Como mostramos aqui, os dados sobre abuso infantil no Brasil são estarrecedores. A notificação é obrigatória para todos os profissionais de saúde, seja da rede pública ou privada, sempre que houver suspeita ou confirmação de violência. O cenário é agravado por dados históricos.

Entre 2015 e 2021, foram notificadas 202.948 ocorrências de violência sexual contra menores na rede de saúde. Em 2021, o país atingiu o pico de 35.196 notificações, de acordo com o Ministério da Saúde.

Um recorte da situação na cidade de São Paulo ajuda a reforçar a urgência do tema. Dados da Equipe Especializada de Violência (EEV) do Campo Limpo, unidade de saúde gerenciada pelo Cejam – Centro de Estudos e Pesquisas “Dr. João Amorim” em parceria com a Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo (SMS-SP), revelam que, entre 2022 e abril de 2025, mais de 4.780 vítimas foram atendidas (entre criançasadolescentes e familiares).

Somente entre novembro e dezembro de 2022, em um curto intervalo de tempo, foram registrados 306 atendimentos. Já entre janeiro e abril de 2025, esse número chegou a 539 casos. O serviço abrange as regiões do Campo Limpo, Capão Redondo e Vila Andrade. Somente na unidade do Campo Limpo são atendidas em média 80 crianças/adolescentes e seus familiares.

Segundo Maximiliano Costa, gerente da EEV no território, os registros de violência contra crianças e adolescentes vêm crescendo nos últimos anos, assim como as notificações inseridas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan).

Ainda enfrentamos um cenário de subnotificações, o que dificulta a articulação do cuidado e a adoção de ações clínicas eficazes no enfrentamento à violência”, ressalta.

As vítimas chegam à Equipe Especializada de Violência (EEV) por meio de encaminhamento feito pelos Núcleos de Prevenção à Violência (NPV) das Unidades Básicas de Saúde (UBS) de referência da região onde a família reside. O fluxo se inicia com a identificação da situação de violência pelo NPV, que realiza a notificação e aciona os protocolos previstos pelo serviço.

Costa explica que, na maioria das situações, crianças e adolescentes chegam ao serviço acompanhados por seus pais ou responsáveis, uma vez que o atendimento é voltado prioritariamente ao cuidado desse público, seja na condição de vítima direta ou testemunha de violência. Os casos de violência sexual recebem atenção prioritária no acolhimento.

As situações são discutidas em reuniões de matriciamento com a EEV. Quando os critérios de elegibilidade são atendidos, é agendado um primeiro encontro com a família para avaliação inicial e definição do plano de cuidado especializado”, afirma.

Nesse primeiro atendimento, os casos são analisados em reunião de equipe multiprofissional, com participação das áreas de Psicologia, Serviço Social e Terapia Ocupacional, de acordo com as necessidades identificadas.

O foco permanece centrado no cuidado integral de crianças e adolescentes expostos a situações de violência. Além dos atendimentos na unidade, o trabalho inclui visitas domiciliares e articulações intersetoriais com as redes de saúde, assistência social, justiça e educação, garantindo uma abordagem integrada e contínua”, ressalta Rayssa Béder, Terapeuta Ocupacional da EVV Campo Limpo.

Nos casos mais graves, as vítimas são encaminhadas aos centros especializados de atendimento. As unidades do CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) e os Núcleos de Prevenção à Violência das Unidades Básicas de Saúde gerenciadas pelo Cejam contam com equipes multidisciplinares preparadas para prestar atendimento psicológico e social seguindo os protocolos específicos do SUS (Sistema Único de Saúde), garantindo um acolhimento integral e humanizado da vítima, com escuta qualificada, atendimento psicológico e, quando necessário, encaminhamento para serviços médicos e jurídicos especializados.

Consequências emocionais são devastadoras

As consequências emocionais desse tipo de violência são devastadoras e de longo prazo. Crianças abusadas sexualmente enfrentam traumas psicológicos como depressão, ansiedade e transtornos de estresse pós-traumático.

Além disso, muitas desenvolvem dificuldades de vínculo social, baixa autoestima, e estão mais propensas a evasão escolar, doenças sexualmente transmissíveis e uso de substâncias. Tudo isso impacta diretamente no desenvolvimento, na saúde e na vida profissional dessas vítimas ao longo dos anos.

Os impactos do abuso no desenvolvimento emocional e cognitivo geram traumas que podem desencadear diversos transtornos psiquiátricos, como ansiedade, depressão, estresse pós-traumático, ou qualquer outro tipo que constar no código genético da criança, tornando-a predisposta.

Cada caso de abuso silenciado é uma infância roubada. A violência sexual deixa marcas invisíveis que acompanham a vítima por toda a vida. Precisamos transformar indignação em ação concreta e permanente”, afirma o terapeuta Mario Lopes, especialista em saúde mental infantil.

Traumas profundos, diz psiquiatra

Segundo a psiquiatra Juliana Mokayad do CAPS Infantojuveni Il M’Boi Mirim, o abuso sexual, a exploração e qualquer tipo de violência geram traumas profundos.

Hoje há muitos estudos sobre o impacto avassalador para o aparelho psíquico e o sistema neurológico que, inclusive, estão sendo estudados na neurobiologia, já que na exposição ao trauma o organismo desencadeia uma série de respostas fisiológicas hormonais que levam a uma síndrome inflamatória, capaz até de levar a morte de neurônios. Com isso, o próprio desenvolvimento do cérebro pode ser alterado, principalmente em crianças mais novas”.

Já no aspecto psicodinâmico os traumas podem impactar também nas relações afetivas. “Crianças e adolescentes que passam por esses tipos de violência podem ter um grande prejuízo na capacidade de estabelecer um apego saudável com os adultos e outras pessoas da mesma idade. O que pode acarretar um padrão de insegurança nas relações e incapacidade de estabelecer vínculos saudáveis e duradouros”, complementa.

De acordo com a médica, mudanças de comportamento são um dos principais alertas. “Em situações de violência, as crianças costumam apresentar maior instabilidade emocional, ficando mais chorosas, irritáveis ou agressivas. Algumas podem desenvolver comportamentos erotizados ou utilizar discursos com conteúdo sexual inadequado para a sua faixa etária. É comum também que evitem determinados locais ou pessoas que antes frequentavam ou conviviam normalmente, o que pode indicar alguma relação com episódios de abuso.”

Sinais que falam pelo corpo

O impacto do abuso sexual na infância pode acompanhar a vítima por toda a vida. Ansiedade, depressão, distúrbios alimentares, transtornos de vínculo e dificuldades na vida afetiva são algumas das consequências possíveis. “O abuso invade precocemente o corpo e o psiquismo da criança, desorganizando sua capacidade de simbolizar o mundo”, explica a psicóloga e psicanalista Silvia Oliveira.

Embora muitas vítimas não saibam nomear o que aconteceu, o corpo e o comportamento frequentemente denunciam o abuso. “Psicologicamente, o silêncio reforça o sentimento de culpa e vergonha na criança. É no momento em que o trauma encontra lugar na linguagem que ele começa a ser elaborado”, afirma.

Para ela, falar sobre o tema com responsabilidade é mais do que uma ação preventiva, é um gesto de reparação social. Segundo Silvia, alterações bruscas de humor, regressões (como voltar a urinar na cama), medos novos e sem explicação, sexualização precoce ou até queixas físicas recorrentes, como dor de cabeça ou de barriga sem causa aparente, devem acender o alerta em pais, cuidadores e educadores.

“Não se trata de fazer um diagnóstico precipitado, mas de escutar com atenção e acolher com cuidado. Nenhum sintoma isolado comprova o abuso, mas todos merecem investigação”, diz.

Como dialogar com crianças e adolescentes para prevenir os abusos

A psiquiatra Juliana Mokayad do CAPS Infantojuveni Il M’Boi Mirim,  alerta que a internet e as redes sociais podem ser grandes aliadas na divulgação e prevenção da violência. Porém, sabemos também que pode ser um veículo para a exposição da criança e do adolescente.

Tanto a riscos para elas mesmas, que podem ficar mais vulneráveis aos abusadores, por meio de conversas nas redes sociais, assim como por acessar conteúdos de violência e praticar com outros colegas. O uso da internet e das redes sociais precisa ser regulamentado e acompanhado pelos pais. Crianças e adolescentes não devem navegar sem supervisão”.

Segundo Mokayad, a orientação sobre abuso sexual precisa ser adequada à capacidade de compreensão de cada faixa etária: “Toda informação precisa ser transmitida respeitando o que aquela criança é capaz de entender. Não adianta dar detalhes excessivos ou informações complexas para uma criança pequena que ainda não tem estrutura psicológica para absorver tudo.

Para os menores, é melhor focar em orientações mais gerais, como não se aproximar de estranhos e não permitir que ninguém toque em seu corpo. Conforme crescem e amadurecem, podemos aprofundar o diálogo, oferecendo mais detalhes. A partir daí podemos ser mais específicos em relação às advertências quanto a atitudes suspeitas dos abusadores”.

Para fortalecer a rede de proteção, Juliana ressalta a necessidade de um ambiente familiar aberto ao diálogo: “O maior fator de proteção para as crianças e adolescentes é contar com um ambiente receptivo e acolhedor em casa, em que o diálogo é estimulado e realizado continuamente. Os pais ou cuidadores precisam ter uma comunicação clara, não violenta, acolhedora e receptiva”.

E para além do ambiente familiar, as campanhas de conscientização também são fundamentais para alertar a sociedade sobre a realidade dos abusos. “É necessário orientar sobre como agir diante de suspeitas e, assim, inibir agressores. Quando a população está mais atenta, as chances de denúncias e penalizações aumentam. A divulgação de estatísticas também contribui para a criação de leis mais específicas, fortalecendo a proteção às vítimas”, afirma a psiquiatra.

 

Romper o silêncio é o primeiro passo para proteger as crianças
Campanha nacional chama atenção para o abuso sexual infantil e reforça a importância da escuta e da prevenção

O mês de maio traz à tona um dos temas mais delicados e urgentes da infância: o abuso sexual de crianças e adolescentes. A campanha Maio Laranja, criada para conscientizar e mobilizar a sociedade sobre esse tipo de violência, propõe um desafio que vai muito além da informação: o de romper o silêncio que perpetua o trauma e encobre o agressor.

Para o terapeuta Mario Lopes, no entanto, apenas o Maio Laranja não é suficiente. “Os números apontam que o enfrentamento à violência sexual infanto-juvenil não pode ser limitado a somente uma campanha de 30 dias. É essencial o engajamento contínuo de famílias, escolas, empresas, poder público e imprensa para que o silêncio seja quebrado”, completa o terapeuta.

Como conversar com as crianças

Falar com crianças sobre o próprio corpo e os limites do outro pode — e deve — ser feito desde cedo, de maneira lúdica e respeitosa. Silvia defende o uso de livros, histórias e atividades educativas que ensinem, de forma clara e sem tabus, que a criança tem direito de dizer “não” e que existem toques que são inadequados, mesmo quando feitos por pessoas próximas.

A educação sexual preventiva não tem relação com erotização. Trata-se de dar à criança instrumentos para se proteger. A criação de um ambiente simbólico de confiança é essencial para que ela se sinta autorizada a falar quando algo está errado.”

A terapia, nesse contexto, é um espaço de reconstrução. É ali que a dor pode se transformar em palavra, e a criança pode resgatar sua narrativa e potência de existir. “A escuta especializada é fundamental para que o trauma seja elaborado e não se perpetue em silêncio”, diz.

Todos são responsáveis

A proteção da criança não pode ser delegada apenas à família ou à escola. É uma responsabilidade coletiva que exige redes de apoio, escuta qualificada e coragem institucional. Silvia alerta para os pactos inconscientes de silêncio, especialmente quando o agressor é alguém próximo, como um familiar.

“Romper com o silêncio exige coragem emocional e preparo técnico. É preciso investir em campanhas, formar educadores e estabelecer protocolos de escuta ativa. Só assim é possível proteger verdadeiramente nossas crianças.”

No mês de maio — e em todos os outros — a palavra de ordem é uma só: romper o silêncio.

Com Assessorias 

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