanta violência nessa geração e, sobretudo, como nós, adultos, devemos aprender a lidar com eles, muitas vezes até mesmo para ajudá-los a diminuir o seu sofrimento psíquico e evitar tragédias como esta.
Frieza ou sofrimento psíquico crônico?
Por Iago Fernandes, médico pós-graduado em Psiquiatria da Infância e Adolescência*
Comportamentos assim não surgem do nada. Eles podem estar relacionados a distúrbios no desenvolvimento emocional, experiências de negligência afetiva e à ausência de vínculos seguros com os cuidadores (no caso, os pais).
Quando esse vínculo é falho ou inconsistente, a criança pode aprender a bloquear emoções como mecanismo de sobrevivência. Mas esse bloqueio cobra um preço alto na adolescência.
No entanto, a resposta não está apenas na psiquiatria. A sociologia também ajuda a compreender. Vivemos em uma sociedade que banaliza a violência, isola adolescentes, hipervaloriza o imediatismo. Como esperar maturidade emocional de jovens que muitas vezes estão se criando sozinhos, sem escuta, sem apoio, sem rede?
À luz da Neurociência, há ainda que se avaliar o fator da impulsividade juvenil. O cérebro do adolescente está em formação — especialmente o córtex pré-frontal, responsável pelo controle de impulsos e julgamento moral. Por isso, é essencial diferenciar maldade de imaturidade, e frieza de sofrimento psíquico crônico. Nem todo ato violento indica um transtorno, mas todo transtorno grave não tratado pode sim resultar em violência.
A literatura científica mostra que adolescentes com traços de frieza emocional tendem a responder mal às intervenções tradicionais — mas isso não significa que estão perdidos. A adolescência ainda é uma janela de oportunidade. É nesse momento que podemos frear a progressão para um transtorno de personalidade antissocial na vida adulta.
O que fazer com alguém assim?
Primeiro: avaliar. Com equipe especializada, testes neuropsicológicos, análise da história de vida e investigação do ambiente familiar, escolar e emocional.
Segundo: tratar. Medidas socioeducativas isoladas não bastam. É necessário apoio psicológico intensivo e, muitas vezes, acompanhamento psiquiátrico.
Terceiro: prevenir. Isso só será possível com políticas de saúde mental escolar, formação de professores para identificação precoce de sinais de risco e pais que não se sintam culpados por pedir ajuda.
‘Jovens acabam ficando meio soltos na internet’
Por Danielle Admoni, psiquiatra especializada em adolescência e colunista do Portal Vida e Ação*
Uma coisa é o que as pessoas postam, outra coisa é a vida real. Mas chama muito a atenção essa questão de um menino de 14 anos ter tido essa organização, principalmente essa frieza de fazer isso com a própria família. Parece que ele passou um produto no chão para conseguir puxar os corpos (até a cisterna). Então, acho que tem uma questão bem de organização aí, de um conhecimento que não é o esperado para um menino de 14 anos.
O caso tem outras questões para a gente pensar: um menino de 14 anos que namora seis anos com uma menina, ou seja, desde os 8, que coisa louca! E será que ninguém sabia desse relacionamento? Ou seja, que tipo de acompanhamento que ele e ela têm e tinham? Quanto tempo que eles ficavam nos jogos? Como é que era o relacionamento com essa família?
Então várias questões aí que precisam ser pensadas, de como os jovens acabam ficando meio soltos por aí. A mãe era cabeleireira, o pai enfermeiro, ou seja, deveriam trabalhar bastante, mas que dá um pouco a sensação que esse menino estava meio solto,
Uma coisa importante é estar sempre próximo dos filhos, poder entender o que eles estão fazendo, o que eles gostam, com quem eles falam, quem são os amigos, que tipo de interesses que eles têm, porque tem questões realmente que precisam de uma proximidade um pouco maior, E não é na adolescência isso vem desde lá de trás, isso é criado desde a infância e é mantido na adolescência e na vida adulta. Não adianta chegar na adolescência e querer entrar na vida da pessoa e saber tudo.
‘Adolescentes não adoecem sozinhos’
Por Rosângela Sampaio, psicóloga e ex-colunista do Vida e Ação*
Casos extremos como esse em Itaperuna nos chocam profundamente, mas também nos convocam a uma reflexão urgente sobre a saúde mental dos adolescentes e os sinais que muitas vezes são ignorados ou mal interpretados.
Na adolescência, o cérebro ainda está em desenvolvimento, especialmente as áreas responsáveis por controle de impulsos, empatia e tomada de decisões. Quando esse desenvolvimento ocorre em um ambiente familiar disfuncional, sem afeto, sem escuta e, muitas vezes, marcado por violência ou negligência emocional, o risco de adoecimento mental se intensifica.
É essencial que os pais compreendam que oferecer cuidados “básicos” não é o suficiente. A saúde emocional exige presença real, diálogo, vínculo, e a capacidade de reconhecer quando sozinhos não conseguem ajudar e precisam buscar suporte especializado.
Prevenir tragédias como essa começa com uma mudança de mentalidade: precisamos parar de silenciar o sofrimento dos jovens e começar a tratar a saúde mental com a mesma seriedade que tratamos a saúde física. E, por fim, lembrar que um adolescente que chega a esse ponto é um grito extremo, não só de dor individual, mas de falhas coletivas em escutar, acolher e cuidar.
Lar tóxico pode ser o gatilho para transtornos de humor
Por Verônica Coutinho, psicóloga e ex-colunista do Portal Vida e Ação*
A adolescência é um período muito significativo e a saúde mental nessa etapa da vida é negligenciada. As pessoas normalmente não acreditam que o jovem, o pré-adolescente ou até a criança estejam em depressão, negligenciam isso. Dizem: “Ah, é preguiça, sabe, você tem que levantar da cama, você tem que fazer isso, tem que fazer aquilo”.
A depressão nem sempre vem acompanhada desse tipo de comportamento, de ficar deitado na cama, por exemplo, que é o clássico que as pessoas imaginam. Normalmente vem muito em forma de redução de foco, diminuição de nota escolar, do desempenho escolar, estado de irritação e baixa autoestima. Então, esses comportamentos é que precisam ser observados em crianças e adolescentes.
A bipolaridade, por exemplo, e outros transtornos de humor aparecem nessa fase de 14 aos 25 anos. É a fase aonde mais se tem um gatilho. Existe a predisposição genética para esses transtornos graves, mas o ambiente também tem muita relação com isso. Então, se você tiver predisposição genética, mas não tiver um ambiente tóxico, você pode até se manter com uma saúde mental em dia. Então, como eu falei acima, resume os aspectos que tem que ser observados e a importância de um ambiente estruturado.