Hoje, o que tem valido, tanto em redes sociais quanto na imprensa, não é se o emissor tem conteúdo, fala a verdade, mas sim se ele transmite a mensagem que ele deseja. Vale lembrar que tudo que passa na tela do seu smartphone é definido por algoritmos.
Muitas vezes, o que aparece foi pago para big techs que têm interesse no seu perfil. Não importa se é coerente ou verdadeiro, essas empresas estão interessadas apenas no lucro.
A emergência climática exige mais
Desconfio que a emergência climática é uma oportunidade para que todo ser de boa vontade desça do seu pedestal para aprender uns com os outros. Afinal, ninguém sabe de tudo. E toda virtude pode ser usada para o bem e para o mal. É urgente empregarmos o lado belo das nossas qualidades.
O contexto é de grande complexidade e está tudo interligado. Já pensou em reunir promotor de justiça, professor, líder comunitário, padre, pastor, jovens, idosos, de uma comunidade em uma roda de conversa para acessar a inteligência social coletiva em busca de soluções para a prevenção de desastres?
Estamos cansados de saber que não adianta apenas jorrar conhecimento entre os letrados. Ou postar cards em redes sociais, matérias na imprensa dizendo o que é certo ou errado. Hoje somos bombardeados por informações e distrações que nos tiram do foco do que é realmente importante.
Para mim, que circulo, “borboleteio” entre fontes e encontros que tratam de distintas faces do desastre e senti na pele, no coração e no bolso o significado de ter sido afetada, estamos diante do maior desafio da nossa história e precisamos encontrar caminhos para continuar vivendo.
E isso também passa pela nossa transformação de dentro para fora. Estamos no mesmo navio e uns seguem abrindo furos no casco, enquanto outros tiram água de canequinha ou de balde do convés. Outros ignoram o que acontece em suas cabines privadas.
Em síntese, estamos imersos e emaranhados em falhas de comunicação entre nós. Entre instituições, entre quem toma decisões, entre poderes e instâncias de governo. Aliás, você já conversou com seus vizinhos sobre como deve agir em caso de algum evento extremo, como ciclone ou tornado?
Um ano de desastre na GloboNews
Mesmo depois de tudo que aconteceu, o prefeito Sebastião Melo se reelegeu, com ampla votação mesmo nos bairros devastados pela inundação. Isso se deu a diversos fatores, mas principalmente pelas estratégias de comunicação adotadas na sua campanha. Nossa realidade interconectada é comandada pelas narrativas de quem tem domínio de surfar as ondas da internet.
Na quarta à noite, dia 30 de abril, o programa Em Pauta, da GloboNews, promoveu uma edição especial sobre o um ano do desastre no RS. A bancada fez perguntas para os representantes das três esferas de governo. E o impressionante é que o prefeito de Porto Alegre afirmou não se arrepender de nada do que foi feito. Vocês lembram das falas emblemáticas dele no ano passado?
No meio disso tudo, estamos nós, os moradores de cidades afetadas que ainda não sabemos decifrar o que significam os mapas distribuídos pela Defesa Civil na véspera de eventos extremos. Também não estamos sendo preparados para compreender como devemos deixar nossas casas diante de um tornado ou uma microexplosão. Será que a saída é se mudar para outro estado? (tenho me perguntado muito sobre isso)
Não vi qualquer autoridade sendo questionada sobre o que está sendo feito para instruir e educar a população para enfrentar esse “novo normal”. O aumento da temperatura global está sendo agravado pelo lançamento progressivo de Gases de Efeito Estufa (GEEs), mas tomadores de decisão parecem estar morando em outro planeta: enxugam a máquina pública que serviria para diminuir os gastos, para depois correr atrás do prejuízo para fazer obras de engenharia.
Enquanto há zilhões de influencers, vendedores, profissionais de diversas áreas se comunicando, ou melhor, dando o seu recado, vendendo seu peixe, comercializando cursos, produtos milagrosos para solucionar problemas desde unha encravada até depressão, o que o poder público está fazendo para prevenir e mitigar os impactos de várias crises de saúde pública, entre outros riscos, que estão nos rondando?
Mais dengue, menos gestão de risco
A explosão de casos de dengue em Porto Alegre é outra face das mudanças climáticas e da falta de cuidado do poder público com as vulnerabilidades da população. A dengue é uma doença provocada por um mosquito que se adaptou muito bem por aqui.
O mosquito Aedes aegypti se beneficia com o aumento da temperatura. E ele transmite não só dengue, mas também Chikungunya, Zika e febre amarela. E atinge todas as classes sociais, mas é claro, as mais pobres sofrem mais.
Qual é a estrutura de prevenção que o poder público está empregando para evitar a proliferação do mosquito? Qual é a relação da limpeza das áreas urbanas com o aumento de casos? Quais as tentativas de esclarecimento estão sendo realizadas? A mídia tem feito uma cobertura decente dessa situação? Quantas reportagens você tem visto sobre orientações de como não pegar a doença?
Nos últimos anos, a Prefeitura de Porto Alegre precisou montar um hospital de campanha para atendimento a vítimas de dengue devido à multiplicação de casos. Alguém perguntou quantos funcionários públicos estão se dedicando ao combate a esse inseto, que é uma espécie exótica, ou seja, não estava no nosso ambiente natural?
Uso esse exemplo, porque se antes, durante e depois do desastre não fomos orientados, preparados para saber como agir – o que valeu, na maior parte das vezes, foi o que alguém indicava em grupos de WhatsApp. Hoje estamos com outras demandas, mas está tudo interconectado, também é uma decorrência da emergência climática.
Estratégias de comunicação de risco já
É urgente a construção de mecanismos de comunicação de risco com a participação da sociedade, da academia, de diversos segmentos para enfrentarmos esse ‘novo normal’. Pesquisas mostram que campanhas e mobilizações dão mais certo se há envolvimento e engajamento das partes, chamadas de stakeholders.
Profissionais de comunicação precisam estar atuando desde a concepção da gestão de risco até a implementação de ações. Isto é muito mais do que fazer atendimento às demandas de assessoria de imprensa. A comunicação precisa ser encarada como um serviço de utilidade pública e não estar a serviço apenas do dono do poder do momento.
O desempenho do governador Eduardo Leite na Globo News demonstrou o quanto sua assessoria está afiada na condução da sua trajetória política. Já pensaram no tanto de tempo que a imprensa perde colocando uma esfera de governo contra outra enquanto poderia focar na busca de soluções?
É preciso sair das caixas
Não só o governo, mas movimentos da sociedade civil, academia, entre outras instituições, precisam se dar conta de que informar não é comunicar, como bem vem alertando há tempo o sociólogo Dominique Wolton. Comunicar exige negociação, contato, retorno.
Diante de todo esse emaranhado, dessa infodemia, na qual o que é completamente supérfluo toma conta das telas, enquanto o essencial para a nossa sobrevivência enquanto espécie é deixado de lado, o que nós podemos fazer?
Não adianta ter uma rede robusta de monitoramento se não há comunicação, transdisciplinaridade e interseccionalidade com os distintos públicos Arrisco em escrever que, talvez, o primeiro passo seja vencer o que está cristalizado: o funcionamento em caixinhas, departamentos, unidades, onde cada um é senhor, doutor, entendido no seu quadrado.
A transdisciplinaridade, a interseccionalidade, ou seja, a mescla de saberes, é algo imperativo, mas que ainda engatinha na nossa sociedade em si mesma.
Um resumo das dezenas de palestras, aulas, eventos e aprendizados
Duas iniciativas – Colóquio Comunicação de Riscos em Desastres Naturais e Summit sobre Mudanças Climáticas – promovidas pela UFRGS, mas com propósitos distintos, denotam o quanto as pessoas que fazem a instituição acontecer estão empenhadas em querer melhorar o contexto da prevenção e da preparação para novos desastres.
A seguir, um resumo do que considero relevante sobre as dezenas de palestras, aulas, eventos e aprendizados que tive no final de abril e início de maio. Em resumo, tópicos do Summit em Mudanças Climáticas, promovido pela reitoria da UFRGS.
Summit em Mudanças Climáticas
1. O conceito de desastre denominado ambiental precisa ser revisto. Ele ocorreu e ocorrerá devido a diversos fatores que foram agravados pela ação do Homo sapiens, digo Homo demens. No evento, o professor Rualdo Menegat, da geociências da UFRGS, o chamou de desastre hidrosocioclimático-ambiental.
2. Com a intensificação do aumento de gases de efeito estufa (GEEs), os voos de passageiros deverão ser mais turbulentos, especialmente devido aos corredores de ar de frentes frias e quentes se encontrando, avisou o professor da Geografia Francisco Aquino (pense nisso antes de pegar um avião).
3. O Rio Grande do Sul é um dos estados que mais está sendo afetado pelo aumento do nível do mar. A temperatura das águas das nossas praias também está mais quente porque correntes marítimas geladas da Malvinas não estão chegando até o Estado, destacou Venisse Schossler, do Centro Polar e Climático da UFRGS.
4. Um grande problema para o RS é a vulnerabilidade cultural. O negacionismo climático também é, alertou Osvaldo Moraes, presidente do Comitê Permanente para Redução do Risco de Desastres da Organização Meteorológica Mundial.
5. Os alunos de ensino fundamental precisam de aulas sobre aspectos climáticos, geografia física e serem preparados para agir em caso de risco e perigo.
6. As inundações das planícies do Jacuí ajudaram muito a evitar que o estrago fosse muito pior na Região Metropolitana, pois poderia ter chegado a uns 7 metros de altura, devido ao volume de água que desceu da serra, segundo o pesquisador do IPH Walter Collischonn. Ele afirma que o RS é um estado esponja.
7. A reconstrução não pode ser igual a antes. As pontes precisam ser mais altas. Todo morador do RS precisa se conscientizar de que outros eventos extremos virão. É preciso se preparar.
8. José Marengo, um dos cientistas mais importantes do clima do Cemaden, ressaltou a diferença entre gerenciamento do risco e a gestão do desastre. Ele tem dado palestras pelo mundo afora sobre o caso do RS em 2024. Temos muito que aprender entre o que é alerta meteorológico e alerta sobre risco de desastre.
9. As três esferas de governo precisam de tomadores de decisão que adotem Soluções Baseadas na Natureza (SBN), como criação de áreas permeáveis, aumento da arborização urbana e drenagem eficiente.
10. Não adianta ter uma rede robusta de monitoramento se não há comunicação com os distintos públicos de forma eficiente.
11. Os diferentes lados da vulnerabilidade estão no epicentro dos desastres. O desastre é decorrente de uma construção social. Quando haverá uma investigação forense dos desastres? Muitas autoridades culpam a natureza pela desgraça.
12. A professora da UFRGS Lorena Fleury pesquisa desde 2014 o tema Sociologia dos Desastres. Ela assegura que as consequências da emergência climática se agravam devido à omissão dos gestores públicos, que não se mobilizam para diminuir as injustiças ambientais. As mulheres, os idosos e as crianças são as mais atingidas. As mulheres, sobretudo as negras, são as mais sobrecarregadas.
13. O fato de não termos uma continuidade no trabalho da Defesa Civil (formada basicamente por cargos em comissão), pois a cada eleição a equipe troca, deixa os municípios mais vulneráveis sob o ponto de vista institucional. No Brasil, 957 municípios estão localizados em áreas de risco! O alerta é do sociólogo do Cemaden Victor Marchezini, que pesquisa desastres desde o início deste século.
14. Enquanto a população sofre diante de uma desgraça enorme, alguns lucram com a desinformação. Muita fake news foi produzida durante um episódio de horror apenas com o objetivo de gerar visualizações. Ao veicular conteúdos com pânico, a tragédia é monetizada. Ou seja, apenas consulte em fontes oficiais e confira em diversos lugares aquilo de que desconfia.
15. A invisibilidade dos vulneráveis é um problema global. E agentes que atuam pela coletividade no serviço público não conseguem aplicar a lei principalmente devido a interesses de políticos, apontou Irasema Alcántara Ayala, professora do Instituto de Geografia da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM). Além disso, existem “vazios legais”, já que muitos políticos não canalizam energia para buscar soluções de longo prazo.
16. As ondas de calor são mais mortais que os eventos extremos hidrometeorológicos. No RS, os efeitos das altas temperaturas e das inundações têm provocado traumas que promovem efeitos intergeracionais, comentou o médico César Victora, da Universidade Federal de Pelotas. Ele classifica o sofrimento de mães sem acesso à água durante a gravidez como uma decorrência do racismo ambiental, pois seus filhos futuramente também poderão ter sido impactados por isso.
17. Francisco Milanez, diretor da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), revelou estar assustado com a “normose”, pois não podemos esquecer tudo que passou e encarar como algo normal. Ele também foi um dos palestrantes que salientou o quanto a universidade e as instituições precisam ser mais abertas à transdisciplinaridade. Ele avalia que não se tem mais tempo para “maquiar a sustentabilidade” e que o planejamento de longo prazo necessita ser implementado como uma política de Estado e não de um governo.
18. A fala da médica pneumologista Margareth Dalcomolo, da Fiocruz, foi uma das mais emocionantes. Ela indagou: onde estão aqueles abnegados como Luis Pasteur, Avicena e Walter Benjamin que deixaram legados e ousaram no tempo em que estiveram na Terra? Para ela, que foi uma das defensoras da Ciência durante a pandemia, teremos novas epidemias, pois estamos nas mãos do Homo cretinus. E citou o quanto alguns integrantes da sua categoria médica têm prestado um desserviço à sociedade brasileira.
19. Precisamos muito aprender o quanto a estabilidade dos oceanos tem relação com o que acontece nos continentes. Eles são interconectados. É urgente uma visão sistêmica da mudança climática contemplando o que está acontecendo nas áreas marinhas.
20. Você sabia que, mesmo com tudo que aconteceu no RS, o Porto de Rio Grande não parou de funcionar nenhum dia? Confesso que ao ouvir a fala do Henrique Ilha, diretor de meio ambiente do Portos RS, senti uma ponta de esperança, um sinal de que há luz no fim do túnel. Agora, por que o governo do Estado e demais municípios não se baseiam nas estratégias de prevenção e gestão de risco do nosso maior porto? E mais: sabiam que a única régua de medição das águas que não sucumbiu no cais Mauá foi a monitorada pelo Porto?
Confira aqui a carta do Summit postada no Agir Azul. Fiz várias entrevistas ao vivo com palestrantes no meu perfil do Instagram @silmacuzzo, confere lá.
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Texto publicado originalmente no site Sler – veja aqui e aqui também.