Milhares de mulheres foram às ruas de diversas partes do país na noite desta quinta-feira (13), em protesto contra o avanço, na Câmara dos Deputados, do projeto de lei que equipara o aborto ao crime de homicídio, com pena de até 20 anos de prisão. Batizado de ‘PL da Gravidez Infantil’, o projeto criminaliza mulheres e meninas que realizarem aborto legal no Brasil e proíbe o aborto mesmo em casos de gravidez decorrente de estupro, se houver viabilidade fetal.  

Crianças sendo obrigadas a serem mães. É isso que um projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados quer nos obrigar a engolir. Esse projeto absurdo obriga meninas e mulheres vítimas de estupro a levar a gravidez resultante desse crime adiante. Caso contrário, a pena é similar a um crime de homicídio”, diz o texto de um abaixo-assinado digital que circula nas redes sociais e aplicativos de conversa.

Manifestantes empunharam cartazes com os dizeres ‘Estupro não é formação de família’, ‘Gravidez forçada é tortura’, ‘Criança não é mãe e estuprador não é pai’ e ‘Nem presa, nem morta’. Houve manifestações na Cinelândia, no Rio de Janeiro; no Masp, em São Paulo, e em outras capitais, como Brasília, Florianópolis, Manaus e Recife. Também estão confirmados atos em Porto Alegre nesta sexta-feira(14) e em Recife na próxima segunda-feira (17).

Mulheres protestam na Cinelândia, no Centro do Rio, contra projeto de lei que criminaliza meninas (Fotos: Rogério Marques)

Por todo o Brasil, as mulheres comprometidas com a vida de outras mulheres estão puxando atos em caráter emergencial para se posicionar contra o projeto. Não podemos concordar com uma lei que criminaliza as mulheres e crianças vítimas de estupro por tentarem interromper uma gestação fruto de violência”, diz um chamado nas  redes sociais.

Em nota pública, que pode ser assinada até esta sexta-feira (14), às 18 horas, a Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom) e a Rede Nacional de Combate à Desinformação (RNCD) repudiam o projeto de lei. Segundo as entidades, o  projeto pretende “regular o corpo de crianças, mulheres e pessoas que gestam, além de criminalizá-las ao vedar a busca por reduzir os danos resultantes do crime de estupro”.

Atualmente, nos casos previstos em lei – anencefalia fetal; gravidez que coloca vida da gestante em risco e gravidez resultante de estupro – não há determinação de um limite máximo para interromper a gravidez. Isso resguarda crianças que, vítimas de abuso e estupro, muitas vezes não tem conhecimento da própria gestação nos meses iniciais.

Entenda a proposta que ameaça meninas e mulheres

Mulheres protestam na Cinelândia, no Centro do Rio, contra projeto de lei que criminaliza meninas (Fotos: Rogério Marques)

A Câmara dos Deputados aprovou na quarta-feira (12) a tramitação em regime de urgência do PL 1904/2024, em apenas 24 segundos. Agora, o projeto será votado no plenário da casa, sem passar antes pelas comissões pertinentes, nem por audiência pública.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) descumpriu um acordo e pautou a matéria sem aviso e sem anunciar o número do projeto. Ainda ignorou o resultado de enquete realizada no próprio site da Câmara, que apontava, até 13 de junho, rejeição de 70% às mudanças propostas.

Proposto pelo deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL – RJ) e assinado por 32 deputados da extrema direita em maio passado, o ‘PL da Gravidez Infantil’ acrescenta artigos ao Código Penal para equiparar as penas previstas para homicídio simples aquelas para abortos realizados após 22 semanas de gestação.

Também proíbe a realização do aborto legal ao estabelecer como prazo máximo estipulado para o procedimento a 22ª semana de gestação. De acordo com o projeto de lei 1904, “a pessoa que provoca o aborto em si mesma ou consente com a realização da interrupção da gravidez, tem a pena aumentada para entre 6 a 20 anos de prisão”. As penalidades mais rigorosas são estendidas aos profissionais envolvidos no procedimento. 

Pelo texto que tramita na Câmara, interromper uma gravidez equivaleria a cometer crime mais grave que o de estupro, já que, neste caso, a pena de acordo com o artigo 213 do Código Penal Brasileiro vai de 6 a 10 anos, acrescida para de 12 a 30 anos se resultar em morte. Em caso de estupro em crianças e vulneráveis a pena é de 8 a 15 anos.

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Dois estupros de vulnerável por hora no Brasil

O projeto de prevê pena de até 20 anos de prisão, mesmo no caso de estupro em crianças, mulheres e pessoas em situação de vulnerabilidade. Na avaliação de especialistas e manifestantes, as principais afetadas serão as crianças, que são boa parte de quem busca os serviços neste período.

Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) apontam que foram registrados 34 mil casos de estupro de meninas e mulheres no Brasil no primeiro semestre de 2023. Isso significa que a cada oito minutos uma mulher foi estuprada entre janeiro e junho do ano passado. São mais de 150 casos de estupro por dia no Brasil – 6 por hora.

A violência sexual, sobretudo contra crianças e adolescentes, é uma realidade. Nos 4 primeiros meses de 2024, o serviço Disque Direitos Humanos (Disque 100) registrou quase 8 mil denúncias de estupro de vulnerável – média de dois registros por hora. Este número se trata apenas de estupro de vulnerável denunciados.
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), apenas 8,5% dos estupros no Brasil são relatados à polícia. Mulheres adultas evitam denunciar casos de violência sexual, por geralmente serem culpabilizadas pelas agressões sofridas; crianças quando conseguem falar sobre o assunto são desacreditadas.
Essa semana, um pai foi preso acusado de estuprar a própria filha, dentro da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) de um hospital. A mãe da vítima, esposa do criminoso, defendeu o homem, ao invés de proteger a filha.
Há inúmeros motivos para que as vítimas de estupro não denunciem a violência. Em mais de 60%, o autor da violência contra menores era familiar – pai, padrasto, avô, tio etc – e 21,6% eram conhecidos da vítima (como vizinhos e amigos).
Os números são alarmantes: 10,4% das vítimas de estupro eram bebês e crianças com até 4 anos; 17,7% das vítimas tinham entre 5 e 9 anos; 33,2%, entre 10 e 13 anos – 61,4% tinham no máximo 13 anos.

Até deputado federal de direita critica projeto de lei

Mesmo sendo da bancada de oposição ao governo, o deputado federal Marcelo Queiroz (PP-RJ) adiantou que votará contra a matéria. “O partido me libera, cada um tem a sua ideologia. No meu caso, eu sou contra o aborto, mas entendo ser absurdo a gente criminalizar um caso de estupro, mesmo depois de 22 semanas. Então, eu vou votar contra”, adiantou Queiroz.

Em seu instagram, o deputado Pastor Henrique Vieira (Psol-RJ) fez um questionamento direcionado à população evangélica. “Se uma irmã contar ao seu pastor que interrompeu uma gestação, ele deve acolhê-la ou ligar para a polícia?”, indagou.

Para o parlamentar, o país precisa de uma política de assistência social, de escuta e acolhimento das mulheres e meninas. “Nos países onde medidas como essas foram adotadas, houve diminuição tanto no número de mortes por procedimentos inseguros quanto no número de abortos realizados. Ou apostamos em caminhos que comprovadamente funcionam ou abandonamos as mulheres na prisão ou à morte”

O deputado federal Tarcísio Motta (Psol-RJ) também criticou o projeto de lei. “Está tudo errado nesse projeto. O debate sobre a legalização do aborto é uma questão importante que acontece no mundo inteiro, e tem que ser feito com seriedade”, disparou Motta, Ele disse ainda que o aborto não é um método de prevenção à gravidez. E defendeu um debate amplo sobre a legalização da prática no país para evitar a morte de mulheres.

Nenhum de nós está dizendo que o aborto é um método contraceptivo, há todo um processo de educação sexual para não engravidar, mas é preciso de se avançar no debate do aborto legal seguro para que as mulheres não morram como morrem hoje, sobretudo, as mais pobres”, destacou.

Para a deputada Carol Dartora (PT-PR), o projeto “criminaliza meninas e mulheres que foram estupradas e engravidaram do estuprador, ao eliminar a excludente de punibilidade em casos de gestação avançada”. Segundo ela, o texto transforma as vítimas de estupro e as meninas e mulheres em situação de vulnerabilidade em criminosas! Além disso, atenta gravemente contra direitos fundamentais como saúde física e mental, dignidade, integridade e autonomia!”

‘Não há país do mundo que puna o aborto como homicídio’, diz advogado

Não se pode ignorar o direito da mulher a dispor do seu corpo, nem a realidade social que torna o aborto comum entre mulheres jovens e pobres, que não tem condições de assumir a maternidade”, afirma o advogado Sergio Batalha, sócio do escritório Batalha Advogados Associados, no Rio de Janeiro.

Segundo ele, “ainda que se tenha uma posição favorável à criminalização do aborto, equiparar sua pena a do homicídio contraria a lógica do nosso sistema legal e pune de forma desproporcional mulheres submetidas a condições sociais que explicam o fenômeno do aborto”.

O especialista classificou o PL como “um gravíssimo ataque aos direitos das mulheres no Brasil, ignorando a realidade social e os princípios mais básicos do Direito”. Segundo ele, no inicio da faculdade, o estudante de Direito aprende que a personalidade civil surge com o nascimento com vida.

“Ou seja, uma pessoa é considerada como tal após seu nascimento. Antes disso, o feto recebe uma proteção legal, assim como a gestante, mas não é considerado como uma pessoa no aspecto legal. Em consequência, o aborto em nosso sistema é crime, mas não é tipificado como homicídio pois o feto não tem personalidade civil”, detalha.

‘O Congresso quer que o Brasil volte ao século XIX’

Para o advogado, o projeto de lei é “o mais recente retrocesso civilizatório” no Brasil, onde prevaleceram “conceitos do extremismo religioso sobre um consenso social existente em todo o mundo”. Segundo Batalha, a extrema-direita está pautando todo o tipo de retrocesso nos direitos civis, a pretexto de defender a moral e a religião.

Querem fazer o Brasil voltar ao século XIX e se transformar em uma república teocrática e obscurantista. Temos de preservar direitos básicos, assegurados pela nossa Constituição, após décadas de evolução social desde a proclamação da República no Brasil”, declarou.

De acordo com Batalha, “não há país do mundo que puna o aborto como homicídio, sendo que boa parte dos países desenvolvidos o aborto é um direito da mulher até determinado estágio da gestação.

Com informações de agências e redes sociais

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