Nas últimas semanas, casos recentes de intoxicação por bebidas adulteradas com metanol foram confirmados em São Paulo e Pernambuco, inclusive com mortes e relatos de cegueira aguda. A situação não é novidade no Brasil. Em 1999, foram registradas 35 mortes por cachaça adulterada na Bahia. Há ainda o caso da cerveja Belorizontina, em Minas Gerais, em 2020, que deixou dez mortos e quase 20 pessoas com sequelas graves.

A gravidade do cenário se soma a um problema global: segundo estimativas internacionais, mais de 420 mil pessoas morrem todos os anos por intoxicações químicas, muitas delas ligadas a bebidas ilícitas. Para especialistas, o número real é ainda mais alarmante.

O perigo é que a população não tem como identificar a diferença entre etanol e metanol em uma bebida. É uma roleta-russa química, onde cada gole pode custar a vida”, alerta Paula Eloize, especialista em segurança de alimentos há mais de dez anos.

Os casos recentes em São Paulo acenderam a preocupação sobre a segurança dos consumidores e a responsabilidade dos estabelecimentos. Atualmente, a cadeia clandestina envolve fábricas que misturam produtos em tonéis muitas vezes contaminados por metanol e operadores que compram garrafas em lixões para dar legitimidade à bebida.

Há alguma garantia quando falamos de empresas grandes. Já as adegas podem comprar de fornecedores variados. As bebidas destiladas muitas vezes não têm distribuidores específicos; elas são distribuídas por intermediários, e aí todo mundo acaba vendendo de tudo. E é esse o risco”, disse à CartaCapital o consultor de marketing Adalberto Viviani, com mais de 20 anos de experiência no mercado de bebidas.

Raiz do problema: crime e falta de rastreabilidade

Entidades que acompanham o setor apontam que, somente em 2025, mais de 160 mil produtos falsificados foram apreendidos no país, além de insumos e equipamentos destinados à produção clandestina.

Investigações revelam ainda que lotes de metanol importados ilegalmente para fraudar combustíveis teriam migrado para destilarias clandestinas e falsificadores de bebidas, em operações ligadas a facções criminosas.

Estamos falando de um produto químico altamente tóxico que circula no submundo do crime. Ele sai de esquemas de adulteração de combustíveis e acaba no copo da população. É segurança pública, não só saúde”, denuncia Paula.

A especialista explica ainda que o metanol usado em bebidas não tem origem no setor legal de produção.

Estamos falando de sobras químicas e de combustíveis apreendidos em operações contra o crime organizado. Esse material volta clandestinamente ao mercado e acaba nas garrafas. Não é somente fraude comercial, é homicídio químico planejado”, revela

A solução, segundo a especialista, está em adotar mecanismos robustos de rastreabilidade.

Enquanto uma garrafa de bebida não tiver o mesmo controle de origem que um medicamento, vamos continuar vulneráveis. Não basta apreender cargas; é preciso rastrear cada lote, da fábrica ao consumidor”, defende.

Segundo Paula Eloize, o Brasil precisa tratar a presença de metanol em bebidas como questão de saúde pública e segurança nacional. “A cada caso, não estamos falando apenas de estatística, mas de vidas roubadas por uma cadeia criminosa invisível”, conclui.

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De bares a fabricantes, toda a cadeia pode responder

Especialistas explicam ainda os direitos dos consumidores

Para o advogado especialista em Direito do Consumidor, Stefano Ribeiro Ferri, a lei é clara nesses casos: todos os envolvidos na cadeia de fornecimento podem ser responsabilizados.

Se uma bebida adulterada com metanol causa intoxicação, todos que participaram da cadeia de fornecimento podem ser responsabilizados: o fabricante, o distribuidor, o comerciante e até o bar que vendeu o produto. Isso porque o Código de Defesa do Consumidor prevê responsabilidade solidária. Além disso, há consequências criminais para quem produz ou comercializa bebida adulterada”.

O advogado destaca ainda que a legislação prevê que o consumidor tem direito à saúde e à segurança. Por isso, em caso de intoxicação, é essencial reunir documentos que comprovem a compra e o consumo.

É essencial guardar a nota fiscal, o frasco ou garrafa, o rótulo e, se possível, realizar exames médicos que comprovem a intoxicação. Esses elementos fortalecem a ação judicial e o inquérito criminal”, orienta.

Além das indenizações às vítimas, quem comercializa ou produz bebidas adulteradas pode enfrentar processo penal. “Quem comercializa produto adulterado pode ter que indenizar as vítimas e ainda enfrentar processo penal, que prevê pena de prisão para esse tipo de crime”, explica.

Como se proteger

A recomendação é redobrar os cuidados ao comprar bebidas. Desconfie de preços muito abaixo do mercado, por exemplo, alerta o especialista. “Evite comprar bebidas de procedência duvidosa, especialmente em vendas on-line ou informais, confira lote, selo de autenticidade e siga os alertas de órgãos como Anvisa, Procon e Vigilância Sanitária. Nesse momento, prudência é fundamental”.

Ferri lembra ainda que quem produz ou vende bebida adulterada responde tanto civil quanto criminalmente nesses casos. Pode ter que indenizar as vítimas e ainda enfrentar processo penal, que prevê pena de prisão para esse tipo de crime.

Os estabelecimentos precisam comprar apenas de fornecedores regularizados, checar a documentação das bebidas, recusar produtos com rótulo suspeito e guardar registros de compra. Caso haja dúvidas, é dever comunicar as autoridades para evitar tragédias maiores”, finaliza.

Embora a presença de metanol possa, em raros casos, principalmente relacionada à produção irregular, derivar de falhas no processo de destilação, os incidentes recentes apontam para um cenário de adulteração criminosa, visando o lucro ilícito em detrimento da vida.

Um grave problema de saúde pública

Para o advogado Fernando Moreira, doutor em engenharia de produção com foco em compliance, que é também criador de conteúdo digital sobre bebidas, a tragédia causada pelo metanol vai além da esfera do Direito do Consumidor, sendo um caso grave de saúde pública e crime.

A adulteração de bebidas alcoólicas com substâncias tóxicas como o metanol não é apenas uma infração administrativa; é um crime contra a saúde pública, tipificado pelo Código Penal. A perspectiva do compliance nos ensina que a responsabilização deve ser ampla.

No Brasil, a conduta encontra enquadramento, por exemplo, no art. 272 do Código Penal (adulteração/falsificação de produto alimentício) e pode gerar responsabilização por homicídio (inclusive na modalidade de dolo eventual), além de responsabilidade civil objetiva na esfera do consumo (arts. 12 a 14 do CDC). É fundamental que as autoridades atuem com rigor na responsabilização, investigando toda a cadeia para punir de forma exemplar não só quem envasa, mas quem distribui, quem comercializa e, principalmente, quem se omite e lucra com a vida das pessoas”, afirma Moreira.

Governança e responsabilidade

Segundo Moreira, a questão central para evitar que esses casos se repitam está na rastreabilidade baseada em risco e no aumento da fiscalização integrada. Para ele, o Estado e toda a cadeia de produção, distribuição e venda devem ser os principais garantidores da saúde pública. Segundo ele, o problema do metanol está diretamente ligado à falha na cadeia de custódia, onde a falta de controle permite que produtos adulterados se misturem aos legítimos.

O sistema jurídico precisa garantir a cadeia de custódia do produto, ou seja, comprovar a origem e o trajeto da bebida desde a produção. Isso exige que as empresas implementem programas de due diligence de fornecedores e distribuidores, assegurando que seus parceiros comerciais também sigam padrões éticos e legais”.

O especialista alerta que a falta de inspeção sanitária e o comércio informal facilitam que produtos piratas e adulterados cheguem ao copo do consumidor. É preciso investir em controle de qualidade, em tecnologia de rastreabilidade e na disseminação de uma cultura de conformidade que penalize severamente a negligência e a corrupção”, orienta Fernando Moreira.

Metanol do crime organizado pode ter relação com intoxicações em SP

Informação é da Associação Brasileira de Combate à Falsificação

Em entrevista à TV Brasil nesta segunda-feira (29), o diretor de comunicação da Associação Brasileira de Combate à Falsificação (ABCF) Rodolpho Heck Ramazzinio disse que o metanol importado pelo crime organizado para adulterar combustíveis pode ter sido redirecionado para distribuidoras clandestinas de bebidas, o que explicaria os casos recentes de intoxicação no estado de São Paulo.

Segundo Ramazzinio, este redirecionamento ocorreu principalmente após a Operação Carbono Oculto, da Receita Federal e órgãos parceiros, que desmantelou, no final de agosto, um esquema de fraudes, lavagem de dinheiro e falsificação no setor de combustíveis.

Você tem as empresas interditadas, a transportadora dos caras, do PCC, fica parada [em razão da operação Carbono]. Os tanques, que não estavam dentro dos pátios dessas empresas começam a ser desovados em outras empresas. Eles começam a vender isso para empresa química, começam a vender isso também para destilarias clandestinas. Os caras fazem isso para ganhar volume, ganhar a escala, eles não estão nem aí com a saúde de ninguém”, disse.

De acordo com o Anuário da Falsificação da ABCF 2025, o setor de bebidas foi o mais prejudicado pelo mercado ilegal em 2024, com perdas estimadas em R$ 88 bilhões: R$ 29 bilhões em sonegação de tributos e R$ 59 bilhões de perdas de faturamento das indústrias legalizadas.

A operação Carbono Oculto atingiu cerca de mil postos de combustíveis vinculados ao grupo criminoso, que movimentaram R$ 52 bilhões entre 2020 e 2024. Segundo a Receita Federal, o metanol importado supostamente para outros fins era desviado para uso na fabricação de gasolina adulterada.

De acordo com o governo do estado de São Paulo, desde junho deste ano, foram confirmados seis casos de intoxicação por metanol com suspeita de consumo de bebida adulterada. Atualmente, dez casos estão sob investigação, dos quais três resultaram em óbito – um homem de 58 anos em São Bernardo do Campo, um homem de 54 anos na capital paulista e o terceiro, de 45 anos, ainda sem residência identificada.

Recomendação

O Centro de Vigilância Sanitária (CVS) estadual reforça que o consumo de bebidas alcoólicas de origem clandestina ou sem procedência confiável representa risco à saúde, já que podem conter substâncias tóxicas.

A recomendação do CVS é que bares, empresas e demais estabelecimentos redobrem a atenção quanto à procedência dos produtos oferecidos, e que a população adquira apenas bebidas de fabricantes legalizados, com rótulo, lacre de segurança e selo fiscal, evitando opções de origem duvidosa e prevenindo casos de intoxicação que podem colocar a vida em risco”.

Intoxicação por metanol: como identificar e agir

O metanol é altamente tóxico. Entre 12h e 24h após o consumo, podem surgir dor de cabeça intensa, náusea, vômito, dor abdominal, confusão mental e visão turva repentina. Em concentrações mais altas, o resultado pode ser cegueira irreversível, falência de órgãos e morte.

Sintomas mais comuns (12h a 24h após a ingestão):

  • Dor de cabeça intensa
  • Náusea, vômito e dor abdominal
  • Confusão mental
  • Visão turva repentina (pode evoluir para cegueira irreversível)
  • Convulsões em casos graves

O que fazer:

  • Procure atendimento médico imediato em pronto-socorro;
  • Informe o histórico de ingestão de bebida suspeita;
  • O tratamento pode incluir antídotos específicos (etanol venoso), bicarbonato para corrigir a acidez do sangue, vitaminas (ácido fólico/folínico) e, em casos críticos, hemodiálise para remover o veneno.

Prevenção:

  • Compre bebidas apenas em pontos de venda confiáveis;
  • Evite produtos de procedência duvidosa ou preços muito abaixo do mercado;
  • Fique atento a embalagens alteradas ou sem rótulo.

Dicas para consumidores

1) Compre de pontos formais;

2) Desconfie de ‘promoções milagrosas’;

3) Observe rótulo, ortografia, lote, lacre e integridade da tampa;

4) Recuse garrafas sem procedência;

5) Prefira doses servidas à vista com garrafa exibida;

6) Guarde a nota fiscal, podendo ser uma foto, para uma eventual prova futura

Checklist mínimo para bares, restaurantes, casas noturnas e eventos

1) Compra apenas de distribuidores regulares com documentação fiscal;

2) Conferência de lacres, tampas, rótulos e lotes;

3) Segregação de garrafas abertas e registro de quem as manuseia;

4) Rastreio de lotes por data/evento;

5) Treinamento de equipe para identificar sinais de fraude;

6) Plano de resposta com bloqueio imediato de estoque suspeito, comunicação à Vigilância Sanitária e aos consumidores

Com Assessorias

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