Se existe um ‘lado bom’ na trágica crise do metanol no Brasil é a redução drástica no consumo de bebidas alcoólicas, um reflexo que, ironicamente, pode trazer benefícios imediatos para a saúde dos brasileiros. O medo da intoxicação pela substância tóxica, encontrada em bebidas falsificadas ou adulteradas, tem levado consumidores a moderarem – ou suspenderem – o hábito de beber, especialmente destilados.
A mudança de comportamento, forçada por uma emergência sanitária, coloca em pauta o debate sobre a saúde pública e o papel da fiscalização. A crise provocada pela suspeita de bebidas adulteradas com metanol em São Paulo já traz reflexos diretos na economia e, de forma mais significativa para a saúde, no comportamento dos consumidores.
A crise de contaminação por metanol em bebidas adulteradas no Brasil trouxe um impacto imediato na saúde pública, manifestado pela redução no consumo de álcool. O medo da intoxicação pela substância tóxica fez os consumidores moderarem o hábito de beber, o que pode ter reflexos positivos na saúde dos brasileiros a longo prazo.
Um levantamento inédito realizado pela Zig, plataforma de gestão e inteligência para o setor de entretenimento, que analisou 393 mil pedidos entre 22 de setembro e 4 de outubro de 2025, mostra um dado alarmante e inédito:
- Queda no consumo: As vendas de destilados (whisky, vodka e gin) despencaram 70%, com gin (-77%) e vodka (-71%) liderando as perdas. A queda foi parcialmente compensada pela maior venda de cervejas (+7%), vinhos (+36%) e espumantes (+58%).
- Mudança de hábito: O público reagiu com prudência, priorizando a segurança de bebidas industrializadas e lacradas (cervejas long neck, vinhos de garrafa) em detrimento dos drinks manipulados no balcão.
- Comportamento de risco em queda: A presença de jovens de 18 a 24 anos, um grupo historicamente ligado à coquetelaria e à vida noturna prolongada (e frequentemente associado a padrões de consumo de risco), diminuiu 25%.
- Retração do público: O número de consumidores únicos caiu 15%, com a presença feminina diminuindo 20% e a queda entre jovens de 18 a 24 anos atingindo 25%. O horário de maior movimento noturno (após as 22h) também foi o mais afetado. Os horários de pico, de 22h às 2h, registraram queda de 28% no consumo.
Segurança x saúde: a troca de bebidas
A queda nos destilados foi parcialmente compensada pelo aumento na venda de cervejas (+7%), vinhos (+36%) e espumantes (+58%).
Os dados indicam que o paulistano reagiu com prudência, priorizando segurança sem abrir mão do lazer. O consumo de bebidas industrializadas e lacradas, como cervejas long neck e vinhos de garrafa, ganhou força, enquanto os drinks manipulados em balcão perderam espaço”, complementa David Pires, CIO da Zig.
A troca de destilados por bebidas lacradas e industrializadas (mesmo que ainda alcoólicas) mostra que o consumidor priorizou a segurança sanitária (evitar adulteração), não necessariamente a redução do risco à saúde (relacionado ao volume e teor alcoólico total). O volume de álcool ingerido pode não ter caído na mesma proporção da queda do faturamento, reforçando a necessidade de conscientização que vá além da falsificação.
A retração expõe não só os riscos do mercado ilegal, mas também a vulnerabilidade da população à alta ingestão alcoólica e a urgência de políticas de controle mais eficazes. Essa retração, apesar de ser um baque para o setor de entretenimento, é um indicador positivo do ponto de vista da saúde pública. A Organização Mundial da Saúde (OMS) alerta que o consumo nocivo de álcool está associado a mais de 200 doenças e lesões.
Saúde e segurança em risco: a reação da indústria e do governo
A queda abrupta no consumo de destilados, justamente os de maior teor alcoólico, sugere que o medo da falsificação cumpriu, temporariamente, o papel que campanhas de prevenção e políticas públicas de taxação e restrição de acesso buscam atingir: a redução da exposição ao risco do álcool.
O metanol em bebidas é um crime contra a saúde pública, provocando mortes e graves sequelas. A situação reforça a urgência de medidas estruturais para proteger a população do mercado ilegal, que, além de sonegar impostos (prejuízo de R$ 136 bilhões em 2022, segundo a CNI), põe vidas em risco.
Entidades da indústria e do comércio, como a Confederação Nacional da Indústria (CNI), Associação Comercial de São Paulo (ACSP), Associação Brasileira de Combate à Falsificação (ABCF) e Federação de Hotéis, Restaurantes e Bares do Estado de São Paulo (Fhoresp), se uniram ao governo no recém-criado Comitê de Enfrentamento da Crise do Metanol, no Ministério da Justiça.
As principais reivindicações e propostas são focadas na segurança do consumidor:
- Regulamentação urgente: A ACSP e a ABCF/Fhoresp alertam para a falta de controle e monitoramento da produção de bebidas, um fator que aumenta as adulterações no País.
- Rastreabilidade e controle: A reativação do Sistema de Controle de Produção de Bebidas (Sicobe), da Receita Federal, é apontada como medida essencial pela ABCF/Fhoresp. O sistema, que monitorava a produção e foi desativado em 2016, garantiria a autenticidade e segurança dos produtos.
- Ação coordenada: A CNI reforça a necessidade de coordenação entre União, estados e municípios, utilizando inteligência policial, fiscal e sanitária em uma estratégia nacional para combater a ilegalidade.
O custo da ilegalidade: vidas e economia
A crise do metanol expõe de maneira trágica a fragilidade da fiscalização e o poder devastador do mercado ilegal, que coloca vidas em risco e drena recursos vitais. O metanol é um álcool industrial altamente tóxico que, mesmo em pequenas quantidades, pode causar cegueira irreversível, danos cerebrais graves e morte. Sua presença em bebidas de consumo humano é um crime contra a saúde pública e exige uma resposta imediata das autoridades.
O “Brasil Ilegal” somou R$ 453,5 bilhões em prejuízos a 16 setores em 2022. Falsificações, além de colocar vidas em risco, competem de forma desleal com empresas idôneas, fomentam o crime organizado e comprometem a arrecadação de R$ 136 bilhões em impostos – dinheiro essencial para o desenvolvimento social, incluindo o financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS).
Urgência na regulação e fiscalização
Diante do cenário, entidades como a Confederação Nacional da Indústria (CNI), a Associação Comercial de São Paulo (ACSP) e a Associação Brasileira de Combate à Falsificação (ABCF) uniram forças para cobrar medidas. O consenso é que o combate a esse mercado paralelo é urgente e estrutural.
A chave para a segurança, segundo essas entidades, é o restabelecimento do Sistema de Controle de Produção de Bebidas (Sicobe). Criado em 2008 pela Receita Federal para rastrear e combater a sonegação e adulteração, o sistema foi desativado em 2016.
Sua reativação, já determinada duas vezes pelo Tribunal de Contas da União, é vista como uma medida essencial para garantir a autenticidade e segurança dos produtos, protegendo a saúde pública e inibindo a ação do crime organizado.
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A crise como oportunidade
A tragédia do metanol reforça a importância de que a atuação do governo (por meio do Comitê de Enfrentamento da Crise do Metanol) seja enérgica e estrutural. Não basta apenas combater os crimes pontuais; é preciso implementar um sistema robusto de rastreabilidade e fiscalização que proteja o cidadão de forma contínua.
Enquanto as autoridades não agem com a urgência necessária, o consumidor e o comerciante assumem o papel de “fiscal”. O alerta é para atenção redobrada a: lacres violados, rótulos suspeitos e preço muito abaixo da tabela do mercado.
Enquanto se aguarda a ação do poder público, a ACSP ressalta a importância de a sociedade civil, incluindo comerciantes, atuar como “fiscais” do setor, ficando atenta a sinais de adulteração como: lacres violados, rótulos e embalagens suspeitas e preços muito abaixo do mercado.