A aprovação da chamada PEC do Plasma, que poderá permitir que a iniciativa privada possa participar da coleta, produção e comercialização de plasma e hemoderivados, pode causar sérios riscos à Rede de Serviços Hemoterápicos do Brasil e ao Sistema Nacional de Sangue, Componentes e Hemoderivados. O alerta é do Conselho Deliberativo da Fiocruz, que emitiu uma nota se posicionando contra a proposta de emenda à Constituição nº 10 de 2022 (PEC 10/2022), que tramita no Senado Federal.

“A comercialização do plasma poderia suscitar ainda movimentos de exportação, o que prejudicaria os brasileiros, deixando o país vulnerável diante de emergências sanitárias”, afirma o Conselho, lembrando que hoje o SUS presta atendimento a 100% dos pacientes que necessitam de hemoderivados.

De acordo com o Conselho da Fiocruz, “a Constituição brasileira proíbe todo tipo de comercialização de órgãos, tecidos e substâncias humanas”. “A comercialização de plasma pode trazer impacto negativo nas doações voluntárias de sangue, pois há estudos que sugerem que quando as doações são remuneradas, as pessoas podem ser menos propensas a doar por motivos altruístas”.

A nota – publicada no dia 4 de outubro pela Agência Fiocruz – diz ainda que “esta prática traz riscos para a qualidade e segurança do plasma e pode ter implicações nas desigualdades sociais. Estudos sugerem, por exemplo, que a comercialização pode atrair pessoas em situações financeiras difíceis, dispostas a vender seu plasma, além de facilitar o acesso a pessoas que podem pagar, em detrimento daquelas que não têm condições”.

Polêmica em torno da votação

O assunto é polêmico e vem causando uma série de debates nas últimas semanas. A PEC do Plasma altera o artigo 199 da Constituição, que dispõe sobre as condições e os requisitos para coleta e processamento de plasma para permitir que isso seja feito pela iniciativa privada.

Pela proposta seria acrescentado no art. 199 o seguinte parágrafo: § 5º A lei disporá sobre as condições e os requisitos para coleta e processamento de plasma humano pela iniciativa pública e privada para fins de desenvolvimento de novas tecnologias e de produção de biofármacos destinados a prover o Sistema Único de Saúde.

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou no dia 4 a PEC 10/2022, por 15 votos a favor e 11 contra. A medida ainda precisa ser levada à votação no plenário do Senado. Se aprovada, será encaminhada à Câmara, onde também precisa de duas votações em plenário.

Já a Associação Brasileira de Bancos de Sangue (ABBS) – em nota oficial emitida em 6 de outubro (confira na íntegra abaixo) – diz que há um ‘mal-entendido’ e que não há qualquer forma de remuneração na proposta da PEC 10/2022. “Não se trata de pagar pelo sangue ou plasma dos doadores”, garante.

Segundo a ABBS, a decisão é um marco importante para a saúde pública e privada do país, e o primeiro passo para aumentar a oferta nacional de hemoderivados, ampliando o acesso a medicamentos e tratamentos importantes para pacientes brasileiros.

“A ideia da PEC é corrigir um dos maiores problemas de saúde pública nacional, que é a falta de produção de hemoderivados para o tratamento dos pacientes brasileiros. Trata-se de uma estratégia pensada para garantir o fortalecimento da indústria nacional, o fornecimento desses insumos para todos os pacientes, inclusive do SUS, e assim salvar ou dar qualidade de vida para milhares de pessoas”, explica Paulo Tadeu de Almeida, presidente da entidade.

Fiocruz defende Hemobras

A Fiocruz lembra que, atualmente, toda a coleta e processamento do sangue fica a cargo da Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás), estatal criada em 2004. Segundo a Fiocruz, atualmente, o plasma doado no país atende exclusivamente às necessidades da população brasileira e traz retorno na forma de acesso a medicamentos.

Em meio à controvérsia, a relatora da PEC, senadora Daniella Ribeiro, declarou ao Portal G1 que “a Hemobrás não possui, nem possuirá, capacidade para atender a demanda interna de medicamentos derivados do plasma. Ao contrário, nas palavras do seu presidente, Antônio Lucena, a tendência é que a empresa exporte cada vez mais plasma para importar os medicamentos, impondo altos custos a eles e aos pacientes”.

Em nota, a Hemobrás informou que “o presidente da empresa nunca deu tal declaração e reafirma a todos os interessados o compromisso institucional de alcançar a autossuficiência brasileira em hemoderivados” e que “a desinformação e os interesses privados não devem conduzir uma decisão que afeta diretamente o povo brasileiro, mas principalmente os pacientes atendidos pelo SUS”.

“A empresa ratifica que o beneficiamento de plasma no exterior foi uma necessidade imediata e que acontecerá somente até o início de 2025, quando o plasma será beneficiado na fábrica e em território brasileiro. A fábrica da Hemobrás tem capacidade de fracionar todo o plasma excedente nacional. Nesse período, a fábrica estará plenamente validada e a rede nacional de fornecedores de plasma devidamente qualificada para garantir a independência do país nessa área vital da saúde”, esclarece.

De acordo com o Conselho da Fiocruz, “para o aprimoramento da política nacional de sangue, referência mundial pela sua excelência e capacidade de atender a todos os brasileiros, a Hemobrás precisa ser fortalecida para que possa produzir no máximo da sua capacidade”.

“É importante também fortalecer a Coordenação-Geral de Sangue e de Hemoderivados do Ministério da Saúde, encarregada da execução da política de atenção hemoterápica e hematológica que regula da coleta, ao processamento e a distribuição de sangue e hemoderivados no Brasil”, destaca a nota.

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Associação de Hematologia e Hemoterapia é contra doação remunerada

Em comunicado aberto publicado em seu site, a Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH) se posicionou sobre a Proposta de Emenda à Constituição Federal (PEC n.10/2022), do Senador Nelsinho Trad e outros, para dispor sobre as condições e os requisitos para a coleta e o processamento de plasma humano.

No documento assinado pelo presidente da Associação, o hematologista e hemoterapeuta José Francisco Comenalli Marques Jr., a ABHH diz que “aprova a mudança para o nível infraconstitucional e, considerando que existe grande desperdício de plasma no país, apoia a autorização da participação da iniciativa privada na comercialização e fracionamento industrial do plasma humano excedente do Brasil”.

Entretanto, sobre a doação remunerada de plasma para fins industriais, a ABHH neste momento emite posição contrária. “Entendemos que o excedente atual de plasma proveniente de doação voluntária de sangue não é devidamente aproveitado, corroborando para a não liberação desta prática no Brasil”. Confira a íntegra: link

Para Asbai, PEC do Plasma pode resolver falta de imunoglobulina

Já a Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai) se manifestou integralmente a favor da PEC do Plasma. Segundo a entidade, a falta de imunoglobulina durante a pandemia acendeu o sinal de alerta em todo o planeta para a necessidade desse medicamento.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) sugere que os grandes países façam a sua captação de plasma e a autoprodução de imunoglobulina. O Brasil conta com um projeto junto à Hemobrás utilizando o plasma excedente da doação de sangue, que atualmente gira em torno de 500 mil litros por ano, que resulta em 2 toneladas de imunoglobulina.

De acordo com Gesmar Rodrigues Silva Segundo, membro do Departamento Científico de Erros Inatos da Imunidade da Asbai, no ano de 2022, mesmo com uma grande falta da imunoglobulina humana no mercado, o consumo no Brasil atingiu mais de 5 toneladas de imunoglobulina humana. “Ou seja, mesmo que a Hemobrás trabalhe na sua capacidade máxima, não teremos nem a metade da quantidade que foi necessária no ano passado”, explica.

“O que está em discussão é se empresas privadas poderão participar, aumentando a captação e fracionamento do plasma e, consequentemente, aumentando a produção da imunoglobulina humana, usada em pacientes com erros inatos da imunidade, doenças autoimunes e câncer, além de outras especialidades que usam imunoglobulina”, comenta Dr. Gesmar.

Por que a imunoglobulina é tão importante?

Em setembro, a Asbai publicou uma Manifestação do Departamento Científico de Erros Inatos da Imunidade, em que destaca as dificuldades do Brasil em atender à demanda por imunoglobulina para atendimento a pacientes que necessitam desse medicamento, usado em imunodeficiências, doenças autoimunes e câncer. Confira abaixo:

A ASBAI é uma associação de médicos especialistas em Alergia e Imunologia Clínica responsáveis pelo diagnóstico e cuidado aos pacientes com imunodeficiências primárias (IDPs), mais recentemente denominadas erros inatos da imunidade. Os defeitos imunológicos mais comuns segundo a experiência mundial são aqueles que afetam a produção de anticorpos.

Nestes casos, as principais manifestações clínicas são as infecções que podem ser de menor gravidade, porém, de repetição, ou graves, necessitando de hospitalizações para tratamento endovenoso. Estas ocorrências podem resultar em sequelas pulmonares, auditivas, dentre outras e, em muitas situações, causar a morte. 

O principal tratamento desses pacientes é a imunoglobulina, obtida pela coleta de plasma humano de muitos doadores. Há décadas, nossos pacientes assim como nós, médicos especialistas que deles cuidamos, sofremos com a falta periódica de imunoglobulina no Brasil, com todas as terríveis consequências. Embora tenha havido diversas propostas, somos dependentes da importação dos produtos e, ressaltamos, o Brasil não produz nenhuma gota de imunoglobulina. 

Nos últimos anos, particularmente durante a pandemia, quando a dificuldade para adquirir esse imunobiológico aumentou, o Ministério da Saúde (MS) passou a adquirir produtos não aprovados pela Anvisa, admitindo que o INCQS da Fiocruz seria capaz de realizar o mesmo tipo de análise, de segurança e eficácia, dos produtos. Apesar do controle da pandemia e restabelecimento da coleta e produção de imunoglobulina em outros países, o MS manteve esse entendimento.

A ASBAI, assim como as associações de pacientes, se manifestaram contra esta determinação, pois esse fluxo claramente poderia comprometer a qualidade e a segurança do tratamento dos pacientes que fazem uso desse imunobiológico. Infelizmente, os argumentos apresentados pelas partes que são responsáveis pelo uso dos produtos e os próprios pacientes NÃO foram considerados.  

É de primordial importância que a Hemobrás, de fato, produza imunoglobulina no Brasil e que se interrompa nossa total dependência de produtos importados. A previsão é que isso ocorra em fim de 2025, segundo informações fornecidas pelo Governo Federal. No entanto, estimamos que a produção, ainda que bem-vinda, muito provavelmente não dará conta da demanda por esse imunobiológico, que é crescente no mundo todo. 

A plasmaférese representa um avanço na captação do plasma de onde são retirados muitos produtos necessários para a manutenção do bem-estar de milhares, talvez milhões, de cidadãos brasileiros. Lembramos que nosso foco tem sido as deficiências de anticorpos, porém, pacientes com doenças neurológicas, reumatológicas, hematológicas, entre outras, necessitam e usam a imunoglobulina humana. Ainda, do plasma humano, pode-se obter vários derivados como albumina, fatores de coagulação e proteínas do complemento, fundamentais para o tratamento de diversas doenças”, diz a entidade. 

A comunidade europeia, preocupada em garantir o fornecimento de imunoglobulina para um crescente número de pacientes, está revendo sua legislação. Um país populoso e de dimensões continentais como o Brasil precisa iniciar esse movimento. As preocupações com a comercialização do plasma também são nossas e, justamente por isso, consideramos que a legislação deve ser revista, aprimorada e muito bem elaborada, de maneira que os princípios de nossa Constituição Cidadã de 1988 sejam respeitados, mas que se garanta que nossos pacientes também sejam respeitados e devidamente cuidados. Lembramos a todos que nosso modelo de assistência médica, o SUS, é motivo de orgulho e que, neste momento, devemos mostrar o quanto somos capazes de prover o tratamento adequado de nossos pacientes, cidadãos brasileiros. 

Outro lado

ABBS ressalta que não existe remuneração na PEC do Plasma

A ABBS diz que apoia a aprovação da PEC do Plasma como “forma de resolver um problema crítico de saúde pública, reduzir a dependência de importações de medicamentos e impulsionar a indústria nacional, além de combater o desperdício de plasma”. Segundo a entidade, “essa é uma oportunidade única de salvar vidas, fortalecer a economia e melhorar o sistema de saúde do país. A sociedade brasileira precisa conhecer e debater essa proposta fundamental para o futuro da saúde no Brasil”.

Nota de posicionamento da Associação Brasileira dos Bancos de Sangue (ABBS) em relação à PEC do Plasma 10/22

“A Associação Brasileira de Bancos de Sangue (ABBS) esclarece que não há qualquer forma de remuneração na proposta da PEC 10/2022. Não se trata de pagar pelo sangue ou plasma dos doadores. Logo, é necessário elucidar qualquer mal-entendido em relação a isto.

Os esforços e direcionamentos da ABBS na aprovação da matéria não representam ameaça à doação de sangue ou à solidariedade da população brasileira, uma vez que a PEC do Plasma não tem essa intenção. É crucial a compreensão sobre pontos essenciais desta proposta para evitar ruídos que confundam o entendimento dos parlamentares, da opinião pública e de toda a sociedade.

Nada mudará em relação ao Sistema Único de Saúde (SUS). Os pacientes continuarão a receber seus medicamentos gratuitamente. A meta é que o governo brasileiro reduza ou elimine a compra de hemoderivados do exterior, ao optar por adquiri-los da iniciativa privada nacional. Isso complementaria a oferta e ampliaria o acesso aos medicamentos para todos os pacientes brasileiros.

A principal vantagem da PEC 10/2022 para o Brasil é a colaboração da indústria privada, inclusive com o setor público, para atuar na coleta, processamento, disponibilização e distribuição da quantidade adequada de medicamentos a partir do plasma

O que realmente mudará é o custo para os contribuintes, que será reduzido. Ao invés de o governo adquirir hemoderivados a preços elevados do exterior, a iniciativa privada oferecerá estes medicamentos a preços mais acessíveis. Isso é um compromisso importante da iniciativa privada com a sociedade.

O que a iniciativa privada busca é a oportunidade de processar o plasma que hoje é desperdiçado e produzir hemoderivados no Brasil. Com conhecimento técnico, inovação, tecnologia e especialistas qualificados para desenvolver uma indústria 100% nacional, atuando em conjunto com o SUS, para atender à demanda crítica por hemoderivados.

Um aspecto adicional de relevância diz respeito à participação dos bancos de sangue privados, os quais têm a potencialidade de incrementar o fornecimento de plasma à indústria, assegurando uma ampliação significativa da acessibilidade a esse componente, atualmente um elemento crítico na produção, resultando em uma consequente diminuição dos custos. Dentro deste item, vale ressaltar que a Hemobrás, inclusive, terá acesso ao plasma produzido por todos os hemocentros.

PEC do Plasma abre ainda a possibilidade de ampliar os incentivos já existentes em alguns estados, como um dia de folga, check-up completo, alimentação após a doação e meia-entrada em atividades culturais, por exemplo.

A capacidade da Hemobrás preocupa, mesmo com os investimentos anunciados, para atender à demanda nacional por hemoderivados. Portanto, é crucial uma ação estratégica da indústria privada, em conjunto com o Sistema de Saúde nacional, para produzir e fornecer medicamentos produzidos no Brasil, desestimulando a compra de hemoderivados de outros países a preços elevados e garantindo a qualidade respaldada pela Anvisa.

Em relação ao custo, é importante esclarecer que se refere ao medicamento pronto para administração, que requer investimentos significativos na produção. Parte dessa produção pode ser comercializada, mas isso não impedirá o SUS de adquirir medicamentos produzidos pelos bancos de sangue privados brasileiros e fornecê-los aos pacientes, como sempre fez.

A ABBS representa os Serviços Privados de Hemoterapia no Brasil e busca fortalecer a indústria nacional de hemoderivados, garantindo insumos para todos os pacientes, inclusive os atendidos pelo SUS. Defendemos uma parceria público-privada para produzir hemoderivados no Brasil, reduzir a dependência de importações, fortalecer a economia e melhorar o sistema de saúde nacional. Esta é uma oportunidade única para salvar vidas e garantir um futuro mais saudável para o Brasil. É crucial que a sociedade brasileira conheça, discuta e compreenda essa proposta fundamental para a saúde do país.”

Com Assessorias

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