Por Valéria Pilão e Maria Emília Rodrigues*
Os atos que estão ocorrendo nos últimos dias, em diferentes cidades estadunidenses, com uma grande quantidade de pessoas nas ruas em função da morte do trabalhador negro George Floyd e contra o racismo, merecem nossa atenção. Devemos nos atentar à morte, bem como aos seus desdobramentos sociais, tanto por solidariedade quanto para a compreensão do que esse caso representa naquela sociedade.
Certamente, pode-se abordar a questão de diferentes perspectivas, no entanto, interessa evidenciar o caráter estrutural que o racismo assume no país da liberdade. Importante considerar que a morte de Floyd não é um caso isolado no cotidiano dos EUA, da mesma forma que não é incomum a violência contra negros realizadas pelos policiais nos diversos estados que compõem o país. Vale a pena uma pesquisa rápida nos buscadores da internet para descobrir a quantidade de casos que chegam à grande mídia, sem contar as violências cotidianas que não são divulgadas.
É válido salientar que manifestações de grandes proporções contra a violência policial nos Estados Unidos ocorrem há muito tempo e que a existência de movimentos como o Black Lives Matter, fundado em 2013, comprovam que o assassinato de Floyd não foi exceção. Este movimento é oriundo das demandas e das violências que a comunidade afro-americana é submetida e sua organização busca denunciá-las. Nos últimos anos, o movimento extrapolou limites territoriais, chegando a outros países.
Assim, é necessário compreender que a história dessa sociedade é envolta em contradições, pois por um lado, há o clamor pela liberdade e democracia e, por outro, uma profunda desigualdade social, marcada pela repressão da população negra e extermínio de grande parte dos nativos. O país que foi a primeira colônia da América a se tornar independente em 1776, escrevendo uma Constituição de caráter liberal, não aboliu a escravidão, que perdurou até quase um século depois, sendo formalmente encerrada após a derrota dos estados escravocratas do Sul na Guerra de Secessão (1861-1865).
Porém, a abolição da escravidão não resultou em igualdade, pois de 1870 a 1960, vários estados passaram a adotar leis de segregação racial, conhecidas como Leis Jim Crow (que receberam esta denominação em referência ao personagem criado pelo comediante Thomas D. Rice no século XIX, que consistia em uma caricatura estereotipada com o uso de blackface do negro escravizado). Esse conjunto de ordenamentos não apenas separava explicitamente a população branca dos afro-americanos como também os rebaixava – negando direitos como ao voto e forçando-os a piores condições de vida e de trabalho.
Os movimentos pelos direitos civis, durante as décadas de 1950 e 1960, puseram fim à segregação, mas não ao racismo estrutural e institucional que permeia a sociedade estadunidense. A partir dos anos de 1970, houve um recrudescimento das leis penais no país, o que aumentou exponencialmente sua população carcerária. Pequenos delitos passaram a ser punidos com máxima rigorosidade, lotando as penitenciárias, onde a maioria dos encarcerados não é composta por criminosos perigosos. E, não coincidentemente, a maioria é negra.
Numa suposta luta contra as drogas, as instituições realizam um processo de criminalização da população afro-americana. O documentário “A 13º emenda”, lançado em 2016, traz dados reveladores sobre o encarceramento no país: em 1970, havia 357.292 pessoas presas, em 2014 esse número aumentou para 2.306.200. Os EUA possuem 5% da população mundial, no entanto, tem 25% de sua população privada de liberdade.
Pode-se ainda, fazer uso de mais dados para revelar a relação entre encarceramento e racismo nos EUA: segundo relatório da Human Rights Watch de 2018, afro-americanos compõem 13% do total da população do país, mas os homens negros são encarcerados quase seis vezes mais do que os homens brancos e são 2,5 mais sujeitos a serem mortos pela polícia.
O país da liberdade aparece, portanto, limitado a apenas uma parcela da população e os atos que ocorrem demonstram exatamente esta desigualdade. Os movimentos no país permanecem enquanto este texto é redigido, não sendo possível prever quais serão seus desdobramentos. No entanto, a mudança faz-se necessária.
É importante que se debruce para reconhecer o caráter estrutural do racismo nos EUA e de que maneira a morte de Floyd expressa esta condição societal. Esse processo de compreensão da realidade pode tanto contribuir para a sensibilização à dor do outro (dos outros), como também potencializar a reflexão sobre outras realidades, como a da sociedade brasileira – com suas características sociais específicas -, impulsionando a superação das desigualdades.
Valéria Pilão e Maria Emília Rodrigues são professoras da área de humanidades da Escola Superior de Educação do Centro Universitário Internacional Uninter.