Referência nacional pelo trabalho com pessoas em situação de rua em São Paulo,  o padre Júlio Lancellotti visitou o município de Niterói, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, para conhecer as propostas do município para o acolhimento de pessoas dessa população. Segundo a prefeitura, foi “uma troca de vivências e reflexões sobre políticas públicas voltadas à população em situação de rua e à reinserção social”.

Durante o encontro com o religioso, o prefeito de Niterói, Rodrigo Neves apresentou o programa Recomeço, iniciativa que integra ações nas áreas de saúde, educação, moradia, profissionalização e inclusão, com foco na superação da situação de rua e na redução dos riscos sociais. Segundo nota da prefeitura, o religioso elogiou a iniciativa.

Apesar de falar sobre recomeçar, para mim, esse programa trabalha mais a humanização. Oportunidade, moradia e acolhimento são frentes importantes para reintegrar esse grupo historicamente excluído. Por causa dessa campanha neofascista que assola o país, a população em situação de rua sofre ainda mais com preconceitos e narrativas muito distantes da realidade. Feito com base em estudos reais, o programa Recomeço é uma tentativa de Niterói de agir na linha de frente desse desafio, tendo como base principal a escuta. Espero ter contribuído com a nossa experiência em São Paulo”, reforçou o padre.

De acordo com a prefeitura, o programa Recomeço foi desenvolvido com base em diagnósticos realizados pela Prefeitura em parceria com a Universidade Federal Fluminense (UFF), que traçaram um retrato atualizado da população em situação de rua no município.  O prefeito Rodrigo Neves destacou que o Recomeço representa um novo patamar no enfrentamento de uma das maiores questões sociais da atualidade.  Ao todo, serão investidos R$ 20 milhões.

O programa Recomeço é um novo capítulo na nossa frente de ações em apoio a quem mais precisa. Mesmo com nossos projetos voltados para a renda básica, unidades de acolhimento, a Moeda Social Arariboia e outros benefícios, lidar com a situação de rua é um desafio complexo que demanda uma ação ainda mais holística e integrada. Por isso, não poderíamos perder a chance de apresentar o Recomeço ao Padre Júlio, uma referência no desenvolvimento de políticas públicas e na militância. Saímos ainda mais inspirados do encontro e animados para colocar na rua todas as ideias”, afirmou o prefeito.

A iniciativa está estruturada em seis eixos estratégicos, que vão desde ações emergenciais, como o reforço nas abordagens sociais, até políticas permanentes de inclusão e geração de renda — como a criação de turmas da EJA e implantação de moradias no modelo Housing First. O secretário de Assistência Social e Economia Criativa, Elton Teixeira, detalhou os principais eixos do programa e reforçou o caráter articulado da política municipal.

O Recomeço é uma construção coletiva, baseada em evidências, escuta qualificada e compromisso com os direitos humanos. Vamos oferecer acolhimento, atendimento em saúde, acesso à documentação, formação e oportunidades de trabalho. Nosso objetivo é romper o ciclo de exclusão e reconstruir caminhos com dignidade”, explicou.

Internação compulsória de usuários de álcool e drogas

Nota técnica assinada por defensores e promotores afirma que “acolhimento sem consentimento” viola direitos fundamentais de dependentes químicos e população em situação de rua

Um dos pontos do programa Recomeçar em Niterói, a internação compulsória de usuários de drogas e álcool que vivem nas ruas foi contestada pela Defensoria Pública da União (DPU), o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ), que divulgaram, em maio, uma nota técnica conjunta sobre a Lei nº 3.997/2025, que criou o programa. A norma, que institui uma política municipal de acolhimento humanizado a pessoas com transtornos mentais e/ou em uso abusivo de álcool e outras drogas, foi considerada “inconstitucional e inconvencional” pelas instituições.

A nota destaca o impacto da medida sobre a população em situação de rua, “grupo social especialmente vulnerável e frequentemente alvo de políticas discriminatórias”. As instituições alertam que, “ao propor internações forçadas sob o pretexto de cuidado, a legislação municipal ignora a autonomia dos sujeitos e reforça a estigmatização, tratando essas pessoas como problemas a serem removidos do espaço público”.

O texto assinado por promotores e defensores expressa “preocupação adicional com a falta de clareza quanto aos locais de internação previstos na lei, o que pode abrir espaço para instituições com caráter asilar – proibidas pela legislação brasileira por violarem direitos básicos de quem é internado”.

Internação psiquiátrica compulsória sem ordem judicial

Segundo o documento, assinado pelo defensor público federal Thales Arcoverde Treiger, pelo procurador regional dos Direitos do Cidadão adjunto Julio Araujo e pela defensora pública estadual Cristiane Xavier de Souza, o ponto mais preocupante da nova legislação é a previsão do “acolhimento sem consentimento”, que permite a internação forçada de pessoas adultas, inclusive a pedido de servidores da saúde ou assistência social.

Na prática, explicam os autores da nota técnica, trata-se de internação psiquiátrica compulsória sem ordem judicial, em contrariedade à Constituição, à legislação federal e aos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil

A lei municipal nº 3.997/2025 propõe o ‘acolhimento sem consentimento’ como prática central, o que, na realidade, equivale à internação psiquiátrica compulsória. Tal medida aproxima-se do modelo biomédico tradicional, historicamente associado à desumana lógica manicomial e à exclusão social”, afirmam.

‘Ninguém pode ser submetido a tratamento médico forçado sem consentimento livre e informado’

A nota técnica aponta que a Constituição Federal garante a liberdade como direito fundamental e que ninguém pode ser submetido a tratamento médico forçado sem consentimento livre e informado. Internações involuntárias devem ser exceção, nunca regra, e só se justificam legalmente mediante ordem judicial ou por risco comprovado, de acordo com a Lei nº 10.216/2001 (Lei da Reforma Psiquiátrica).

Outro ponto abordado na nota técnica é a incompatibilidade da lei com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que possui status de emenda constitucional no Brasil. A convenção reconhece a plena capacidade das pessoas com transtornos mentais ou dependência química de tomar decisões sobre sua saúde e reforça o direito de viver de forma autônoma na comunidade.

A Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006) também foi mencionada, pois retira a possibilidade de internação compulsória para usuários, priorizando o tratamento em meio aberto por equipes multidisciplinares e com acompanhamento ambulatorial. A norma municipal de Niterói, ao prever acolhimento forçado com base em “risco iminente”, amplia indevidamente as possibilidades de internação, sem observar a excepcionalidade exigida pela legislação federal.

Políticas de segregação

A nota cita, ainda, decisões recentes do Supremo Tribunal Federal (STF), que reafirmam os direitos fundamentais das pessoas em situação de rua e proíbem remoções e recolhimentos compulsórios. Também são mencionadas diretrizes da Política Nacional para a População em Situação de Rua e o Plano Ruas Visíveis, ambos do governo federal, que rechaçam práticas de internação forçada e priorizam a inclusão social com respeito à dignidade humana.

O Estado deve garantir o direito à saúde por meio de serviços públicos como os CAPS, e não por meio de políticas de segregação. Internação deve ser uma medida excepcional, individual e em benefício da pessoa, jamais uma política pública com viés higienista”, concluem as instituições.

Apesar dos “termos mais suaves” utilizados pela lei municipal, as instituições entendem que “a nova política visa, essencialmente, a remoção forçada de pessoas em situação de rua, incorporando elementos de projetos de lei anteriores rejeitados por seu viés higienista e de limpeza social“. “Tratar o sofrimento psíquico e o uso de substâncias com remoção compulsória das ruas é uma forma de transformar sujeitos de direitos em objetos de controle estatal”, destacam os signatários.

A nota técnica foi enviada ao prefeito de Niterói e às Secretarias Municipais de Saúde, Desenvolvimento Econômico e Revitalização do Centro, Ordem Pública e Assistência Social, com a recomendação de que sejam adotadas providências para rever a legislação e garantir a adequação às normas constitucionais e internacionais de direitos humanos. O documento também foi encaminhado, para ciência, à Procuradoria-Geral da República (PGR) e ao Defensor Público-Geral do Estado do Rio de Janeiro.

Leia a nota na íntegra

Recomeço propõe ‘acolhimento humanizado’, diz prefeitura

O Recomeço integra a Política Municipal de Acolhimento Humanizado e Assistência Integral a Pessoas em Uso Abusivo de Álcool e/ou Outras Drogas e/ou com Transtornos Mentais, sancionada em abril deste ano. A nova legislação estabelece diretrizes para a assistência à população em situação de rua, com foco na consolidação de uma abordagem mais digna, eficaz e centrada nos direitos humanos.

Um dos pilares do Recomeço é o atendimento humanizado, que será estruturado a partir da criação de uma Central de Recepção, com capacidade para 27 mil atendimentos por ano. Nesse espaço, serão oferecidos serviços como alimentação, atendimento em saúde, emissão de documentos civis, assessoria jurídica, atividades culturais e inclusão produtiva.

Também será implantado um Centro Terapêutico para acolher pessoas em uso nocivo de álcool e outras drogas, com atendimento multidisciplinar e acompanhamento contínuo por profissionais da saúde. O programa inclui ainda a adesão ao modelo Housing First, com implantação gradual de 100 moradias e atendimento imediato a 30 famílias.

Pessoas em situação de rua também serão incluídas nos programas habitacionais do município, com acompanhamento socioassistencial e acesso aos serviços da rede municipal, além de encaminhamento para ações de geração de trabalho, emprego e renda. Estão previstas turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA) específicas para esse público, com expectativa de formar 200 alunos por semestre.

Haverá também oferta de cursos profissionalizantes, iniciativas de economia solidária e frentes de trabalho. O Programa Municipal de Inclusão Produtiva será implantado em parceria com instituições como Sesi, Firjan, Senac e associações comerciais, promovendo capacitação, inserção produtiva e geração de renda.

Na área da ordem pública, será lançado o programa Guardiões dos Bairros, que reunirá forças de segurança, secretarias municipais e associações de moradores em ações de ordenamento urbano, com foco no acolhimento e escuta qualificada. O plano prevê ainda ações emergenciais como o reforço das equipes de abordagem social, ampliação da zeladoria urbana, atuação conjunta com os Conselhos Tutelares no combate ao trabalho infantil e intensificação de campanhas de informação e conscientização.

Recambiamento de pessoas em situação de rua para municípios de origem

 

Em outubro de 2024, a Prefeitura de Niterói divulgou que o Programa de Recambiamento, implantado pela Secretaria Municipal de Assistência Social e Economia Solidária (SMASES), auxiliou 505 pessoas a retornarem para suas cidades e se reintegrarem ao convívio com parentes e amigos, com o apoio do município.

O Programa de Recambiamento visa não apenas reintegrar essas pessoas às suas cidades de origem, mas também fortalecer os vínculos com os familiares. Antes do processo de recambiamento, é realizado um contato prévio com a rede socioassistencial local que irá acolher o usuário em seu retorno à família”, informou o órgão.

Segundo a prefeitura, essas pessoas vêm de várias localidades, como Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Minas Gerais, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Goiás, e até do exterior, incluindo um colombiano e um português. Em 2022, 222 pessoas foram recambiadas. No ano seguinte, em 2023, o número foi de 163. Em 2024, até outubro já foram recambiadas 120 pessoas, sendo os principais estados de origem: Rio de Janeiro (48), Bahia (11), Espírito Santo (9), Mato Grosso do Sul (5), Goiás (4), Minas Gerais (4) e Colômbia (1).

Além das abordagens, são realizadas diariamente Ações de Zeladoria, em conjunto com o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), a Secretaria de Conservação e Serviços Públicos (Seconser), a Secretaria de Ordem Pública (Seop) e a Companhia de Limpeza de Niterói (Clin). Somente no mês de setembro do ano passado, 1.325 pessoas foram abordadas, e foram oferecidos serviços como acolhimento, recambiamento para reintegração familiar, emissão de documentos, atualização do Cadastro Único e encaminhamento para cuidados de saúde.

O Serviço Especializado em Abordagem Social atua 24 horas por dia, com 10 equipes formadas por assistentes sociais, psicólogos e educadores sociais. As equipes de abordagem social percorrem as áreas de maior concentração de pessoas em situação de rua e também atendem a demandas e denúncias recebidas pelos números (21) 97197-9366 (diurno) e (21) 97287-3643 (noturno).

Com informações da Prefeitura de Niterói e da Defensoria Pública da União

 

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