O que na infância foi símbolo de vergonha, tornou-se marca registrada e siônimo de empoderamento para a jovem paulista Raíza Bernardo. Ela nasceu com fissura labiopalatina e há duas décadas faz tratamento para a condição congênita e suas complicações no Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC/Centrinho) da Universidade de São Paulo (USP).
“Passei minha vida toda recebendo aqueles olhares que dizem mais que mil palavras. Sofri bastante por não ter a aceitação dos meus colegas e demais crianças. Passei a esconder minhas cicatrizes da boca com maquiagem ainda adolescente”, conta.
Assim como Raiza, além de dificuldades para atividades simples da rotina, como falar, respirar e se alimentar, muitos pacientes sentem-se envergonhados, socialmente excluídos e discriminados. Por muitas vezes, o bullying e o preconceito afetam o acesso ao tratamento, o rendimento escolar de crianças, chegando a sua vida profissional.
A autoaceitação veio apenas mais tarde, quando Raiza entendeu que não havia nada de errado com ela. “Percebi então que a melhor arma contra o estigma da fissura é a informação acessível e de qualidade”, conta a jovem, que ficou famosa depois de posar para a revista Vogue Portugal em 2022.
Para Raíza, que hoje é maquiadora, modelo plus size e idealizadora do projeto Beleza Fissurada, o apoio familiar foi a base de tudo. A primeira cirurgia foi realizada aos oito meses de vida — ao todo, foram cinco procedimentos cirúrgicos realizados em paralelo com as consultas com ortodontistas, terapeutas e fonoaudiólogos.
“Hoje, com 26 anos, sigo em tratamento multidisciplinar e sei que não preciso de maquiagem para esconder quem eu sou. Meu objetivo profissional e de vida é fazer com que a causa seja conhecida, para que mais pessoas tenham acesso ao tratamento multidisciplinar e sejam acolhidas como eu fui. Quero ser a representatividade que tanto desejei ver ainda criança”, finaliza.
Fissura labiopalatina: o que é e como fazer o diagnóstico
A fissura labiopalatina é uma anomalia craniofacial que afeta um a cada 700 recém-nascidos e resulta do desenvolvimento incompleto dos lábios e/ou do palato (céu da boca) durante o período gestacional. Sem o tratamento adequado, pode dificultar atividades simples da rotina, como falar, respirar e se alimentar. Ela se dá por falhas na fusão dos processos de formação nasal e da maxila durante o período gestacional. As causas da fissura podem ser multifatoriais e incluir predisposição genética e exposições ambientais.
As fissuras afetam os aspectos estético, funcional e emocional dos indivíduos. Esteticamente, podem deformar as feições do paciente. Funcionalmente, acarretam dificuldades para sucção, deglutição, mastigação, respiração, fala e audição. Do ponto de vista emocional, as fissuras podem comprometer o ajustamento pessoal e social do indivíduo devido ao estigma.
Esse tipo de fissura é muito mais complexo do que apenas questões estéticas, pois pode interferir na alimentação e na fala, aumentando as chances de complicações como anemia, infecções, pneumonia e desnutrição. As fissuras também podem causar problemas dentários, além de infecções recorrentes de ouvido e perda auditiva. “A ausência do acompanhamento profissional adequado pode levar a sequelas irreversíveis, que afetam a deglutição, mastigação, respiração e fonação”, complementa a cirurgiã.
O exame clínico da mucosa bucal de recém-nascidos é de extrema importância. A fenda palatina submucosa, forma específica de fissura que é recoberta pela mucosa oral e nasal, por exemplo, é mais complexa de diagnosticar. No bebê o diagnóstico deve ser feito por exame físico, olhando-se sob a luz e realizando-se o toque no palato, mas muitas vezes este exame clínico inicial mais minucioso passa desapercebido e somente surge a suspeita quando a criança começa a falar e a voz se mostra “fanhosa”.
Como diagnosticar e tratar os casos de fissura labiopalatina
Para esses casos, é necessário seguimento com avaliação periódica da percepção auditiva, e eventualmente a realização de exame endoscópico,” explica Daniela Tanikawa, cirurgiã plástica e craniofacial, uma das maiores especialistas no assunto, que trabalha no Hospital Municipal Menino Jesus, entidade que conta com o apoio da Smile Train – maior organização do mundo dedicada à causa da fissura labiopalatina.
“ O diagnóstico precoce aliado ao tratamento multidisciplinar permite que a criança tenha um melhor desenvolvimento e qualidade de vida. Além da cirurgia corretiva, é necessário o acompanhamento integral odontológico e ortodôntico, nutricional, terapia da fala e suporte social e emocional”, explica Daniela Tanikawa, médica do Hospital Municipal Infantil Menino Jesus.
O tratamento multidisciplinar, quando iniciado precocemente, permite que a criança tenha um melhor desenvolvimento e qualidade de vida. A cirurgia de reparação é o primeiro passo, recomendada ainda nos primeiros meses de vida. Além do resultado estético imediato, o reparo cirúrgico pode melhorar a respiração, a audição e o desenvolvimento da fala e da linguagem. Para complementar o tratamento, também é necessário o acompanhamento com diversos profissionais, entre eles fonoaudiólogos, dentistas, ortodontistas, psicoterapeutas e nutricionistas.
Conheça os mitos e verdades sobre a fissura labiopalatina
Apesar da alta incidência de casos no mundo todo, a falta de informação acessível e de qualidade sobre fissura dificulta a conscientização e reforça o preconceito e estigma. Membro do Conselho Médico Consultivo da Smile Train Brasil,Daniela Tanikawa esclarece os principais mitos e verdades sobre a fissura labiopalatina:
A fissura labiopalatina pode ser diagnosticada durante a gravidez
Verdade. A identificação da fissura labial ou da labiopalatina (lábio+palato) pode ser feita ainda durante a gravidez por meio da ultrassonografia morfológica e/ou 3D no segundo trimestre de gestação. No caso da fenda palatina, o diagnóstico por ultrassonografia é possível, mas difícil de ser realizado; mais comumente é feito no exame clínico pós-nascimento.
Não é possível amamentar um bebê com fissura
Mito. Bebês com fissura de lábio podem ser alimentados como qualquer outro bebê e, normalmente, não apresentam dificuldades. Bebês com fissura de palato poderão ter mais dificuldades, mas com orientações corretas de um especialista, também podem receber leite materno, através do uso de mamadeiras.
A fissura é corrigida apenas com uma cirurgia
Mito. O tratamento da fissura labiopalatina é multidisciplinar e de longo prazo. O número de cirurgias depende do tipo de deformidade. Via de regra, será uma para correção da fenda labial unilateral, uma a três para a fenda labial bilateral, uma para palato, uma a duas para enxerto ósseo na gengiva. Outras podem ser necessárias no decorrer do seu desenvolvimento. Além disso, para auxiliar na qualidade de vida dos pacientes, é muito importante os cuidados de nutricionistas, dentistas, fonoaudiologia e psicólogos.
Crianças com fissura têm dificuldades de socialização
Verdade. A maioria das crianças com a condição não tratada vivem em situação de isolamento por questões de acesso e/ou vergonha, o que dificulta fazer amigos, ir à escola e, posteriormente, na colocação profissional.
Crianças com fissura não podem falar
Mito. Crianças nascidas com fissura labiopalatina podem falar. Crianças que não recebem o tratamento adequado apresentam com mais frequência dificuldade na fala (voz anasalada/fanha) e na audição. Através do tratamento cirúrgico realizado de maneira adequada e no tempo certo, 85% das crianças falam normalmente.
Crianças com fissura podem levar uma vida normal
Verdade. O tratamento multidisciplinar permite que as crianças tenham uma vida plena, produtiva e saudável.
Todas as cirurgias de fissura são iguais
Mito. A cirurgia de correção de fissura é tão individual quanto a criança e deve ser adaptada às necessidades de cada paciente. Enquanto algumas questões relacionadas à fenda podem ser corrigidas em uma única cirurgia, outras podem necessitar de mais intervenções cirúrgicas, programadas para coincidir com os marcos de desenvolvimento.
Mulheres fissuradas sofrem dupla carga de desigualdade sem tratamento
Além das pacientes, mães e profissionais da saúde que atuam no tratamento enfrentam desafios. Segundo dados do Índice Global de Desigualdade de Gênero publicado pelo Fórum Econômico Mundial em 2021, o Brasil tem a segunda pior desigualdade de gênero na América Latina — e não fez progressos significativos nos últimos anos. A questão é ainda mais preocupante para meninas e mulheres com fissura labiopalatina não tratadas, que enfrentam dificuldades sociais, físicas e psíquicas.
“Além das dificuldades em ouvir, falar, comer e até mesmo respirar, o estigma relacionado à condição prejudica a autoestima e o desenvolvimento social. O tratamento multidisciplinar é essencial e permite mais qualidade de vida”, explica Daniela Tanikawa, cirurgiã plástica craniofacial e membro do conselho médico consultivo da Smile Train, maior organização do mundo dedicada à causa da fissura labiopalatina.
A fissura ocorre quando certos elementos e estruturas do corpo não se fundem durante a gestação e acabam afetando a formação do lábio e/ou o céu da boca. O tratamento adequado é determinante para a recuperação dessas pacientes que estão predispostas a vivenciar situações à margem da sociedade.
Em um recorte de gênero, a desigualdade, discriminação e falta geral de oportunidades que as mulheres enfrentam quando comparadas aos homens, se tornam ainda maiores quando não recebem o tratamento multidisciplinar de que precisam, ficando suscetíveis a vivenciar episódios violentos como estigma, assédio e isolamento.
“Para uma questão complexa, existe um tratamento eficaz. Mas é necessário que as informações cheguem aos familiares e cuidadores, assim como saber que existe uma rede de apoio para as mães que ficam responsáveis pelos cuidados integrais de seus filhos fissurados”, reforça a especialista, que é uma das representantes de um contingente de mulheres à frente do setor de saúde no Brasil.
De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as mulheres representam 65% dos mais de seis milhões de profissionais da saúde dispostos nos setores público e privado no país, em todos os níveis de complexidade da assistência. São elas que também lideram as iniciativas e pesquisas voltadas para o tratamento da fissura labiopalatina.
Os desafios de gênero dessas profissionais consistem no reconhecimento do mercado de trabalho, bem como remuneração compatível a seus pares masculinos em cargos iguais. “Dar voz às mulheres, sejam elas pacientes, mães, cuidadoras e/ou profissionais da saúde é uma forma legítima de empoderamento. Estando saudáveis e plenas, com acesso à saúde e ao tratamento multidisciplinar de que necessitam, é possível lutar por um mundo melhor”, finaliza Daniela.
Mulheres são referência no tratamento da condição
Profissionais da saúde que lideram o tratamento de pessoas com fissura labiopalatina foram homenageadas pela Smile Train, maior organização do mundo dedicada à causa, dentro da campanha global em celebração ao Dia Internacional das Mulheres (IWD).
Com o tema “Abrace a equidade”, a ação digital tem como propósito promover a igualdade dos gêneros, além de honrar o impacto que o trabalho dessas profissionais tem na vida dos pacientes e seus familiares.
No Brasil, a iniciativa foi abraçada por grandes nomes que trabalham em prol da causa, como Daniela Tanikawa, médica do Núcleo de Medicina Avançada do Hospital Sírio-Libanês e do Hospital Municipal Infantil Menino Jesus, e Laryssa Araújo, fonoaudióloga, pesquisadora e presidente do Instituto Yaçuri da Amazônia, voltado para o tratamento de pacientes fissurados, provenientes de comunidades ribeirinhas e indígenas.
De acordo com o IBGE, as mulheres correspondem a 65% dos mais de seis milhões de profissionais da saúde e se destacam em campos tradicionalmente dominados por homens, como cirurgia, anestesia e pesquisa.
Com Assessorias
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