Flavia Costa Strauch* 

A esperança é o dever do sentimento (Fernando Pessoa)

Foi um ano que colocou o mundo de ponta-cabeça. Ceifou milhares de vidas, adoeceu milhões de outras, anestesiou expectativas, alimentou temores, quebrou rotinas, assombrou a esperança, inflacionou a insegurança e estabilizou incertezas. Além disso, a desigualdade social mostrou sua face cruel, ao expor mais de 50 milhões de brasileiros recorrendo ao auxílio emergencial do governo federal.

Um retrato desolador, com velórios sem conforto dos amigos e familiares, o que exige uma elaboração mais criteriosa. Acrescido do distanciamento social, do uso de máscara e de higienização constante das mãos, cuidados necessários para a própria proteção e a de todos. A pandemia transformou a rotina, baluarte/âncora do viver pós-moderno. 

Tal vivência perdura no Brasil há mais de dez meses e vem exigindo da população um estado permanente de alerta. Muitos cidadãos necessitam sair de casa para trabalhar, com vistas à própria subsistência, mas também para que muitos outros trabalhem remotamente.

Para estes, é maior o risco de ansiedade, sentimento que consiste em sofrimento pela expectativa. Ou de angústia, que é uma resposta do organismo frente à situação traumática provocada por afluxo incontrolável de excitações, tanto de origem externa como interna.

Li em algum lugar que se pode definir ansiedade como bolero e angústia como tango. As mudanças e o surgimento de tanta adversidade em pouco tempo têm gerado sobrecarga de estresse, com impacto sobre a saúde psíquica da população, segundo estudiosos da pandemia.

Psicanalista Flavia Strauch (Foto: Divulgação)

Como lidar com os diferentes aspectos que têm impactado de forma dolorosa e devastadora essa quarentena, chamada de ‘carentena’ por uma colega de profissão? Faz sentido essa denominação, pois estão todos carentes de amparo, de fé, de coragem, e alguns até de trabalho.

Lidar com tamanha adversidade tem exigido, de cada um, a capacidade de entrar em contato com suas limitações, sem deixar, porém, de ter em mente que seus desejos, projetos, perspectivas, foram apenas adiados e não perdidos. Entender que essa situação é transitória.

Pode-se dizer que a vida puxou o freio de mão do cotidiano, convocando e impondo a todos que olhassem para dentro de suas casas internas e prestassem mais atenção ao seu redor, obrigando-os a administrar aspectos positivos, negativos e regressivos a que estão sujeitos com essa situação altamente desconfortável.

Aconselhadas a ficarem em casa para permanecerem vivas, as pessoas foram levadas a resgatar todas as suas possibilidades internas e externas para conviver com a própria ansiedade e medo ante uma ameaça de morte assustadora, por ser invisível. E também porque quase nada se sabe sobre esse vírus ‘satânico” e supostamente ‘democrático’, uma vez que os mais vulneráveis biológica e socialmente correm mais riscos de morrer ou adoecer de forma bastante grave.  

Pergunta-se: como administrar a saudade dos entes queridos que partiram e dos que respeitam o distanciamento social? Como suportar a frustração pela não realização dos projetos sonhados para 2020? Respostas a essas perguntas requerem um estado psíquico e mental estruturado. Esse estado é construído ao longo da existência de cada membro da sociedade.

Nascemos incompletos e nossa subjetivação e individuação vão sendo formadas através do que Freud (1916-1917), em Conferências Introdutórias e em Três Ensaios sobre a Sexualidade (1915), nos recorda sobre o que nomeou de séries complementares, quais sejam: hereditariedade, constituição, somadas à experiência infantil. Significa que o ser humano se constitui durante o próprio existir.

Essa plasticidade do funcionamento psíquico é um aliado inestimável para lidar com as misérias do cotidiano, como se referiu Freud. Dessa forma, as próprias histórias do indivíduo darão ou não a ele possibilidades de enfrentar com mais galhardia momentos tão adversos como a pandemia. Não sem sofrimento e temor, mas usando seu potencial para se alegrar com as coisas simples da vida. Como o sorriso de uma criança, uma música agradável, lives sobre assuntos que acalmam, informam, que despertem curiosidade ou até mesmo distraiam, uma vez que o lugar e as circunstâncias em que nos encontramos não nos definem.

Nem todos conseguem regular suas emoções para lidar com esses desafios, mas vale lembrar que existe a oportunidade para ampliar, ainda que de forma virtual, conexões afetivas com familiares e amigos distantes, fazer novas amizades e tentar realizar coisas diferentes das habituais. Outros podem não ter conseguido se organizar emocionalmente para conviver nessa situação pandêmica, por motivos variados, desde uma constituição psíquica mais frágil, solidão e até por perdas significativas de diferentes ordens.

Escuta especializada

Esses muito se beneficiariam com auxílio de uma escuta especializada. Várias instituições psicanalíticas e psicológicas abriram espaço de escuta voluntária a pessoas que jamais tiveram acesso a esse tipo de ajuda, e seus membros continuam a prestar esse ato de solidariedade que a tecnologia tem favorecido, seja através do celular ou do computador, ou do velho telefone fixo. 

Assim, na situação pandêmica, o sujeito que se sentir fragilizado poderá recorrer a uma ajuda psicológica para resgatar sua potencialidade, que é inerente ao ser humano, e entrar em contato de novo com seus desejos, propósitos e sonhos, por ora adiados, mas não sepultados. E todas essas perspectivas podem até ser modificadas e/ou novas serem criadas.

Esmorecer por alguns momentos faz parte do existir, mas abdicar, não. Isso não significa negar os sentimentos desanimadores que possam acometer o sujeito entristecido. Acreditar que não há mal que sempre dure ajuda a restabelecer o ânimo. Passar do sentimento de terror, que é um objeto sem conhecimento, como o vírus, por exemplo, para o sentimento de medo, que tem objeto e conhecimento, como a guerra, facilita o enfrentamento do problema.

Não há uma receita para o bem viver. Cada pessoa é diferente e tem seu modo específico de processar suas experiências. Mas, para a saúde mental, é necessário possuir certo limiar de suportabilidade à frustração, que permita reconhecer a realidade decepcionante e, mesmo assim, persistir rumo à consolidação do desejo em sua potencialidade. Há que ter resiliência, sem dúvida. 

Quando a esperança se presentifica

Manter esse estado de credibilidade com tantos desafios a serem superados e dependendo da colaboração do semelhante, conviver com a falta, com a saudade que inunda a alma, segundo uma outra colega, demanda um aprendizado, que esse vírus nos proporciona, há uma pedagogia nele: passa-se por ele tendo algo a transformar. Existe um devir, portanto, a esperança se presentifica.

Ninguém está condenado a ter um trauma por causa da pandemia, no entanto muitos podem ter desenvolvido trauma por tamanha desolação. Como disse o Krenak numa entrevista: “guardemos a esperança num lugar bem seguro”. Se preciso, ressalto: busque atendimento psicológico. Os profissionais da saúde mental, quem diria, se transformaram em serviço essencial nesse momento de tanto sofrimento psíquico. 

Toda essa mudança causada por um vírus invisível impôs ajustes no nosso dia a dia. Como seres resilientes e com a pulsão de vida negociando com a pulsão de morte – o ser humano possui essas duas pulsões internamente –, as memórias podem confortar, rever álbuns de fotografias, conversar com pessoas que importam, podem ser antídotos contra o desconforto nesse fim de ano estranho e totalmente diferente do nosso hábito.

Também pode-se lembrar de ser grato por ter sobrevivido a essa pandemia, por ter condições de cuidar de si e do outro. Esses elementos sustentam nossos vínculos afetivos, que necessitam ser regados. É um tempo estranho, diria. Mas pode ser também tempo de revelações sobre a origem de cada um, e falar a respeito pode resultar em outra forma de estar na contemporaneidade. Que 2021 seja de saúde, paz e vacina para todos. 

Flavia Costa Strauch é psicanalista, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, e mestre em Casal e Família pela PUC-Rio. É cofundadora da Associação de Psicanálise de Casal e Família (ABPCF) e membro da Associação Internacional de Psicanálise de Casal e Família (AIPCF/ IACFP/ AIPPF).

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