Casos de contaminação por álcool adulterado não são novidade no Brasil. Em 1999, foram registradas 35 mortes por cachaça adulterada na Bahia. Há ainda o caso da cerveja Belorizontina, em Minas Gerais, em 2020, que deixou dez mortos e quase 20 pessoas com sequelas graves.
A gravidade do cenário se soma a um problema global: segundo estimativas internacionais, mais de 420 mil pessoas morrem todos os anos por intoxicações químicas, muitas delas ligadas a bebidas ilícitas.
Para Paula Eloize, especialista em segurança de alimentos há mais de dez anos, o número real é ainda mais alarmante. “O perigo é que a população não tem como identificar a diferença entre etanol e metanol em uma bebida. É uma roleta-russa química, onde cada gole pode custar a vida”, alerta.
O metanol é altamente tóxico. Entre 12h e 24h após o consumo, podem surgir dor de cabeça intensa, náusea, vômito, dor abdominal, confusão mental e visão turva repentina. Em concentrações mais altas, o resultado pode ser cegueira irreversível, falência de órgãos e morte.
Raiz do problema: crime e falta de rastreabilidade
Entidades que acompanham o setor apontam que, somente em 2025, mais de 160 mil produtos falsificados foram apreendidos no país, além de insumos e equipamentos destinados à produção clandestina.
Investigações revelam ainda que lotes de metanol importados ilegalmente para fraudar combustíveis teriam migrado para destilarias clandestinas e falsificadores de bebidas, em operações ligadas a facções criminosas.
Estamos falando de um produto químico altamente tóxico que circula no submundo do crime. Ele sai de esquemas de adulteração de combustíveis e acaba no copo da população. É segurança pública, não só saúde”, denuncia Paula.
A especialista explica ainda que o metanol usado em bebidas não tem origem no setor legal de produção.
Estamos falando de sobras químicas e de combustíveis apreendidos em operações contra o crime organizado. Esse material volta clandestinamente ao mercado e acaba nas garrafas. Não é somente fraude comercial, é homicídio químico planejado”, revela
A solução, segundo a especialista, está em adotar mecanismos robustos de rastreabilidade.
Enquanto uma garrafa de bebida não tiver o mesmo controle de origem que um medicamento, vamos continuar vulneráveis. Não basta apreender cargas; é preciso rastrear cada lote, da fábrica ao consumidor”, defende.
Intoxicação por metanol: como identificar e agir
Sintomas mais comuns (12h a 24h após a ingestão):
- Dor de cabeça intensa
- Náusea, vômito e dor abdominal
- Confusão mental
- Visão turva repentina (pode evoluir para cegueira irreversível)
- Convulsões em casos graves
O que fazer:
- Procure atendimento médico imediato em pronto-socorro;
- Informe o histórico de ingestão de bebida suspeita;
- O tratamento pode incluir antídotos específicos (etanol venoso), bicarbonato para corrigir a acidez do sangue, vitaminas (ácido fólico/folínico) e, em casos críticos, hemodiálise para remover o veneno.
Prevenção:
- Compre bebidas apenas em pontos de venda confiáveis;
- Evite produtos de procedência duvidosa ou preços muito abaixo do mercado;
- Fique atento a embalagens alteradas ou sem rótulo.
O Brasil precisa tratar a presença de metanol em bebidas como questão de saúde pública e segurança nacional. A cada caso, não estamos falando apenas de estatística, mas de vidas roubadas por uma cadeia criminosa invisível”, conclui Paula Eloize.
De bares a fabricantes, toda a cadeia pode responder
Especialistas explicam ainda os direitos dos consumidores
O caso acendeu a preocupação sobre a segurança dos consumidores e a responsabilidade dos estabelecimentos. Atualmente, a cadeia clandestina envolve fábricas que misturam produtos em tonéis muitas vezes contaminados por metanol e operadores que compram garrafas em lixões para dar legitimidade à bebida.
Há alguma garantia quando falamos de empresas grandes. Já as adegas podem comprar de fornecedores variados. As bebidas destiladas muitas vezes não têm distribuidores específicos; elas são distribuídas por intermediários, e aí todo mundo acaba vendendo de tudo. E é esse o risco”, disse à CartaCapital o consultor de marketing Adalberto Viviani, com mais de 20 anos de experiência no mercado de bebidas.
Para o advogado especialista em Direito do Consumidor, Stefano Ribeiro Ferri, a lei é clara nesses casos: todos os envolvidos na cadeia de fornecimento podem ser responsabilizados.
“Se uma bebida adulterada com metanol causa intoxicação, todos que participaram da cadeia de fornecimento podem ser responsabilizados: o fabricante, o distribuidor, o comerciante e até o bar que vendeu o produto. Isso porque o Código de Defesa do Consumidor prevê responsabilidade solidária. Além disso, há consequências criminais para quem produz ou comercializa bebida adulterada”.
O advogado destaca ainda que a legislação prevê que o consumidor tem direito à saúde e à segurança. Por isso, em caso de intoxicação, é essencial reunir documentos que comprovem a compra e o consumo.
É essencial guardar a nota fiscal, o frasco ou garrafa, o rótulo e, se possível, realizar exames médicos que comprovem a intoxicação. Esses elementos fortalecem a ação judicial e o inquérito criminal”, orienta.
Além das indenizações às vítimas, quem comercializa ou produz bebidas adulteradas pode enfrentar processo penal. “Quem comercializa produto adulterado pode ter que indenizar as vítimas e ainda enfrentar processo penal, que prevê pena de prisão para esse tipo de crime”, explica.
Como se proteger
A recomendação é redobrar os cuidados ao comprar bebidas. Desconfie de preços muito abaixo do mercado, por exemplo, alerta o especialista. “Evite comprar bebidas de procedência duvidosa, especialmente em vendas on-line ou informais, confira lote, selo de autenticidade e siga os alertas de órgãos como Anvisa, Procon e Vigilância Sanitária. Nesse momento, prudência é fundamental”.
Ferri lembra ainda que quem produz ou vende bebida adulterada responde tanto civil quanto criminalmente nesses casos. Pode ter que indenizar as vítimas e ainda enfrentar processo penal, que prevê pena de prisão para esse tipo de crime. “Os estabelecimentos precisam comprar apenas de fornecedores regularizados, checar a documentação das bebidas, recusar produtos com rótulo suspeito e guardar registros de compra. Caso haja dúvidas, é dever comunicar as autoridades para evitar tragédias maiores”, finaliza.
Embora a presença de metanol possa, em raros casos, principalmente relacionada à produção irregular, derivar de falhas no processo de destilação, os incidentes recentes apontam para um cenário de adulteração criminosa, visando o lucro ilícito em detrimento da vida.
Saúde pública
Para o advogado Fernando Moreira, doutor em engenharia de produção com foco em compliance, que é também criador de conteúdo digital sobre bebidas, a tragédia causada pelo metanol vai além da esfera do Direito do Consumidor, sendo um caso grave de saúde pública e crime.
A adulteração de bebidas alcoólicas com substâncias tóxicas como o metanol não é apenas uma infração administrativa; é um crime contra a saúde pública, tipificado pelo Código Penal. A perspectiva do Compliance nos ensina que a responsabilização deve ser ampla.
No Brasil, a conduta encontra enquadramento, por exemplo, no art. 272 do Código Penal (adulteração/falsificação de produto alimentício) e pode gerar responsabilização por homicídio (inclusive na modalidade de dolo eventual), além de responsabilidade civil objetiva na esfera do consumo (arts. 12 a 14 do CDC). É fundamental que as autoridades atuem com rigor na responsabilização, investigando toda a cadeia para punir de forma exemplar não só quem envasa, mas quem distribui, quem comercializa e, principalmente, quem se omite e lucra com a vida das pessoas”, afirma Moreira.
Governança e Responsabilidade
Segundo Moreira, a questão central para evitar que esses casos se repitam está na rastreabilidade baseada em risco e no aumento da fiscalização integrada. Para ele, o Estado e toda a cadeia de produção, distribuição e venda devem ser os principais garantidores da saúde pública. Segundo ele, o problema do metanol está diretamente ligado à falha na cadeia de custódia, onde a falta de controle permite que produtos adulterados se misturem aos legítimos.
O sistema jurídico precisa garantir a cadeia de custódia do produto, ou seja, comprovar a origem e o trajeto da bebida desde a produção. Isso exige que as empresas implementem programas de due diligence de fornecedores e distribuidores, assegurando que seus parceiros comerciais também sigam padrões éticos e legais”.
O especialista alerta que a falta de inspeção sanitária e o comércio informal facilitam que produtos piratas e adulterados cheguem ao copo do consumidor. É preciso investir em controle de qualidade, em tecnologia de rastreabilidade e na disseminação de uma cultura de conformidade que penalize severamente a negligência e a corrupção”, orienta Fernando Moreira.
Checklist mínimo para bares, restaurantes, casas noturnas e eventos
1) Compra apenas de distribuidores regulares com documentação fiscal;
2) Conferência de lacres, tampas, rótulos e lotes;
3) Segregação de garrafas abertas e registro de quem as manuseia;
4) Rastreio de lotes por data/evento;
5) Treinamento de equipe para identificar sinais de fraude;
6) Plano de resposta com bloqueio imediato de estoque suspeito, comunicação à Vigilância Sanitária e aos consumidores
Dicas para consumidores
1) Compre de pontos formais;
2) Desconfie de ‘promoções milagrosas’;
3) Observe rótulo, ortografia, lote, lacre e integridade da tampa;
4) Recuse garrafas sem procedência;
5) Prefira doses servidas à vista com garrafa exibida;
6) Guarde a nota fiscal, podendo ser uma foto, para uma eventual prova futura
Com Assessorias