Lima Barreto, escritor e jornalista, morreu aos 41 anos de colapso cardíaco (Reprodução de internet)
Em 2021, comemoram-se os 140 anos de nascimento do grande escritor carioca Afonso Henriques de Lima Barreto. Muito já se falou sobre sua vida e sua obra, até hoje reverenciadas por jornalistas, intelectuais, estudiosos e amantes da Literatura Brasileira. Entretanto, pouco se conhece – e se comenta – sobre a sua convivência trágica com o alcoolismo e os transtornos mentais, dois graves problemas de saúde pública que atormentam milhões de brasileiros e ainda hoje são cercados de muito tabu. E é sobre essa história que vamos falar no ‘Ler Faz Bem’ desta semana.

Escritor dos melhores e também jornalista, Lima Barreto veio ao mundo em 1881. Era uma sexta-feira 13 do mês de maio. Sete anos depois, em 13 de maio de 1888, abolia-se a escravatura. Filho de uma família humilde, descendente de escravos, ele conviveu com dois sistemas políticos: o monárquico e o republicano. Passou por 13 presidentes, alguns estados de sítio, poucas eleições (a bico de pena), pela política dos governadores, poderio dos coronéis e suas oligarquias. Viu revoltas e revoluções: Armada, Vacina, Chibata, Canudos, entre outras.

O escritor sobreviveu ao positivismo, um dos braços da república dos militares do sabre e da espada, a estados de sítio e, mal, à tese cientificista em vigor de superioridade da raça branca. Sobreviveu também a surtos de varíola, febre amarela, tuberculose, cólera e gripe espanhola, que assolaram o Rio de Janeiro. Esta última matou o rei da Espanha e teria matado o presidente Rodrigues Alves, vitimando 13 mil pessoas só na capital republicana.

Mas Lima não sobreviveu a surtos de loucura, causados pelo alcoolismo, que lhe combaliu a saúde. O escritor morreu aos 41 anos, em 1 de novembro de 1922, de colapso cardíaco. O horror a ficar louco e à loucura, contudo, seguiram-no por toda a vida, causando-lhe medo e pavor. Sobretudo porque os loucos, os alcóolatras (ainda mais se negros e mulatos fossem) eram tratados sem qualquer comiseração, quando eram internados. Negro e vencido pelo alcoolismo, Lima Barreto foi parar duas vezes no hospício.

A convivência com a loucura do pai

Órfão de mãe aos 6 anos, Lima Barreto teve que assumir o sustento da família aos 21, em razão da loucura do pai, João Henriques. Abandona a Escola Politécnica, onde cursava Engenharia. Sem o salário do pai, cuja aposentadoria demora a sair, a família passa necessidades. Não tem a quem recorrer. São oito pessoas para sustentar. Fica sabendo, então, de uma prova para admissão ao cargo de Ministério da Guerra. Decide fazer. É aprovado em segundo lugar e chamado.

Tal qual seu pai, Afonso Henriques tinha medo. Medo de não conseguir sustentar a família e a si próprio. Vivia de empréstimos para fechar o mês. Dava aulas particulares. Seu medo maior era seu pai morrer de repente e ele não ter dinheiro para enterrá-lo. Ele mesmo nos conta a respeito, em seu diário, escrito em uma de suas internações no hospício:

“Muitas causas influíram para que eu viesse a beber; mas, de todas elas, foi um sentimento ou pressentimento, um medo, sem razão nem explicação, de uma catástrofe doméstica sempre presente. Adivinhava a morte de meu pai e eu sem dinheiro para enterrá-lo. Previa moléstias com tratamentos caros e eu sem recursos. Amedrontava-me com uma demissão. (…) eu me aborrecia. Minha casa tão triste ela era. Meu pai delirava. (…) Estava cheio de dívidas. Bebia desbragadamente, a ponto de ficar completamente bêbado às nove ou dez horas da noite”.

A trajetória de um louco e as internações no Pinel

Lima Barreto passou por duas internações psiquiátricas no antigo hospício, hoje Instituto Phillipe Pinel, no Rio (Reprodução de Internet)

Em seu conto, Como o homem chegou, escrito por ocasião de sua primeira internação num hospício, em 1914, Lima Barreto usa sua tábua de salvação, a literatura, para narrar toda a trajetória de um louco, até chegar enjaulado num carro-forte ao Hospital Nacional dos Alienados (mais tarde rebatizado de Instituto Phillipe Pinel), em Botafogo, no Rio de Janeiro.

Preso pela polícia, jogado na caçamba de uma viatura, Afonso Henriques de Lima Barreto acordou do delírio do porre nu e fétido, internado com o aval da própria família. “Num carro-forte. Pior do que masmorra ambulante, do que solitária, pois nessas prisões ainda se sente a algidez da pedra, alguma meiguice, meiguice de sepultura, mas no tal carro feroz, é tudo ferro, ferro na cabeça, ferro nos pés, ferro para todo lado”.

Na segunda vez, em 1919, Lima Barreto é laçado e largado no hospício em plena noite de Natal. Passara o dia a vagar, bêbado, em delírios, pelas proximidades de sua casa, a Casa do Louco, assim alcunhada pela vizinhança. Tal qual seu pai, tal qual um Quixote, Lima delirava com seus moinhos de vento.

Lima escrevia para enfrentar seu medo de enlouquecer

Afonso Henriques de Lima Barreto escreve uma escrita de si, uma literatura de si, em seu diário e em seu conto. Escreve para enfrentar seu medo de enlouquecer:  “(…) Essa questão do álcool, que me atinge, pois bebi muito e, como toda gente, tenho que atribuir as minhas crises de loucura (…).

Este horror de enlouquecer que tinha nosso escritor tinha razão de ser, como explica a historiadora Magali Engel, em Delírios da Razão – Médicos, Loucos e Hospícios (Rio de Janeiro, 1830-1930).

 “Ao lado da prostituta, do operário, do prisioneiro, entre outros, o louco seria um dos alvos privilegiados do projeto político de normalização social do espaço urbano defendido pela medicina social (…) no sentido de avaliar o processo de construção da loucura como doença mental, com a implantação de novos mecanismos de controle social na sociedade brasileira do século XIX e início do XX”.

Ainda segundo Magali, “a psiquiatria brasileira a partir dos anos 20 do século XX, foi marcada pela difusão da perspectiva preventiva da higiene mental articulada em torno dos princípios de propostas eugênicas”.

Tratamento psiquiátrico para negros

Tal qual seu pai, Lima Barreto era mulato e descendia de escravos. E, agora, será que estava louco? A tal respeito, a doutora em Literatura Comparada Luciana Hidalgo comenta em seu livro Literatura de Urgência – Lima Barreto no domínio da Loucura.

“Lima Barreto enfrentou preconceitos ao dar entrada no Hospital Nacional dos Alienados, o primeiro hospício oficial do Brasil. Era um a-social típico, e seu quadro se agravava por um detalhe de ordem de raça: era descendente de negros, num período conturbado da psiquiatria no país, quando germinavam entre especialistas brasileiros as noções de eugenia importadas da intelectualidade européia do início do século XX”.

E com negros e mulatos, como se dava o tratamento psiquiátrico?  “Após a identificação, caso fossem mulatos, negros e/ou pobres, tinham maior probabilidade de cair no purgatório do hospício até o eventual resgate por parte de suas famílias”, conta Luciana.

Ela ainda destaca “estatísticas bárbaras” acumuladas pela Psiquiatria brasileira. Como um censo realizado em 1981 na Colônia Juliano Moreira (um dos últimos redutos do regime manicomial no Rio de Janeiro, localizado em Jacarepaguá, na zona oeste da cidade. O levantamento revelou que “22% da população de alienados, internados ali desde a década de 30, jamais haviam apresentado qualquer quadro psiquiátrico”.

A exclusão social que atinge os loucos

 

Se antes eram os leprosos, a exclusão social atinge os loucos, no pódium da História, como escreveu o filósofo francês Michel Foucault em sua obra a História da Loucura. Mas quem sabe um boa ducha fria não poderia curá-los da lepra mental?

A terapia era considerada uma técnica privilegiada, mas precisava ser violenta, para lavar bem, purificar bem e extirpar bem todas as impurezas que constituem a loucura. A prática médica, muito empregada nos hospícios, segundo seus defensores, serviria também para refrescar o espírito dos doidos, bem como suas fibras. Tudo isso, lemos, horrorizados, em Foucault. Mas Lima Barreto, contudo, não apreciava muito a indicação médica:

“Que cousa, meu Deus! Estava ali que nem um peru (…). Fui para a casa forte e ele me fez baldear a varanda, lavar o banheiro, onde me deu um banho de ducha de chicote. Todos estávamos nus, as portas abertas, e eu tive muito pudor. Eu me lembrei do banho de vapor de Dostoievski, na Casa dos Mortos. Quando baldeei, chorei, mas lembrei de Cervantes, do próprio Dostoievski, que pior deviam ter sofrido em Argel e na Sibéria”.

Não bastava tirá-los da vista da sociedade, por intermédio do confinamento no cemitério dos vivos. Era preciso curá-los da apatia, da inaptidão para o trabalho, do ócio de que nos fala Foucault, pela humilhação. Dobrar e desdobrar seus corpos, infectá-los com sarna, ministrar óleos que faziam surgir pústulas na cabeça, para curar-lhes a desrazão que possui suas almas.

Dietas, sangrias, jejuns… Imbuídos da certeza de estarem do lado da ciência, da verdade e do saber, alienistas experimentam as mais variadas maluquices nos doentes. Não por acaso, Lima Barreto tinha pavor de enlouquecer.

NOTA DA REDAÇÃO – Quer saber mais sobre Lima Barreto? Assista aqui a palestra da jornalista Cristina Nunes, no ‘Seminário Bastos Tigre’, organizado pela Comissão de Educação da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e apresentado pelo professor e escritor Ivan Proença.

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2 Comments
  • ROSE RUAS
    30 de agosto de 2021 at 00:06

    Excelente matéria. Não sabia nada da vida de Lima Barreto. Espero que sejam postadas histórias de outros escritores.
    Parabéns!!!

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  • Avatar Tania Malheiros
    Tania Malheiros
    30 de agosto de 2021 at 00:10

    Parabéns a grande jornalista Cristina Nunes por disponibilizar seu imenso conhecimento sobre Lima Barreto, um dos maiores escritores brasileiros. Obrigada Cristina Nunes por democratizar a literatura que constrói e edifica. Seu trabalho é maravilhoso. Parabéns!

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