Em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a Covid-19 como uma pandemia global. No dia 12 de março, há exatos cinco anos da primeira morte por covid-19 no Brasil, ocorrida em São Paulo, foi lançado o Acervo da Pandemia, um repositório digital de documentos que expõem o negacionismo e a política da morte no país durante a crise sanitária.

O novo espaço digital surge para documentar a gestão da pandemia no país. Lançado pelo Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência (SoU_Ciência), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o “Acervo da Pandemia” reúne vídeos, áudios, documentos oficiais e reportagens que registram decisões políticas, estratégias sanitárias e o impacto da pandemia na população.

Com 140 registros históricos já disponíveis e outros 100 em análise, a plataforma, inédita em sua abrangência e curadoria, é considerada pelo SoU_Ciência um marco na preservação da memória coletiva e um esforço para compreender os erros e acertos da resposta brasileira à crise sanitária. Além disso, o Acervo destaca o papel do governo Bolsonaro na condução da pandemia, apontando a influência do negacionismo e da desinformação nas decisões que afetaram milhões de vidas.

O Acervo da Pandemia não é apenas um repositório de documentos. Ele é um testemunho do que ocorreu no Brasil durante um dos períodos mais críticos da nossa história recente. Seu propósito é servir como fonte para pesquisadores, jornalistas, formuladores de políticas públicas e para qualquer cidadão que queira entender os erros e acertos na gestão da pandemia”, explica a professora Soraya Smaili, coordenadora do SoU_Ciência e ex-reitora da Unifesp.

A iniciativa se baseia no conceito de necropolítica, do historiador camaronês Achille Mbembe, que explica como determinados agentes do poder decidem quem vive e quem morre em uma sociedade.  “Alguns desses materiais contêm discursos autoincriminatórios e evidenciam as condutas que levaram à ampliação do número de mortes evitáveis no Brasil”, ressaltou a instituição.

O material do acervo foi reunido e analisado com base em critérios científicos. Ele comprova como um sistema [de poder formado por agentes públicos e privados] coordenado e articulado, que beneficiou interesses econômicos e políticos, colocou em risco a vida da população brasileira ao incentivar práticas anticiência, como o uso de medicamentos ineficazes, a negação da vacina e o boicote a medidas sanitárias”, divulgou o SoU_Ciência.

Negacionismo e consequências

O Acervo mostra que a pandemia da Covid-19 no Brasil foi marcada por uma série de decisões governamentais que contrariaram o consenso científico internacional. Desde o início da crise, o governo Bolsonaro adotou uma postura negacionista, que incluía a desqualificação de especialistas, o incentivo ao uso de medicamentos sem eficácia comprovada e o boicote a medidas sanitárias como o uso de máscaras e o distanciamento social.

No site estão reunidos documentos que registram essa postura, incluindo pronunciamentos oficiais, entrevistas e publicações em redes sociais do então presidente e de membros do governo. “A desinformação institucionalizada comprometeu gravemente a resposta brasileira à pandemia, atrasando a vacinação e contribuindo para um número de mortes que poderia ter sido evitado”, afirma Soraya Smaili.

Entre os registros disponíveis, o acervo destaca documentos que evidenciam o conceito de Necrossistema, um termo usado para descrever políticas e omissões que resultaram no agravamento da pandemia e na perda massiva de vidas. O material contém análises e reportagens que detalham como a inação governamental e as estratégias de desinformação ampliaram o impacto da crise sanitária.

São cerca de 250 registros documentais, incluindo textos, vídeos e áudios que comprovam a atuação do governo do então presidente Jair Bolsonaro e de seus aliados na disseminação de desinformação e no enfraquecimento das medidas de combate à covid-19. Disponível gratuitamenteo conjunto de registros traz discursos e condutas negacionistas, disseminados no período de 2020 a 2022, contrários à ciência e à defesa da vida.

Diante disso, alguns itens são identificados com um selo que alerta sobre a presença de desinformação ou de posicionamentos contrários às evidências científicas. Esses itens também receberam uma seção intitulada O Que Diz a Ciência, na qual são esclarecidas as informações falsas ou imprecisas, com base em evidências científicas.

Legado para pesquisa e reflexão

Soraya Smaili, do Centro Sou Ciência: Propósito do Acervo é servir como fonte para qualquer cidadão que queira entender os erros e acertos na gestão da pandemia (Foto: Divulgação)

A plataforma foi concebida como um espaço de memória, mas também como uma ferramenta para pesquisadores, jornalistas e gestores públicos interessados em compreender a resposta brasileira à pandemia. A coleta e curadoria dos documentos foram feitas por uma equipe multidisciplinar, garantindo rigor na checagem das informações. Informações enganosas são contrapostas por explicações de fontes científicas qualificadas.

A criação do Acervo da Pandemia representa um esforço fundamental para evitar que essa história seja apagada ou distorcida. O negacionismo teve consequências concretas e, para que erros semelhantes não se repitam, é essencial que a sociedade tenha acesso a esses registros”, destaca Smaili. “O objetivo é que este espaço estimule o debate público e contribua para a formulação de políticas mais eficazes em futuras crises sanitárias”, conclui Smaili.

Documentação organizada

O Acervo da Pandemia está estruturado em 17 temas, permitindo acesso direto aos documentos por área de interesse, tais como uso de máscara, contágio e imunização de rebanho, tratamento precoce, lockdown e impacto na economia, ética e autonomia médica, Caso Manaus; além de 16 categorias de agentes ou atores envolvidos.

Esses temas incluem:

  • Negacionismo e desinformação – Registros de discursos e ações que minimizaram a gravidade da pandemia e disseminaram informações falsas sobre o vírus e as vacinas.
  • Vacinação e políticas de imunização – Documentação sobre a aquisição, distribuição e aplicação das vacinas no Brasil, além dos entraves políticos que dificultaram a imunização.
  • Gestão federal da pandemia – Decisões do Ministério da Saúde, trocas de ministros e estratégias adotadas pelo governo Bolsonaro, muitas vezes em conflito com as recomendações da OMS.
  • Ciência e pandemia – O embate entre cientistas e o governo federal em relação às medidas sanitárias e à adoção de tratamentos sem comprovação científica.
  • Justiça e reparação – Medidas que incluem o reconhecimento da verdade, a preservação da memória, a reparação justa às vítimas e a responsabilização dos culpados.Além dos temas, o acervo identifica 16 tipos de agentes que tiveram papel central no período, entre eles:
  • Presidência da República – Discursos e posicionamentos do então presidente Jair Bolsonaro sobre a pandemia.
  • Ministério da Saúde – Documentos oficiais e medidas adotadas pela pasta durante os diferentes períodos da crise sanitária.
  • Fiocruz e Instituto Butantan – Produção e distribuição de vacinas nacionais e os obstáculos políticos enfrentados por essas instituições.
  • Governos estaduais e municipais – As ações adotadas em nível local, muitas vezes em oposição ao governo federal.
  • Movimentos negacionistas e sociedade civil – Registros de campanhas contra as vacinas, desinformação sobre a pandemia e esforços da sociedade civil para combater essas narrativas.

 

O projeto foi desenvolvido por pesquisadores e estudantes das universidades federais de São Paulo e do Rio de Janeiro (Unifesp e UFRJ) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que integram o SoU_Ciência. Contou com a colaboração dos grupos de mídia independente Medo e Delírio em Brasília e Camarote da República, além de entidades como a Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (Avico Brasil) e o Centro de Pesquisas em Direito Sanitário da USP (CEPEDISA/USP).

O Acervo da Pandemia está disponível gratuitamente para o público no site. Além da consulta ao material já catalogado, o projeto também convida pesquisadores e cidadãos a contribuírem com novos documentos e relatos que possam enriquecer a base de dados.

Fonte: Sou_Ciência

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