A proteção da infância na internet ganhou recentemente um novo capítulo no Brasil com a sanção da Lei 15.211/25, que institui o Estatuto Digital da Criança e do Adolescente e está disponível no portal oficial do Governo Federal. O tema ganha força nesta Semana Nacional de Prevenção da Violência na Primeira Infância, realizada de 12 a 18 de outubro para refletir sobre as diversas formas de agressão às crianças, justamente no mês delas.

Conhecida como ECA Digital, a legislação surgiu em resposta a um debate nas redes sociais, a partir das denúncias do influenciador Felipe Bressanim Pereira, conhecido como Felca, que trouxe à tona a chamada adultização infantil, prática que expõe crianças e adolescentes a comportamentos e situações inadequados para sua faixa etária, especialmente em redes sociais e plataformas digitais.

O advogado Carlos Eduardo Holz – especialista em Direito Digital e atua na defesa de consumidores e influenciadores vítimas de abusos e fraudes em plataformas digitaisesclarece que o ECA Digital já está em vigor e impõe novas obrigações às plataformas digitais, como verificação de idade mais rigorosa, vinculação de contas de menores a responsáveis legais e sistemas mais eficazes de supervisão parental.

O objetivo é reduzir os riscos de exposição de menores, prevenir exploração comercial, uso de imagens em redes de pedofilia, divulgação de apostas e veiculação de conteúdos com conotação sexual, mesmo que implícita”.

Além disso, a lei reforça a fiscalização de conteúdos: vídeos, fotos e propagandas poderão ser considerados inadequados mesmo sem nudez explícita, caso impliquem risco de exploração. A remoção imediata de materiais nocivos passa a ser obrigatória.

Segundo Holz, um dos pontos mais discutidos é a responsabilização das empresas de tecnologia. Redes sociais, aplicativos de vídeos curtos e plataformas de streaming deverão comprovar mecanismos de proteção e acompanhamento de menores. A atuação também envolve a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), que passa a complementar a fiscalização feita no mundo físico por órgãos como Conselho Tutelar e Ministério Público.

É importante a responsabilização das plataformas. Precisamos proteger as crianças e adolescentes e, quando isso é descumprido, surge a questão: quem é o responsável? Quem deve adotar as medidas? Quem fiscaliza?”, questiona Holz.

O especialista ressalta ainda que as punições são severas. “Se a plataforma descumprir, haverá multa de até R$ 50 milhões e, em caso de reincidência, ela pode ser banida ou retirada do ar pela Anatel. É um ponto de muito alerta: terá que ser cumprido. Caso contrário, as consequências serão bastante drásticas para essas empresas”, esclareceu.

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Lucas Ruiz Balconi, advogado, Doutor em Direito pela USP e especialista em Direito Digital

O debate sobre o ‘ECA Digital’ não é apenas sobre proteger crianças, mas também é sobre redefinir a responsabilidade em um ambiente onde as plataformas digitais se tornaram os principais veículos de comunicação e entretenimento da infância e da adolescência. Por muito tempo, operamos sob uma lógica de isenção quase total. O que está em jogo agora é a transição de um modelo de ‘vale-tudo’ digital para um ecossistema com regras claras, em que o enorme poder das Big Techs encontra um contrapeso na proteção dos mais vulneráveis. É uma medida importante e urgente”, diz.

1 – O que muda com a aprovação do ECA Digital? O que as plataformas terão que fazer daqui pra frente?

A principal mudança é o que podemos chamar de “inversão do ônus”. Hoje, a responsabilidade de proteger uma criança online recai quase inteira e exclusivamente sobre os pais ou responsáveis, que precisam navegar em sistemas difíceis e complexos. Temos aqui uma dupla hipossuficiência. A da criança e a dos pais ou responsáveis em relação à complexidade das novas tecnologias. Quem sabe, aqui, os detalhes técnicos para a configuração parental das mais diversas tecnologias? Se aprovado, o “ECA Digital” estabelece um dever de cuidado que é da plataforma por padrão.

Importante fazer a crítica de que, ao meu ver, essa obrigação já está bem definida no ECA atual, mas como sempre, no Brasil, é necessário fazer a “Lei da Lei”.

Na prática, as plataformas terão que, proativamente:

  • Implementar verificação de idade robusta: Não mais um simples clique em “tenho mais de 18 anos”.
  • Oferecer design seguro por padrão (Safety by Design): Controles parentais devem vir ativados, não escondidos em menus. Algoritmos de recomendação para contas de menores não poderão sugerir conteúdo sensível ou explorar mecanismos viciantes.
  • Criar canais de denúncia claros e eficientes: E, crucialmente, agir com rapidez em casos de abuso e exploração.
  • Fornecer relatórios de transparência: Detalhar quais medidas foram tomadas para remover conteúdo nocivo e mitigar os riscos em seus sistemas.

Em suma, a lei institui a obrigação de realizar avaliações de impacto sobre os direitos de crianças e adolescentes. Ou seja, antes de lançar um novo produto ou realizar mudanças no algoritmo, as plataformas serão legalmente obrigadas a analisar e mitigar os riscos que ele pode gerar, desde o vício em telas até a exposição a conteúdos nocivos.

A mudança é de uma postura reativa para uma proativa. A segurança deixa de ser um “problema do usuário” e passa a ser uma obrigação de engenharia da plataforma.

2 – Até que ponto isso é responsabilidade da plataforma e a partir de onde isso passa a ser da alçada dos pais?

A responsabilidade é e sempre será compartilhada, mas precisamos entender a assimetria de poder. Cobrar dos pais uma vigilância 24 horas por dia sobre algoritmos projetados por milhares de engenheiros para maximizar o engajamento é uma batalha desleal. Exigir conhecimento técnico específico dos pais ou responsáveis é injusto. A divisão que o PL propõe é, ao meu ver, uma tentativa mais justa de buscar uma certa equalização:

  • A responsabilidade da plataforma é construir um ambiente seguro. Ela precisa fornecer a estrutura de segurança de forma fácil e clara. Assim as ferramentas de controle parental devem ser simples, eficazes e acessíveis. A plataforma é responsável pela arquitetura e design seguro do ambiente.
  • A responsabilidade dos pais é usar essas ferramentas e educar. Com um ambiente seguro fornecido pela plataforma, os pais podem exercer sua responsabilidade de forma mais eficaz, definindo os limites de tempo, conversar sobre os conteúdos e ensinar o comportamento digital seguro.

Não se trata de substituir os pais, mas de dar a eles as condições mínimas para exercerem a parentalidade em um ambiente digital hostil e complexo.

3 – Como funcionaria esse órgão regulador? Quais mecanismos de contenção seriam ativados com ele?

Um órgão regulador, nos moldes do que a Europa está implementando com o Digital Services Act (DSA), funcionaria como uma “delegacia” do ambiente digital. Seus mecanismos seriam:

  • Poder de Auditoria: A capacidade de “abrir a caixa-preta” dos algoritmos para verificar se eles estão, de fato, protegendo menores ou se estão otimizados para viciar e expor crianças a riscos e a conteúdos sensíveis.
  • Poder Sancionatório: A aplicação de multas pesadas e proporcionais ao faturamento da empresa em caso de descumprimento das regras.
  • Mediação e Resolução de Conflitos: Atuar como uma instância para a qual pais e usuários podem recorrer quando se sentem lesados e não encontram resposta da plataforma.

Essencialmente, o órgão regulador é a materialização do poder do Estado para garantir que o interesse público se sobreponha ao interesse comercial das plataformas. É um mecanismo importante, mas que requer cautela.

4 – A nova lei é suficiente para mudar o cenário de adultização? Quais outras medidas também seriam importantes?

É um primeiro passo que julgo ser necessário, mas ao meu ver, não é o suficiente. Ele atua na contenção de danos, o que é crucial, mas remedia. No entanto, para mudar o cenário de forma estrutural, precisamos de um conjunto de políticas que regulam a raiz do problema. Outras medidas importantes seriam:

  • Alfabetização Midiática e Digital massiva nas escolas: Ensinar as crianças não apenas a usar a tecnologia, mas a compreendê-la criticamente.
  • Fomento a plataformas e tecnologias nacionais: Precisamos de um ecossistema digital com alternativas brasileiras. A soberania passa por ter “casas” digitais construídas com nossas próprias regras e valores.
  • Regulação do modelo de negócios: A “adultização” e o conteúdo viciante não são acidentes, são o resultado de um modelo de negócios baseado em vigilância e engajamento a qualquer custo. Regular a publicidade direcionada a crianças e o uso de dados sensíveis é fundamental.

O “ECA Digital” remedia os perigos mais óbvios e imediatos. Mas a verdadeira segurança está longe de acontecer.

André Dantas, advogado com expertise em processo legislativo e Direito Público, e Head do escritório André Dantas Advogados

O ECA Digital representa um marco porque impõe às plataformas obrigações claras, como a verificação de idade, o controle parental por padrão e a restrição de publicidade direcionada a crianças e adolescentes, além de prever a criação de uma autoridade independente para fiscalizar seu cumprimento. É um avanço significativo, mas que precisa caminhar junto com a educação digital e o engajamento das famílias, pois a lei por si só não será suficiente para enfrentar o fenômeno da adultização precoce”, diz.

1 – O que muda com a aprovação do ECA Digital?

A aprovação do ECA Digital muda a lógica de funcionamento das plataformas. Até hoje, crianças e adolescentes eram tratados praticamente como usuários comuns, mas, com a nova lei, empresas de tecnologia terão que assumir obrigações específicas: verificar a idade de quem acessa os serviços, vincular contas de menores a um responsável, restringir a publicidade direcionada e oferecer ferramentas de controle parental já ativadas por padrão. A lei também endurece as sanções, prevendo multas que podem chegar a R$50 milhões para casos de descumprimento.

2 – Até que ponto isso é responsabilidade da plataforma e a partir de onde é dos pais?

O projeto cria um modelo de responsabilidade compartilhada. Cabe às plataformas desenvolver barreiras tecnológicas eficazes e não explorar dados de menores de forma abusiva. Mas isso não substitui o papel dos pais: são eles que precisam orientar, monitorar e acompanhar o uso que os filhos fazem das redes. Em outras palavras, a lei obriga as empresas a garantir um ambiente minimamente seguro, mas o acompanhamento cotidiano continua sendo responsabilidade da família.

3 – Como funcionaria o órgão regulador?

O PL prevê a criação de uma autoridade administrativa autônoma, inspirada no modelo da Autoridade Nacional de Proteção de Dados. Esse órgão seria responsável por detalhar regras técnicas, como os métodos de verificação de idade, além de receber denúncias e fiscalizar o cumprimento da lei. Teria também o poder de aplicar sanções administrativas, que vão desde advertências até multas pesadas, podendo até mesmo determinar a suspensão de serviços em situações graves. A ideia é que exista uma instância independente, com foco exclusivo na proteção digital de crianças e adolescentes.

4 – O PL é suficiente para mudar o cenário de adultização?

O ECA Digital é um avanço importante porque estabelece parâmetros legais e cria instrumentos de fiscalização. No entanto, sozinho não é suficiente. A proteção integral exige um esforço coletivo que envolva educação digital nas escolas, campanhas de conscientização para pais e crianças, cooperação entre governo, empresas e sociedade civil e, sobretudo, uma mudança cultural sobre como lidamos com a presença dos menores no ambiente online. A lei cria o marco regulatório, mas a transformação real dependerá da aplicação prática e da construção de uma cultura de responsabilidade digital.

Entenda os principais pontos do ECA Digital

O “ECA Digital”, que cria regras para combater a adultização de crianças e adolescentes em ambientes digitais. O texto, que teve origem no próprio Senado e foi ajustado pela Câmara dos Deputados, foi sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 17 de setembro de 2025.

A sanção do ECA Digital foi acompanhada pela criação de uma agência reguladora autônoma, a partir da transformação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), para fiscalizar as regras do ambiente digital. 

A Lei nº 15.211/2025, conhecida como ECA Digital, atualiza o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para o ambiente online e impõe novas obrigações às plataformas digitais para proteger menores de idade. 
O objetivo da lei é reforçar a proteção de crianças e adolescentes em espaços digitais, impondo responsabilidades mais claras a empresas de tecnologia, criadores de conteúdo e famílias. O debate sobre o tema ganhou força com casos recentes que expuseram riscos da exposição precoce e da lógica algorítmica que prioriza engajamento e monetização em detrimento da segurança.
Principais pontos da ECA Digital: 
  • Responsabilidade das plataformas: Redes sociais, aplicativos e jogos eletrônicos devem adotar medidas razoáveis para proteger crianças e adolescentes.
  • Mecanismos de verificação de idade: As plataformas são obrigadas a criar métodos eficazes de verificação etária, proibindo o acesso de menores a conteúdos impróprios ou ilegais, como os relacionados a jogos de azar.
  • Controle parental: A lei exige a oferta de ferramentas eficientes de controle parental, dando aos responsáveis maior capacidade de gerenciar o uso digital de seus filhos.
  • Proibição de ‘loot boxes’: A legislação proíbe a venda de “loot boxes” (caixas de itens aleatórios) em jogos eletrônicos para menores, uma prática que vinha sendo associada a riscos de vício.
  • Dados pessoais de menores: O tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes deve ser feito de forma que não invada sua privacidade ou viole seus direitos. O consentimento de pais ou responsáveis é necessário para que menores entre 12 e 18 anos baixem aplicativos.
  • Infrações e multas: O descumprimento da lei pode resultar em multas de até R$ 50 milhões ou 10% do faturamento da empresa no Brasil. Em casos graves, as plataformas podem ser suspensas ou banidas do país.
  • Prazo para adequação: As empresas terão até março de 2026 para se adaptar às novas regras. 
Com Assessorias

 

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