A migração é uma prática ancestral enraizada desde a antiguidade e continua a moldar o tecido social e político global. Na esteira de um estudo conduzido em 2022 pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), revelou-se que aproximadamente 281 milhões de indivíduos foram classificados como migrantes internacionais, representando uma proporção significativa de 3,6% da população mundial.
Dia 25 de junho é comemorado o Dia Internacional do Imigrante, e para o Brasil, a imigração é um importantíssimo traço para a formação da sociedade brasileira. Apesar de ser um dos países que mais acolhem refugiados, como vimos aqui, nem sempre a recíproca é verdadeira. Imigrantes brasileiros têm sido hostilizados nos Estados Unidos, sob a nova gestão trumpista, que elegeu o combate aos imigrantes como plataforma de governo.
Em tempos de crise migratória global, discursos xenofóbicos e precarização do trabalho, fazer arte como imigrante é um ato de resistência, reinvenção e afirmação. Quatro artistas de diferentes origens que escolheram o Brasil para construir ou recomeçar suas carreiras musicais vivem esse “entre-lugar” todos os dias e falam sobre os desafios, as estratégias e as potências que atravessam suas jornadas.
Eles vieram do México, Índia, Peru e Luxemburgo. Têm trajetórias distintas, mas compartilham um ponto em comum: escolheram o Brasil como solo fértil para desenvolver suas carreiras artísticas. São histórias potentes de reconstrução, resistência e expressão artística.
Saúde mental e vulnerabilidade como força para músicos imigrantes
A trajetória de cada um desses artistas é marcada por recomeços — alguns planejados, outros atravessados por urgência ou imprevistos. As histórias desses quatro artistas revelam que a experiência migrante é feita de atravessamentos, mas também de encontros potentes.
Eles falam sobre saúde mental, pertencimento, identidade, exclusão e afetos — temas que atravessam suas vivências migratórias. Um tema recorrente nas falas dos quatro artistas imigrantes é a saúde mental — não só pelas dificuldades da migração, mas pela solidão e pressão do fazer artístico.
Diagnosticados com bipolaridade – um transtorno mental severo, ainda cercado de muito estigma e que leva muitas pessoas à exclusão – , Mateo, integrante da banda Francisco, el Hombre, que cresceu entre México, Brasil, Chile e EUA, e a cantora, compositora e DJ luxemburguesa Adriana Santhi revelam como transformam suas vivências em arte.
Só comecei a ‘pousar’ depois que me tratei. Minha arte é meu lugar de aterramento. É onde transformo dor em som.” “Recomeçar aqui foi bonito, mas também solitário no início. Só depois consegui, de fato, me sentir ancorada. E, mesmo me sentindo quase totalmente em casa, aqui ninguém me enxerga como brasileira”, diz Adriana.
Essa sensação de deslocamento constante também atravessa a história de Mateo. “Eu sempre sou o que não é daqui. Falo vários idiomas, mas nenhum me ‘firma’ num lugar. A única casa fixa é o corpo — e a arte.” Em seu disco ‘Neurodivergente’, Mateo aborda a luta contra a depressão, a adicção, e a necessidade de falar disso publicamente. “Mostrar vulnerabilidade é o que me fortalece”, diz o artista.
‘Minha arte é meu lugar de aterramento. É onde transformo dor em som’
Adriana Santhi por Angelo Pontes
Filha de pai brasileiro e mãe portuguesa e criada entre múltiplos idiomas e culturas na Bélgica, onde perdeu o pai quando tinha 3 anos, Adriana conta que decidiu vir ao Brasil após uma pausa forçada por problemas de saúde, depois de ser diagnosticada com bipolaridade há pouco mais de um ano. “Foi o impulso que faltava pra investir no meu sonho de infância: a música”, diz a cantora de 32 anos.
Adriana compartilha, de forma delicada e poética, as camadas emocionais de viver entre fronteiras — físicas e internas. Essa bagagem aparece de forma sutil e poética em músicas como Água & Sal, que abre com os versos: “Copo de água e remedinho / Todas as manhãs tomo essa dose de auxílio”. É um trecho delicado, mas direto, sobre saúde mental — uma vivência que a própria artista conhece bem.
Sou bipolar e só descobri isso há um ano e meio. Antes disso, enfrentei relações abusivas, dificuldades de autoestima e períodos emocionalmente difíceis. A música foi onde eu consegui me reencontrar e construir um lugar de amor-próprio”, conta Adriana.
Hoje, ela diz que busca viver com mais calma, autocuidado e presença — e sua arte reflete esse novo olhar. Apesar das dificuldades, no fim das contas, como diz Adriana: “Recomeçar é lindo, mas exige coragem. E a arte, aqui no Brasil, é o que me lembra todos os dias que vale a pena.”
Cantora aborda histórias de mulheres imigrantes
Adriana transforma em música sua história marcada por deslocamentos geográficos, vivências de saúde mental e sobrevivência à violência de gênero. Seu trabalho é uma fusão entre arte, cura e denúncia, e convida à reflexão sobre pertencimento, identidade e os silêncios que atravessam muitas histórias de mulheres migrantes.
Antes de mergulhar na música, Adriana trabalhou por quase uma década em organizações que defendem direitos de mulheres sobreviventes de violência e pessoas em situação de refúgio e vítimas de tráfico humano na Europa, atuando em projetos de acolhimento e reintegração.
Formada em Relações Internacionais, em Madrid, Adriana participou de movimentos feministas e causas migratórias, lidando diariamente com histórias duras — e acumulando repertório emocional que hoje ecoa em suas letras bilíngues, carregando nas canções a complexidade de uma vida transcontinental.
Agora radicada no Rio de Janeiro, a artista trabalha em seu primeiro EP e transforma sua trajetória de deslocamentos, ativismo e superação, em arte com camadas de R&B alternativo, neo soul e poesia bilíngue. “Eu sempre cantei para mim desde que me entendo por gente, e sempre quis cantar para os outros. Só que eu estava muito focada em ajudar as pessoas em vulnerabilidade”, diz Adriana.
Entre fronteiras: artistas imigrantes falam sobre recomeços, pertencimento e criação no Brasil
Eles não querem ser encaixados em caixinhas de “exotismo” nem limitar sua arte à etiqueta de “música de imigrante”. Desejam, sim, ser reconhecidos por sua singularidade, pela mistura que carregam — e por aquilo que constroem a partir disso.
Cheguei ao Brasil em 2010, mas só consegui me estabelecer em 2012. Vim por sobrevivência, mas permanecer foi escolha. Criar música me faz sentir vivo”, conta o peruano Renzo Perales, radicado em São Paulo.
Para além do fazer artístico, os desafios são estruturais: burocracias migratórias, ausência de redes, dificuldades econômicas, e, sobretudo, barreiras invisíveis de pertencimento. “A informalidade das relações no Brasil foi um baque no início”, relata Adriana.
Renzo acrescenta: “Me sinto parte de uma grande comunidade que mistura culturas, mas isso não me dá relevância nas curadorias. Quem nasce aqui tem mais acesso. Eu ainda tô no fim da fila.”
Mateo traz outro ponto sensível: “Cantar em espanhol no Brasil é um nicho menor. O mercado não valoriza tanto o que vem do resto da América Latina — apesar de sermos todos parte da mesma história.”
Recomeçar é verbo constante: quando a mistura vira potência
Apesar dos obstáculos, os quatro artistas falam com brilho nos olhos sobre o Brasil. “A cultura brasileira me ensinou a fazer um corpo dançar e uma carreira existir”, diz Mateo. “A percussão daqui expandiu minha mente.”
O indiano Anirudh, fundador do projeto Slippery Handfish, diz que foi a arte brasileira que reacendeu seu desejo de voltar a criar. Morando em Belo Horizonte, ele sente que “a sensibilidade da música brasileira é o que permite recomeços”.
Já Renzo, que mistura melodias peruanas com ritmos latinos e brasileiros, destaca: “A música aqui é sinônimo de afeto — isso é único.” Para Adriana, é a expressividade cotidiana que torna o Brasil um lugar fértil para a arte. “Aqui, a música não está restrita aos palcos — ela pulsa nas ruas, nos corpos. Isso me inspira profundamente. Eu não via isso na Europa.”
Estratégias de sobrevivência: ‘Façam amizades, as verdadeiras redes de apoio’
Diante das barreiras, cada artista desenvolve estratégias próprias de permanência. Uma delas é criar redes reais de afeto e trabalho. “Façam amizades. As verdadeiras são sua rede de apoio. As outras te colocam em movimento”, aconselha Renzo.
Outro ponto central é assumir sua identidade com autenticidade. “Ser imigrante é trazer um olhar novo. Não tenham medo de mostrar quem são. Existe espaço para mil sonoridades no Brasil, especialmente no underground”, completa Adriana.
Além disso, entender o funcionamento do ecossistema musical brasileiro — desde o registro de obras até a construção de um público local — tem sido fundamental para abrir caminhos. “Registrem tudo, se afiliem a uma sociedade de direitos autorais, não deixem que a estrutura engula sua história”, alerta Adriana.
Com Assessorias