Uma menina sofre violência sexual a cada hora no Brasil. Foram mais de 66 mil estupros em 2018 – 80% entre mulheres, sendo 53,8% têm menos de 13 anos. Nada desses números, porém, choca mais o brasileiro do que a ideia de um aborto – ou a ‘interrupção forçada da gravidez’, como prevê a censura em torno até mesmo do nome do procedimento.
No Brasil conservador de Bolsonaro, não há crime no fundamentalismo cristão que se viu na porta do hospital onde a menina de 10 anos, grávida de três meses após ser estuprada desde os 6 pelo tio, foi submetida ao procedimento, que é permitido por lei em casos de estupro de vulnerável. Para eles, é “liberdade de expressão” acusar uma criança de 10 anos que teve sua infância violada ser chamada de ‘assassina’ por não querer gerar um bebê, um direito constitucional a ela garantido.
Uma pesquisa divulgada nesta segunda-feira (17) revela que o Brasil está entre os menos favoráveis em relação à prática do aborto. A Global Views on Abortion, realizada anualmente pela Ipsos com 25 países de todo o globo, mostra que entre 1.000 entrevistados brasileiros, apenas 16% acreditam que o aborto deveria ser permitido indiscriminadamente, ou seja, sempre que uma mulher assim o desejar. A média global é de 44%.
O posicionamento do Brasil coloca o país como o mais intolerante ao aborto no Ocidente, juntamente com o Peru, e como um dos três mais intolerantes no mundo inteiro, se considerarmos as 25 nações analisadas. O Peru está empatado com o Brasil também com 16% de favorabilidade à escolha da mulher. O único país com índice ainda mais baixo que o dos dois países sul-americanos é a Malásia, com 10% favoráveis à interrupção da gravidez sempre que uma mulher optar por fazê-lo.
Na metodologia do estudo, os respondentes deveriam escolher a frase mais representativa de seu ponto de vista:
o aborto DEVE ser permitido sempre que uma mulher assim o desejar;
o aborto DEVE ser permitido em determinadas circunstâncias, por exemplo, no caso de uma mulher ter sido estuprada;
o aborto NÃO deve ser permitido em hipótese alguma, exceto quando a vida da mãe estiver em risco;
o aborto NUNCA deve ser permitido, não importando sob quais circunstâncias; e, finalmente, não sei/prefiro não responder.
Enquanto 16% dos brasileiros partilham de um ponto de vista totalmente favorável em relação ao aborto, 38% creem que deve ser permitido em casos específicos, como estupros. Entre os desfavoráveis, 21% acham que não deve ser permitido em momento algum, somente se a saúde da grávida estiver em risco, já 13% não apoiam a permissão do aborto em nenhuma circunstância. Por fim, 12% dos ouvidos no Brasil não souberam ou não quiseram opinar sobre o tema.
Histórico do apoio à causa: Brasil já foi mais tolerante
A pesquisa Global Views on Abortion é realizada pela Ipsos no Brasil desde o ano de 2014 e, ao se analisar o histórico brasileiro, nota-se que a pauta do aborto já teve ondas de maior e menor apoio, mas em 2020 voltou à marca de seis anos atrás.
Em 2014, o percentual de entrevistados opinando que o aborto deveria ser permitido (medido pela soma das respostas “o aborto DEVE ser permitido sempre que uma mulher assim o desejar” e “o aborto DEVE ser permitido em determinadas circunstâncias, por exemplo, no caso de uma mulher ter sido estuprada”) era de 53%. Em 2015, foram 52%.
No ano seguinte, houve um aumento no apoio à causa, elevando o índice para 57%, mas uma queda brusca fez com que a taxa de favorabilidade ao aborto chegasse aos 50%, em 2017. Em 2018, voltamos aos 57% e, no ano passado, o brasileiro atingiu o auge de endosso à legalização do aborto: 61%. Hoje, voltamos aos 53%.
De acordo com os pesquisadores, o movimento visto no Brasil no último ano reflete o declínio na curva percebido no mundo desde 2016, quando a média global era de 75%. Em 2017, o percentual caiu para 72% e, nos últimos três anos, estagnou nos 70%.
América Latina como berço do conservadorismo
Quando regionalizamos as respostas dos participantes do estudo nos 25 países analisados, são significativas as disparidades no apoio à prática do aborto. O continente europeu encabeça o ranking dos mais permissivos: 58% acham que o aborto deve ser permitido sempre que uma mulher desejar e 22% são favoráveis à interrupção da gestação sob determinadas circunstâncias, totalizando 80%.
Na América do Norte, 47% são totalmente a favor e 24% em certos casos, somando 71%. No combo Ásia e Pacífico, os índices são de 43% e 28% de entrevistados, respectivamente, favoráveis ao aborto sempre e em determinadas situações, totalizando 71% também.
Os percentuais de apoio ao aborto diminuem consideravelmente na América Latina e no segmento Oriente Médio e África. No segundo, nesta região, 38% acreditam que deve ser permitido sempre que uma mulher desejar e 22% são favoráveis sob certas circunstâncias, somando 60%. Já na América Latina, a taxa de entrevistados com ponto de vista favorável ao aborto em qualquer caso cai para 26%, e em algumas situações, como um estupro, fica em 36%. O total é de 62%.
Quem são os favoráveis à legalização?
No Brasil, 55% dos homens acham que o aborto deve ser permitido, contra 52% das mulheres. Esse percentual soma as pessoas indiscriminadamente a favor e aquelas a favor sob determinadas circunstâncias. No entanto, se levarmos em conta apenas os resultados “deve ser permitido sempre que uma mulher assim o desejar”, o índice de favorabilidade é maior no sexo feminino (17%) do que no masculino (15%).
No que diz respeito à idade, os menores de 35 anos têm ponto de vista mais favorável à causa: 58% (22% acham que o aborto deve ser permitido sempre que uma mulher quiser e 36% apoiam a legalização em casos específicos, como estupro). Curiosamente, a faixa de idade mais velha – de 50 a 74 anos – partilha de uma opinião ligeiramente mais a favor do que aqueles entre 35 e 49 anos.
Enquanto 51% dos entrevistados com idade entre 50 e 74 anos acham que o aborto deve ser permitido (10% apoiam indiscriminadamente e 41% sob determinadas situações), 48% daqueles de 35 a 49 anos são favoráveis à opção de a mulher abortar (12% apoiam em todos os casos e 36% em circunstâncias específicas).
Para finalizar o perfil, demonstram maior apoio à legalização do aborto os brasileiros com alto grau de escolaridade. 21% creem que deve ser permitido sempre que uma mulher o desejar e 38% apoiam a prática em casos determinados, totalizando 59%.
Entre os que possuem um nível de educação médio, 54% demonstram apoiar a causa, sendo 16% a favor indiscriminadamente e 38% em algumas situações, como estupro. Os entrevistados com grau de escolaridade mais baixo são os que menos endossam a legalização do aborto. Apenas 5% acreditam que um aborto deve ser realizado sempre que uma mulher quiser e 34% acham que deve ser permitido em alguns casos, totalizando 39%.
Considerando uma visão global, o perfil do indivíduo favorável a tornar o aborto legal é de mulheres, com idade entre 50 a 74 anos e com alto grau de instrução. A pesquisa Global Views on Abortion foi realizada na plataforma on-line Global Advisor no período entre 22 de maio e 5 de junho de 2020 com aproximadamente 18 mil entrevistados em 25 países. A margem de erro para o Brasil é de 3,5 p.p..