Mortes por leptospirose aumentam 70% nos últimos dois anos
A leptospirose é considerada um verdadeiro problema de saúde pública no Brasil, onde ratos urbanos são os principais transmissores da doença para os seres humanos. A doença pode ocorrer em qualquer época do ano, mas as chances de contágio são maiores quando há inundações, enxurradas e alagamentos por causa do contato direto ou indireto com água contaminada, situações que vêm se intensificando com as mudanças climáticas.
A leptospiroseé uma doença de notificação compulsória às autoridades de saúde desde 1993. De acordo com dados do Boletim Epidemiológico de Leptospirose, do Ministério da Saúde, o Brasil registrou um aumento significativo de casos nos últimos anos.
Em 2023 foram notificados 13.279 casos da doença, com letalidade média de 9%. Boa parte (44%) dos casos confirmados estão relacionados à infecção por água ou lama de inundação.
A doença não é uma novidade, com casos aparecendo recentemente pelo Brasil. Porém, a doença não é tão comentada e segue causando vítimas em diversas regiões, principalmente em períodos de fortes chuvas, por conta de contato com águas contaminadas em alagamentos e enchentes.
Em novembro de 2023, por exemplo, Nikollas Dreger do Nascimento, de 15 anos, faleceu após contrair leptospirose e ficar internado por cinco dias. O pai do adolescente mencionou na ocasião não saber onde o filho adquiriu a infecção, evidenciando a dificuldade em identificar as fontes de contágio em ambientes urbanos.
Como sua ocorrência está relacionada a condições sanitárias precárias e alta infestação de roedores infectados, a prevenção da doença está diretamente ligada à melhoria nos programas de saneamento e de higiene”, reforça ainfectologista do São Cristóvão Saúde, Michelle Zicker.
A doença infecciosa febril é transmitida pelo contato direto ou indireto com a urina de animais, principalmente roedores e outros animais domésticos ou silvestres infectados pela bactéria leptospira , que contaminam as águas de inundação e expõem as pessoas a riscos.
Se houver algum ferimento ou arranhão, a bactéria penetra com mais facilidade no organismo humano ou por meio de mucosas. Pele íntegra imersa por longos períodos em água contaminada também pode ser afetada.
A penetração da bactéria ocorre por meio de lesões na pele, mucosas, ou por longos períodos em água contaminada. As inundações propiciam a disseminação e a persistência da bactéria no ambiente, facilitando a ocorrência de surtos. Desse modo, os casos são mais frequentes no período de calor e chuvas”, afirma
Cuidado deve ser mantido mesmo após baixar o nível de água
Bactéria responsável pela doença pode sobreviver no ambiente por até seis meses
Transmitida por meio do contato com a urina de animais infectados, como os ratos, a bactéria leptospira spp, pode sobreviver por até 180 dias (cerca de seis meses) no ambiente. Por isso, deve-se continuar com medidas de precaução para evitar a doença após o fim das enchentes.
Andre Doi, patologista clínico e diretor científico da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial (SBPC/ML), explica que há exames específicos para o diagnóstico da leptospirose, mas que, nesse momento, no Rio Grande do Sul, é fundamental considerar o histórico epidemiológico e exposição do paciente para suspeita da infecção.
Os exames laboratoriais são importantes para o diagnóstico da doença. Entretanto, o tratamento e profilaxia, quando necessários, devem ser realizados com base na história clínica e epidemiológica, além de sinais/sintomas apresentados pelo paciente. Esta é a recomendação da SBPC/ML frente à elevada demanda pelos exames diagnósticos e escassez de testes, redução local da rede laboratorial disponível e maior tempo de resposta para os resultados”, destaca o patologista clínico André Doi.
Mesmo após a diminuição do nível d’água nas cidades do Rio Grande do Sul, a leptospirose ainda pode ser contraída, já que os cidadãos ainda podem permanecer expostos a locais contaminados. Por essa razão, é importante que as pessoas usem vestimentas impermeáveis, como botas e roupas protetoras, luvas e sacos plásticos quando forem limpar suas casas, por exemplo.
Superfícies molhadas se tornam propícias para a sobrevivência da bactéria da leptospirose também. Evitar o contato com água e lamas suspeitas de contaminação e não deixar que as mãos e os pés fiquem molhados por muito tempo são formas de prevenção. “A bactéria pode penetrar no corpo através da pele ou mucosas como nariz e boca, facilitando a disseminação da doença”, explica Doi.
Ainda não há vacina disponível para a doença e o tratamento da leptospirose baseia-se na antibioticoterapia. “Em alguns casos, a administração profilática de antibióticos é indicada após exposição à água contaminada”, destacou o especialista da SBPC/ML.
Conheça os principais sintomas da doença
O período de incubação pode variar de um a 30 dias e normalmente ocorre entre sete a 14 dias após ter entrado em contato com as águas de enchente ou esgoto. Os sinais podem surgir em um dia ou em mês, porém, aparecem comumente entre um e duas semanas (7 a 14 dias).
Os principais sintomas são: febre, dor de cabeça, fraqueza, mialgia (dor muscular, em especial, na panturrilha), calafrios, náusea seguida de vômitos e inapetência (falta de apetite).
“A dor na panturrilha (batata da perna), quando presente, pode levantar suspeita da doença”, comenta Dra. Michelle. A icterícia, caracterizada pela pele amarelada e olhos avermelhados, também pode surgir, esses sinais podem ocorrer em diversas doenças infecciosas.
Pamella Wander, infectologista do Hospital Estadual de Trindade – Walda Ferreira dos Santos (Hetrin), unidade do governo de Goiás , unidade administrada pelo Instituto de Medicina, Estudos e Desenvolvimento (Imed), destaca a importância de estar atento aos sintomas, principalmente caso tenha contato com água de chuva.
Atenção aos quadros de febre alta, dores de cabeça, náuseas ou vômitos, dores no corpo, dores em região de panturrilha, manchas pelo corpo e coloração amarelada da pele”, alerta a médica, orientando a procurar uma Unidade Básica de Saúde (UBS) mais próxima em caso de um ou mais desses sintomas.
Tratamento deve ser iniciado imediatamente
A leptospirose tem cura, e o diagnóstico e tratamento podem ser feitos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O diagnóstico precoce auxilia no tratamento e no controle de sintomas mais graves. Por isso, a cooperação entre as autoridades de saúde, a população e os profissionais médicos são essenciais para controlar a propagação de doenças e proteger a saúde de todos.
Considerando o atual cenário de extensos períodos de chuvas e cheias, suspeitos oriundos de área de alagamento e com sintomas compatíveis com leptospirose devem iniciar tratamento medicamentoso imediato.
Em geral, a leptospirose é tratada com medicação para minimizar os sintomas e, em casos mais graves, com antibiótico. Por isso, nos primeiros sinais comuns da doença, é fundamental procurar por atendimento médico.
Antibióticos e outras medidas de suporte são parte da orientação médica e podem agir em qualquer período da doença, mas sua eficácia costuma ser maior na primeira semana do início dos sintomas.
A escolha do antimicrobiano vai depender do estágio da doença e as manifestações clínicas variam desde formas assintomáticas até quadros graves, sendo divididas em duas fases: precoce e tardia”, afirma Michelle Zicker.
Casos leves da doença podem ser tratados em ambulatório, mas os casos graves precisam internação hospitalar. Contudo, a automedicação não é indicada, pois pode agravar a doença.
Em aproximadamente 15% dos pacientes com leptospirose, ocorre a evolução para manifestações clínicas graves, que normalmente iniciam-se após a primeira semana de doença. Nas formas graves, a manifestação clássica da leptospirose é a síndrome de Weil, caracterizada pela tríade de icterícia (tonalidade alaranjada da pele muito intensa – icterícia rubínica), insuficiência renal e hemorragia, mais comumente pulmonar”, salienta a infectologista.
Nota técnica sobre uso de antibióticos
No dia 5 de maio de 2024 uma Nota Técnica Conjunta da Sociedade Brasileira de Infectologia, Sociedade Gaúcha de Infectologia e Secretaria da Saúde do Estado do Rio Grande do Sul, recomendando a quimioprofilaxia em situações específicas.
“Esta orientação é crucial para proteger especialmente as equipes de socorristas e voluntários que têm contato direto com águas de enchente”, explicou a médica infectologista pediátrica Carolina Brites.
A Nota Técnica Nº 16/2024 salienta que, de modo geral, o uso profilático de antimicrobianos não é recomendado, dado que estudos, incluindo uma revisão sistemática de 2024 pela Cochrane Systematic Reviews, não demonstraram redução na mortalidade ou infecção.
No entanto, em situações de alto risco, como para equipes de resgate e indivíduos com exposição prolongada a ambientes contaminados, o uso de doxiciclina ou azitromicina é indicado.
Para adultos, o recomendado é 200 mg de doxiciclina por via oral em dose única, imediatamente após a exposição de alto risco, ou uma dose semanal de 200 mg durante o período de exposição contínua.
Para crianças, a dose é de 4 mg/kg, também em única administração, sem exceder 200 mg. A alternativa, azitromicina, é administrada em dose única de 500 mg para adultos e 10 mg/kg para crianças após exposição, sem ultrapassar 500 mg.
É importante ressaltar que a quimioprofilaxia com doxiciclina não é indicada para gestantes e lactantes, e todos devem estar cientes de que mesmo com o uso de antimicrobianos, a proteção não é garantida em 100% dos casos”, complementa Brites.
Saneamento básico e água sanitária
Ela também destacou a importância de medidas não farmacológicas:
Primeiro ponto, obras de saneamento básico. Quanto mais a gente conseguir organizar, para que tenha uma drenagem melhor de águas paradas, redes de coleta e de abastecimento de água, construção e manutenção das galerias de esgoto e água pluviais, é importante para as melhorias de habitação humana e controle dos roedores”.
Ela recomenda ainda evitar o uso de água ou lama de enchentes e impedir que as crianças nadem ou brinquem nessas águas e utilizar água sanitária ou hipoclorito de sódio a 2,5%.
Ele mata as leptospiras e deve ser utilizado para desinfetar os reservatórios de água. Pode ser usado um litro de água sanitária para cada mil litros de água do reservatório, e assim conseguimos minimizar a leptospirose”, explica.
Segundo ela, a gravidade dessa doença e a complexidade de sua prevenção ressaltam a necessidade de políticas públicas eficazes e a conscientização da população sobre os riscos e medidas de proteção, especialmente em tempos de crise ambiental. Com a colaboração de todos, esperamos reduzir significativamente o impacto da leptospirose no estado.
Como prevenir a leptospirose
Como a grande maioria das doenças, a prevenção desempenha um papel vital na redução do risco. Algumas ações são necessárias para mitigar a contaminação, como evitar áreas infestadas por roedores e o contato com a água de enchentes e dejetos oriundos da produção animal, especialmente se houver alguma ferida pelo corpo.
Alguns cuidados simples podem ajudar na prevenção da doença, como manter em casa as áreas externas limpas e livres de lixo, ajudando a reduzir a população de ratos durante a temporada de chuvas.
Evitar caminhar em enxurradas, água parada na rua ou enlameadas após as chuvas é uma das formas de prevenir a doença, e a atenção com crianças deve ser redobrada.
É importante que residentes em locais mais atingidos pela chuva adotem cuidados, como usar calçados ao caminhar em áreas alagadas, evitar qualquer tipo de contato com roedores (os principais transmissores) e lavar bem os alimentos.
Além disso, é importante implementar medidas preventivas e de controle de roedores. Os cuidados também se estendem aos animais domésticos, como cães e gatos, que devem ser vacinados preventivamente contra a leptospirose e mantidos em ambientes saudáveis, pois eles também podem contrair a doença.
Algumas orientações para evitar a doença:
- Consumir água potável, filtrada, fervida ou clorada. Atenção às quebras na canalização de água durante as enchentes;
- A lama de enchentes tem alto poder infectante e adere a móveis, paredes e chão. Recomenda-se retirar essa lama (sempre com a proteção de luvas e botas de borracha) e lavar o local, desinfetando-o a seguir com uma solução de hipoclorito de sódio a 2,5%, na seguinte proporção: para 20 litros de água, adicionar duas xícaras de chá (400mL) de hipoclorito de sódio a 2,5%. Aplicar essa solução nos locais contaminados com lama, deixando agir por 15 minutos;
- Evitar o contato com água ou lama de enchentes e impedir que crianças nadem ou brinquem nessas águas. Pessoas que trabalham na limpeza de lama, entulhos e desentupimento de esgoto devem usar botas e luvas de borracha (ou sacos plásticos duplos amarrados nas mãos e nos pés);
- Para o controle dos roedores, recomenda-se acondicionamento e destino adequado do lixo, armazenamento apropriado de alimentos, desinfecção e vedação de caixas d´água, vedação de frestas e aberturas em portas e paredes, etc. A aplicação de raticidas (desratização) deve ser feita somente por técnicos devidamente capacitados.
Risco de leptospirose em cães e gatos devido às enchentes
As águas dos alagamentos pode causar a doença também nos pets que tiveram contato com as enchentes
Não são apenas os humanos. Diante das recentes e severas enchentes que têm devastado diversas regiões do Rio Grande do Sul, Juliana Dhein, médica-veterinária e gerente técnica do Grupo Hospitalar Pet Support, alerta sobre o risco de leptospirose, uma doença bacteriana grave que pode afetar animais e também seres humanos.
“As enchentes recentes aumentam significativamente a exposição dos animais de estimação a ambientes potencialmente contaminados, elevando o risco de infecção. Sabemos que esse contato foi inevitável para milhares de pets, diante da tragédia que vivemos. Por isso, é importante estar atento aos sinais de manifestação da doença”, relata Juliana.
Sintomas em cães e gatos – Os sintomas da leptospirose em cães e gatos podem variar, mas, conforme a médica-veterinária, geralmente incluem, letargia, desidratação, perda de apetite, vômitos, diarreia, icterícia (amarelamento da pele e dos olhos), e urina escura. Também pode ocorrer insuficiência renal ou hepática. A doença pode ser fatal e o prognóstico melhora se o tratamento for instituído o mais breve possível.
Prevenção e cuidados – A medida preventiva é a vacinação que deve ser feita nos cães ainda filhotes e reforçada periodicamente na vida adulta. O evitamento do contato dos animais com áreas alagadiças é outra medida, essa pouco possível, para muitos animais, em nosso cenário atual. Os animais acometidos pela leptospirose devem ser vacinados assim que possível após plena recuperação.
Tratamento – Ao primeiro sinal de qualquer sintoma mencionado, a recomendação é de buscar assistência veterinária imediatamente. “O tratamento precoce pode incluir administração de antibióticos e medidas de suporte para as demais apresentações clínicas”, conta Juliana.
Primeiros casos da doença no Brasil e no mundo
Os primeiros casos documentados de leptospirose datam do final do século XIX, quando médicos e pesquisadores passaram a observar sintomas semelhantes à febre amarela em trabalhadores que estavam envolvidos em ambientes aquáticos e alagados. A doença foi descrita pela primeira vez pelo médico Adolf Weil, em 1886, na Alemanha.
No Brasil, os primeiros relatos são do século XX, em trabalhadores de áreas rurais, como canaviais e fazendas de gado, que frequentemente entravam em contato com a urina de animais infectados, especialmente ratos. Desde então, as pesquisas têm avançado na compreensão da leptospirose e seu agente causador.
Atualmente, a leptospirose é reconhecida como uma zoonose importante, que afeta pessoas em todo o mundo, especialmente em regiões tropicais e subtropicais com condições propícias para a disseminação das bactérias, destacando a importância contínua da vigilância e prevenção.