Foi com muita emoção e entusiasmo que a artista plástica Patricia Ruth, de 69 anos, ex-interna do Instituto Municipal de Assistência à Saúde (IMAS) Juliano Moreira, fechou o portão do Núcleo Franco da Rocha — o último da antiga colônia a ser desativado – e jogou a chave fora. O ato simbólico marcou o encerramento, no dia 27 de outubro, das atividades de internação na unidade. Com isso, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS-Rio) concluiu o processo de desinstitucionalização de pacientes psiquiátricos na cidade, um marco da luta antimanicomial e contra o estigma da loucura no país.
“Eu sou uma sobrevivente. Sofri, chorei, mas estou aqui para o que der e vier. Paraquedas (lençol usado para amarrar usuários) nunca mais. Comida na bandeja nunca mais. Hoje eu moro em uma casinha simples aqui perto, que comprei com o dinheiro da minha arte, mas agora eu sou vista, vivo a minha vida, meu mundo ganhou cor”, disse Patricia, que foi internada nos anos 70, aos 16 anos, e chegou a viver sete anos no Franco da Rocha.
Liberdade e cidadania de volta
Para viabilizar o fim das internações, foram criadas condições para que os usuários pudessem retornar ao convívio familiar, morar sozinhos ou ter alta para serviço residencial terapêutico. A mudança visa o resgate da cidadania e da identidade de pessoas como Marcelo Pereira da Fonseca, de 51 anos, e José Edmilson Ferreira dos Santos, de 54, os últimos pacientes a terem alta do Franco da Rocha, no dia 21 de outubro, e serem encaminhados para a a rede municipal de Atenção Psicossocial (CAPs).
Recebidos com muitas boas-vindas na nova casa, na Ilha do Governador, pela equipe do CAPS II Ernesto Nazareth, agora eles podem desfrutar do cuidado em liberdade. “Agora eles vão poder viver. Vão poder dizer o que querem comer, escolher o que fazer, ser eles. Coisas que podem parecer muito simples, mas são gigantescas para eles. Fico muito emocionado em participar disso”, descreveu o cuidador plantonista Leandro do Nascimento Pinto, de 35 anos.
Reinseridos no território, os moradores continuam recebendo todo o suporte de profissionais da rede, como psicólogos e assistentes sociais vinculados aos CAPS, sempre em busca de atividades terapêuticas que ampliem a sua autonomia e socialização, além de cobertura da estratégia de saúde da família para cuidado clínico.
Atualmente, a rede é formada por 33 CAPS e 97 residências terapêuticas distribuídas pela cidade, com 546 pessoas vivendo nelas, além de unidades de acolhimento adulto (UAA) e centros de convivência. Para pacientes com quadro agudo, há leitos disponíveis na rede de urgência, em hospitais gerais e no Instituto Philippe Pinel, em Botafogo, onde eles poderão ser cuidados até terem condição de alta.
Bolsa Rio – O município do Rio também comemora, neste ano, os 20 anos da Bolsa Rio (Bolsa Incentivo à Desinstitucionalização), essencial ao suporte para a desinstitucionalização dos pacientes. O benefício pago pela Prefeitura do Rio é de dois salários mínimos mensais para pacientes que retornam ao convívio familiar, e de um salário mínimo para aqueles que ingressam em serviços residenciais terapêuticos.
Serviço de Residência Terapêutica
O trabalho de desinstitucionalização envolve retorno familiar, geração de condições para retornarem à sociedade morando sozinhos e da alta para as SRT, compostas por casas onde habitam de 6 a 8 pessoas que estiveram por dois ou mais anos internados em instituições manicomiais e que passam a morar juntas. A iniciativa da Prefeitura do Rio é desenvolvida em parceria com o CIEDS (Centro Integrado de Estudos e Programas de Desenvolvimento Sustentável).
O SRT é um serviço que faz parte da política nacional de saúde mental, referência como alternativa à internação psiquiátrica permanente, destino daqueles acometidos por transtornos mentais graves e persistentes antes da reforma psiquiátrica brasileira que ganhou força nos anos 90. Somente na cidade do Rio, já operam 97, 12% do programa nacional de SRT no Brasil.
“Os maiores impactos sociais deste projeto estão no resgate da cidadania, a reinserção social e o combate ao estigma da loucura, produzindo cuidado em território para pessoas com transtornos mentais graves, que outrora foram internadas por anos em hospitais psiquiátricos devido à condição de vulnerabilidade social, o agravamento de sintomas dos transtornos mentais e o esgarçamento de laços familiares e afetivos”, avalia Leonardo Moraes, coordenador de Projetos Sociais do CIEDS.
As SRTs oferecem um espaço privilegiado para a construção da autonomia, reinserção social, resgate da cidadania e da identidade do sujeito. No ambiente doméstico e inserido no território, ao contrário do vivenciado nos manicômios, o morador recebe suporte de uma equipe multiprofissional de saúde composta por cuidadores, técnicos de enfermagem e acompanhantes terapêuticos que junto dos Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), constroem projetos terapêuticos singulares na busca de ampliar autonomia, autodeterminação e a produção ou reconstrução de laços sociais e familiares.
Os CAPS são os serviços territoriais especializados em saúde mental que vieram para substituir os manicômios, possuem como premissa que qualquer pessoa pode ser cuidada no território em momentos de sofrimento psíquico, prescindindo de estratégias manicomiais como a internação em hospital psiquiátrico. E desta forma conduzem o acompanhamento dos moradores do SRT.
Ainda na temática de desinstitucionalização, o CIEDS produziu o livro “Residências Terapeuticas”, que traz histórias das Residências Terapêuticas no Rio de Janeiro – seus moradores e profissionais que os acompanham. O livro, com previsão de lançamento ainda esse ano, traz, também, o debate sobre reforma psiquiátrica e os avanços nas políticas públicas cariocas.
História e ressignificação do espaço
Inaugurada há 98 anos, em antigas terras coloniais do engenho de cana e fubá, a antiga colônia recebeu em 1935 o nome de seu idealizador, o médico psiquiatra Juliano Moreira, fundador da disciplina de Psiquiatria no Brasil. Ao longo dos anos, com a redução gradativa no número de internos, muitos imóveis do antigo complexo foram transformados em unidades municipais de saúde e de assistência social, entre elas um hospital de clínica médica, clínica da família, CAPS e residência terapêutica de alta complexidade, além de unidades habitacionais e de ensino.
Com o crescimento populacional na área, hoje ela é conhecida como o sub-bairro Colônia (Jacarepaguá). Na sede do Instituto Juliano Moreira funciona ainda hoje o Museu Bispo do Rosário, que homenageia um de seus internos mais famosos. Além de obras de arte, estão expostos equipamentos de eletrochoque e de lobotomia e fotografias de época, que rememoram os horrores da estratégia manicomial.
Assim como outros imóveis do antigo hospício municipalizado em 1996, que foram transformados, por exemplo, em unidades municipais de saúde e habitacionais, a Prefeitura do Rio já estuda nova finalidade para o último pavilhão fechado, que deverá abrigar projeto inovador de saúde mental.
Médicos se emocionaram com fechamento
A cerimônia de encerramento das atividades de internação do Instituto Juliano Moreira contou com homenagens a funcionários e ex-funcionários da unidade, apresentação de jogral e cortejo do Bloco Império Colonial, formado por ex-internos.
“Não tem como a gente não se emocionar. Eu entrei na Secretaria Municipal de Saúde como subsecretário de Atenção Primária e nunca imaginei que viveríamos o que estamos vivendo aqui hoje. Este é um marco na história da cidade do Rio de Janeiro, é um marco na história da saúde mental do município, do estado e certamente na saúde mental do Brasil”, afirmou o secretário municipal de Saúde, Daniel Soranz.
Superintendente de Saúde Mental da SMS-Rio, o psiquiatra Hugo Fagundes também destacou a importância histórica da data.
“Com o fechamento desse último núcleo, de fato, conseguimos criar um Rio sem manicômios e isso é muito importante. A população, hoje, consegue entender que lugar de “louco” não é no hospício. Lugar de humanos é na sociedade, e a gente precisa cuidar desses pacientes com toda diversidade, com toda riqueza humana em sua multiplicidade de cores, de origens, de culturas, de gêneros, de experiências de vida. As pessoas se empobrecem em locais de confinamento, são locais de muito sofrimento”.
Com Cieds e Prefeitura do Rio