Apenas 14% dos brasileiros já ouviram falar da síndrome que, no Brasil, mata mais do que infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral (AVC) e câncer de mama. É a sepse, conhecida popularmente como infecção generalizada, a doença que matou meu pai com apenas 51 anos e que tira a vida de 230 mil brasileiros por ano. Como a do ex-vocalista da banda Dominó, Ricardo Bueno, de 40 anos, que faleceu no último dia 16, no Hospital Municipal Ermelino Matarazzo, em São Paulo (SP), após uma septicemia (infecção generalizada), causada por um problema odontológico.
A nova pesquisa encomendada pelo Instituto Latino Americano de Sepse (Ilas) ao Datafolha mostra o desconhecimento da população sobre um problema gravíssimo que deixa ainda mais vulneráveis os pacientes em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs). “A sepse é um importante problema de saúde pública no mundo, com estimativa de 400 mil casos/ano no Brasil, que acarretam cerca de 200 mil óbitos e elevados custos financeiros para o país. A síndrome é responsável por 25% da ocupação de leitos em UTIs no Brasil. Atualmente é a principal causa de morte nas UTIs e uma das principais causas de mortalidade hospitalar tardia, superando o infarto do miocárdio e câncer de mama”, disse o médico intensivista Luciano Azevedo, presidente do Ilas.
Segundo levantamento organizado por pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e do (Ilas), a cada ano morrem mais de 230 mil pacientes adultos nas UTIs em decorrência da doença. A estimativa é sombria: 55,7% dos pacientes internados com sepse vão a óbito. “A prevalência de 30% de sepse não é considerada tão alta. Ela já havia sido identificada em estudos anteriores. Já a mortalidade por sepse no Brasil é altíssima, principalmente pelo fato de ser uma doença passível de prevenção em grande parte dos casos”, disse Flávia Machado, professora do Departamento de Anestesiologia, Dor e Medicina Intensiva da Unifesp e coordenadora da pesquisa.
Segundo Flávia Machado, a sepse é desencadeada por uma resposta desregulada do organismo na presença de um agente infeccioso. O sistema de defesa passa a combater não só esse agente, mas também o próprio organismo, gerando disfunção dos órgãos. Tanto as infecções de origem comunitária (40% dos casos) como aquelas associadas à assistência à saúde (60%) podem evoluir para sepse.“A vacinação pode prevenir sepse comunitária. As estratégias de controle de infecção hospitalar podem prevenir parte da sepse hospitalar. São medidas simples e a falta delas mostra que o sistema de atendimento à saúde não está bom”, disse à Agência Fapesp.
Problemas bucais podem causar infecções hospitalares
A prevenção de infecções hospitalares provocadas por problemas bucais já é um assunto bastante discutido atualmente. Porém, a prática não é aplicada com tanta frequência. Poucos hospitais contam com cirurgiões-dentistas em seu corpo clínico. Pacientes com doenças sistêmicas e principalmente os que estão internados na UTI estão mais suscetíveis a infecções, o que torna o atendimento odontológico imprescindível. “A infecção mais comum causada por problemas bucais é a pneumonia nosocomial, onde as bactérias presentes na boca são aspiradas e levadas diretamente ao pulmão”, afirma a cirurgiã-dentista Letícia Mello Bezinelli, coordenadora do curso de PG de Odontologia Hospitalar do Hospital Israelita Albert Einstein.
A atuação de dentistas na UTI dos hospitais tem sido amplamente discutida. Pacientes que se encontram internados, muitas vezes, apresentam higiene bucal deficiente, o que propicia a colonização da cavidade oral por microrganismos chamados patogênicos, que são aqueles que têm capacidade para levar ao desenvolvimento de doenças, principalmente as respiratórias. “A quantidade de microrganismos patogênicos na cavidade oral aumenta com o tempo de internação. Caso a higiene bucal não seja realizada adequadamente, a boca acaba se tornando um reservatório desses patógenos. Em paralelo, ocorre também o aumento de patógenos respiratórios que colonizam o biofilme bucal”, explica Letícia.
Estudos mostram que existem estreitas relações entre infecções pulmonares e a condição bucal. A pneumonia associada à ventilação mecânica é responsável por altas taxas de morbidade, mortalidade e aumento expressivo dos custos hospitalares. “Uma das causas da pneumonia nasocomial é a aspiração do conteúdo presente na boca e na faringe, como saliva e placa, cheias de bactérias. Portanto, é necessário a manutenção da saúde bucal, além da maior integração da Odontologia e da Medicina, visando o tratamento global e dos pacientes, a prevenção de doenças e maior humanização das pessoas internadas.”
O projeto de lei PL 2776/2008 torna obrigatória a presença de dentistas em hospitais públicos e privados de médio ou grande porte em que haja pacientes internados ou que atendam a doentes crônicos, para prestar atendimento dentro da UTI e demais locais que haja necessidade. “Essa lei já tramita há alguns e sofreu modificações. Em 2016, teve parecer favorável da senadora Ana Amélia Lemos, mas ainda não foi sancionada pelo presidente.” A Resolução RDC no 7, de 24 de fevereiro de 2010 da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) dispõe sobre os requisitos mínimos para funcionamento de UTI e o Artigo 18 descreve os serviços à beira do leito que devem ser garantidos, por meios próprios ou terceirizados, entre os quais consta a assistência odontológica.
Benefícios da presença de dentistas em hospitais
Entre os benefícios da presença de especialistas em Odontologia nos hospitais estão a melhora da qualidade de vida do paciente; redução do risco de infecção e do tempo de internação; menor quantidade de prescrição de medicamentos; diminuição da indicação de nutrição parenteral, já que o paciente consegue se alimentar pela boca, e redução dos custos de internação são alguns dos benefícios quando existe um cirurgião-dentista na equipe multidisciplinar do hospital.
“Uma condição bucal comprometida pode afetar negativamente a condição sistêmica da pessoa, principalmente se ela estiver imunocomprometida, apresentar doenças crônicas como diabetes, problemas cardiovasculares e hepáticos, entre outras doenças. Assim, quando o cirurgião-dentista remove focos de infecção presentes na boca, colabora para minimizar o risco de infecção desse paciente que está internado”, ressalta, ao informar que este profissional minimiza efeitos colaterais de determinadas terapias, evitando morbidades decorrentes da terapia médica, diminuindo o tempo de internação.
Recentemente, foi publicado um trabalho realizado no Hospital Israelita Albert Einstein que mostrou que a inclusão do cirurgião-dentista na equipe multiprofissional do Transplante de Medula Óssea é capaz de diminuir cerca de cinco dias o tempo de internação, diminuir também em 50% a necessidade de morfina para controle da dor, sendo duas vezes menor a necessidade de alimentação parenteral. Além disso, o risco de mucosite oral, uma das complicações bucais mais comuns do tratamento oncológico, é 13 vezes menor.”
Atualmente, existem protocolos de cuidados bucais, incluindo a Laserterapia, realizados pelo cirurgião-dentista durante a quimioterapia ou radioterapia, com resultados que verificam não apenas a redução da intensidade da dor, mas também a diminuição da severidade da mucosite oral.
Dificuldades em realizar o diagnóstico mais rápido
De acordo com o estudo da Unifesp e Ilas, os profissionais de saúde de prontos-socorros, enfermarias ou UTIs também têm dificuldades no reconhecimento rápido da sepse e de suas disfunções orgânicas. Por isso, o diagnóstico de sepse é feito de forma atrasada e as horas iniciais, importantíssimas para o tratamento com antibioticoterapia e reposição volêmica, são perdidas. Os dados são do primeiro estudo nacional de pacientes com sepse atendidos em UTIs, que teve os resultados publicados na revista Lancet Infection Diseases. O trabalho é resultado de um Projeto Temático apoiado pela Fapesp.
O levantamento identificou que, embora a qualidade de atendimento varie muito de uma instituição a outra, não foi encontrada diferença significativa entre a taxa de mortalidade no sistema público (56%) e privado (55%). No geral, dos 420 mil casos tratados por ano, 230 mil terminam em morte. Para chegar a esses dados, os pesquisadores dividiram as UTIs do país em 40 estratos, de acordo com fatores como região geoeconômica, tamanho das cidades e se as instituições eram públicas ou privadas. O resultado foi a coleta de dados de 227 instituições, ou 15% de todas as UTIs brasileiras.
“Fizemos uma mostra randômica das UTIs brasileiras. Isso foi válido, pois toda vez que se fazia pesquisa em sepse no Brasil – e não conheço nenhum outro estudo brasileiro que tenha feito a amostragem dessa forma – perguntava-se se a instituição queria participar da pesquisa, o que gerava uma amostra enviesada, provavelmente com as melhores instituições apenas. A taxa de letalidade resultava em 40% e não de os 55,7% que encontramos”, disse Machado.
Uma série de fatores leva ao resultado sombrio do tratamento da sepse nas UTIs brasileiras, como falta de acesso às UTIs, diagnóstico tardio, demora do paciente na busca por serviço de saúde, tratamento inadequado, problemas de processo e falta de recursos. Vale ressaltar que a doença, quando detectada precocemente, é relativamente simples de ser tratada, necessitando basicamente da administração de antibióticos, fluidos e do monitoramento do paciente na UTI e da análise de cultura bacteriana.
“O acesso à UTI é um definidor de letalidade”, disse Flávia Machado. Ela explica que estudos baseados apenas em pacientes internados em UTIs apresentam taxas de letalidade que podem variar bastante de um país para outro conforme o número de leitos disponíveis em relação à população do país. “Quando a disponibilidade de leitos é alta, isso implica um maior número de pacientes menos graves admitidos nas UTIs, consequentemente com menor letalidade. Já em países como o nosso, onde a disponibilidade é baixa, sobretudo no sistema público, somente pacientes mais graves tendem a ser admitidos nas UTIs, com consequente aumento da letalidade”, disse.
Infecção hospitalar é alta por falta de medidas preventivas
Para evitar que uma parcela de pacientes seja excluída do tratamento intensivo, os pesquisadores defendem a necessidade de unidades intermediárias. Para eles, a ausência de unidades de cuidados intermédios na maioria dos hospitais brasileiros pode ter contribuído para uma maior permanência na UTI e, consequentemente, para uma maior prevalência de sepse.
Flávia Machado destaca ainda uma reação em cadeia desses fatores. “Cuidamos mal dos nossos pacientes. O diagnóstico também é tardio, pois as pessoas procuram o hospital tarde, a detecção da sepse é tardia e o tratamento é inadequado. Com isso, a mortalidade é muito alta. Existe ainda um grave problema de processo também”, disse a médica.
Outro fator que contribui para os quadros de sepse são as altas taxas de infecção hospitalar devido à baixa adesão às medidas preventivas. De acordo com o estudo, a maioria dos pacientes que desenvolveu sepse apresentou infecção hospitalar. De acordo com o estudo, a baixa qualidade dos cuidados nas unidades de internação regular limitaria as políticas de alta, bem como a provisão de suporte básico e monitoramento a pacientes de severidade leve a moderada. Outra causa possível da alta prevalência de sepse são as diferenças nos cuidados de fim de vida, como a quase ausência de tratamentos paliativos.
“No Brasil, decisões de fim de vida são incomuns e existem lacunas na comunicação, escassez de regulação legal, ausência de diretrizes avançadas e crenças culturais e religiosas que podem resultar em esforços desnecessários para sustentar a vida”, escreveram os pesquisadores no artigo.
Faltam medidas simples nos hospitais para conter a síndrome
Os pesquisadores desenvolveram um escore contendo oito itens necessários para tratar a sepse. Instituições que não contemplaram seis desses oito itens mostraram um aumento no risco de morte por sepse. Os itens eram: colher lactato e oxigenação do sangue (exames de laboratório), ter culturas para a detecção da bactéria, dispor de antibióticos, soro e cateter, monitorar pressão venosa (central) e ter noradrenalina.
“Note que são itens simples como antibiótico, colher culturas, dosar alguns exames que são simples, dar soro. Não precisa ter recursos elaborados. Isso diz muito das condições que temos no Brasil”, disse. A incidência de sepse é um problema mundial, tanto que em maio deste ano a Organização Mundial da Saúde (OMS), braço da Organização das Nações Unidas (ONU), aprovou uma resolução para sepse.
“Hoje, a ONU reconhece a sepse como um problema de saúde mundial. Em breve, teremos que ter um plano nacional de ação como temos para infecção hospitalar, por exemplo. Acredito que as coisas começarão a mudar, pois os países-membros da OMS, incluindo o Brasil, vão ter que tomar providências nesse sentido”, disse.
A médica Flávia Machado aponta que os dados do estudo poderão ajudar na elaboração de um plano nacional para a sepse. “Ter esses dados será importante para elaborar o plano. Queremos fazer novos levantamentos, no modelo do que fizemos, incluindo novos segmentos como pesquisa em pronto-socorro, UTIs pediátricas, neonatais e sobre infecção hospitalar”, disse.
Mais sobre a pesquisa do Datafolha
A pesquisa do Datafolha e Ilas teve como objetivo mensurar o conhecimento da população sobre a síndrome e comparar com os resultados da mesma pesquisa realizada em 2014. A primeira pergunta foi: “Já ouviu falar em Sepse?”. A resposta, embora aponte um crescimento de 100% em relação à pesquisa de 2014, ainda é preocupante: dos 2.100 entrevistados, somente 14% já tinham ouvido falar em sepse.
A pergunta seguinte foi: “O que significa sepse?”. 86% dos entrevistados não conheciam o termo sepse; apenas 6% responderam ser “a resposta grave do organismo a uma infecção”, e 4% disseram ser “infecção no sangue”. Na pesquisa desse ano, foi inserida a pergunta “Já ouviu falar no termo septicemia ou infecção generalizada?” feita apenas aos 86% dos entrevistados que apontaram não saber o que era sepse. Desses, 45% responderam ‘sim’ ao questionamento. Em seguida foi feita a pergunta estimulada: “Septicemia é”. 25% disseram ser “A resposta grave do organismo a uma infecção” e 22% “infecção no sangue”.
À questão “Na sua opinião, sepse é” foi acrescentado a alternativa: “É quando o corpo destrói os próprios tecidos e órgãos em resposta a uma infecção”, que foi escolhida por 32% dos entrevistados. 15% respondeu “uma emergência médica” (2014, 18%); 9%, “algo que mata mais pessoas do que câncer de mama e ataque cardíaco combinados” (2014, 13%); 17%, uma doença muito rara (2014, 11%); 15%, algo que você pega nos hospitais (2014, 9%); 27%, não sabe, não lembra (2014, 45%); e 2%, nenhuma das alternativas (2014, 4%).
Ao questionamento “Já ouviu falar em infarto do coração?” 99% dos entrevistados responderam SIM, e sobre “Quais são os sintomas” 88% respondeu “dor no peito que vai para o braço, suor frio e enjoo”; 29%, “paralisia de um lado do corpo”; 11%, “dor na barriga e vômitos”; 7%, “tosse e chiado no peito”; 1%, nenhuma das anteriores; e 4%, não sabe.
“A despeito da mortalidade por sepse no Brasil ser muito superior à do infarto do miocárdio, o conhecimento do público brasileiro sobre a síndrome ainda é bastante restrito. Campanhas de esclarecimento envolvendo sociedades médicas e imprensa para o público geral devem ser realizadas para minimizar o problema, porque o reconhecimento precoce e a busca imediata de auxílio médico podem impactar e ajudar a diminuir a elevada mortalidade por sepse em nosso país”, disse Dr. Luciano Azevedo.
Dados sobre sepse no Brasil e no mundo
A cada segundo alguém morre de sepse no mundo. São cerca de 30 milhões de novos casos a cada ano. Destes, seis milhões são neonatais e dez milhões por sepse materna. A síndrome permanece como causa primária de morte por infecção, apesar dos avanços na medicina moderna que incluem novas vacinas, antibióticos e cuidados críticos nos hospitais, tendo taxas de mortalidade entre 30% e 60%, dependendo do país. Estudo revela que mortalidade no Brasil por sepse grave pode superar 50%. Um quarto (25%) dos leitos de UTIs em nosso país são ocupados por pacientes com sepse grave.
Na última década, a taxa de incidência da síndrome em nosso país aumentou entre 8% e 13% em relação à década passada, sendo responsável por mais óbitos do que alguns tipos de câncer, como o de mama e o de intestino. Nosso país tem uma das maiores mortalidades de sepse do mundo. Alguns estudos epidemiológicos mostraram que a mortalidade brasileira por sepse é maior do que a de países economicamente semelhante, como a Índia e a Argentina. Uma das razões é devido ao pouco conhecimento da população sobre a síndrome, o que faz com que os pacientes com sepse sejam admitidos para tratamento em fases mais avançadas, quando o risco de óbito é maior.
Da Redação, com Agência Fapesp e Ilas