Pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) afirmam que o novo coronavírus (SARS-CoV-2) é capaz de infectar neurônios humanos. Os pesquisadores investigam de que modo o funcionamento dessas células nervosas é alterado pela infecção. A infecção e o aumento da carga viral nas células nervosas foram confirmados pela técnica de PCR em tempo real, a mesma usada no diagnóstico da COVID-19 em laboratórios de referência. O projeto tem apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Segundo o professor do Instituto de Biologia Daniel Martins-de-Souza, coordenador da pesquisa, a partir desse primeiro resultado, o grupo vai comparar as proteínas e metabólitos das culturas celulares antes e depois da infecção pelo novo coronavírus. Dessa forma, será possível observar como o padrão das moléculas muda e então tentar explicar como o vírus age no sistema nervoso central.

A primeira parte do trabalho era ver se o vírus pode entrar nessas células. A resposta é sim, os vírus entram nos neurônios. O que a gente vai fazer agora é o uso das ferramentas de química analítica que a gente tem e, com uma técnica chamada espectrometria de massas, a gente consegue monitorar moléculas nas células, como proteínas, metabólitos e como os lipídios, por exemplo, que são as moléculas de gordura”, explicou Martins-de-Souza.

De acordo com o coordenador da pesquisa, em curto prazo, a previsão é que, com o estudo, seja possível entender o que o vírus faz quando está dentro de um neurônio. “Esse é o segundo passo e o mais importante do nosso trabalho porque é aí que a gente vai conseguir entender e até responder qual é o problema de o vírus entrar na célula”.

O pesquisador ressalta que é cedo para conclusões clínicas, mas afirma que a infecção dos neurônios pelo vírus traz a possibilidade de mais riscos aos pacientes. “A gente começou a observar na literatura a aparição de sintomas neurológicos em pacientes. Mas, antes disso até, um dos primeiros sintomas que aparecem em pessoas acometidas pelo coronavírus é a perda de olfato – anosmia –, que é algo mediado pelo sistema nervoso”, disse.

“O fato de haver anosmia, os pacientes apresentarem sintomas neurológicos e já ter alguns estudos saindo, mostrando algumas lesões observadas pós-morte no cérebro de pacientes com covid-19, pode sugerir que, se o vírus de fato chegar ao cérebro, ele pode ser prejudicial para o paciente, mas ainda é muito cedo para afirmar tudo isso”, explicou. Martins-de-Souza reforçou que essa é uma hipótese a ser testada pelos pesquisadores.

O grupo coordenado pelo professor do Instituto de Biologia Daniel Martins-de-Souza também confirmou que os neurônios expressam a proteína ACE-2 (enzima conversora de angiotensina 2, na sigla em inglês), molécula à qual o vírus se conecta para invadir as células humanas. Nos próximos dias, a equipe pretende investigar de que modo o funcionamento dessas células nervosas é alterado pela infecção.

A pesquisa está sendo conduzida no âmbito de um projeto aprovado pela FAPESP na chamada “Suplementos de Rápida Implementação contra COVID-19”, como parte da força-tarefa criada pela Unicamp (leia mais em agencia.fapesp.br/32861/).

“Vamos comparar as proteínas e demais metabólitos presentes nas culturas celulares antes e após a infecção. A ideia é observar como o padrão das moléculas muda e, com base nessa informação, tentar contar a história de como o vírus atua no sistema nervoso central”, explica Martins-de-Souza à Agência FAPESP.

No experimento, realizado pela pós-doutoranda Fernanda Crunfli, foram usados uma linhagem celular cerebral humana e também neurônios humanos obtidos a partir de células-tronco pluripotentes induzidas (IPS, na sigla em inglês).

O método consiste, inicialmente, em reprogramar células adultas – que podem ser provenientes da pele ou de outro tecido de fácil acesso – para fazê-las assumir estágio de pluripotência semelhante ao de células-tronco embrionárias. Esta primeira parte foi realizada no laboratório do professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Stevens Rehen, no Instituto DOR de Pesquisa e Ensino. Em seguida, o time de Martins-de-Souza induziu, por meio de estímulos químicos, as células IPS a se diferenciarem em células-tronco neurais – um tipo de célula progenitora que pode dar origem a diversas células do cérebro, como neurônios, astrócitos e oligodendrócitos.

“Também estamos começando testes com astrócitos humanos e, em breve, saberemos se o vírus infecta essas células, que dão suporte ao funcionamento dos neurônios e são as mais abundantes do sistema nervoso central”, conta Martins-de-Souza.

Efeitos no cérebro

Como explica Martins-de Souza, estudos feitos em outros países sugerem que o SARS-CoV-2 tem tropismo pelo sistema nervoso central, ou seja, uma certa propensão a infectar as células nervosas. “Mas ainda não sabemos se o vírus realmente consegue atravessar a barreira hematoencefálica [estrutura que protege o cérebro de substâncias tóxicas e patógenos presentes na circulação sanguínea] e, caso consiga, que tipo de impacto pode causar no tecido nervoso. Tentaremos buscar pistas que ajudem a elucidar essas dúvidas”, diz o pesquisador.

Os experimentos in vitro com isolados virais estão sendo feitos no Laboratório de Estudos de Vírus Emergentes (Leve) do Instituto de Biologia da Unicamp, que tem nível 3 de biossegurança (em uma escala que vai até 4) e é coordenado pelo pesquisador José Luiz Proença Módena.

Participam dos testes os pós-graduandos Gabriela Fabiano de Souza e Stéfanie Primon Muraro, orientandas de Módena, e Ana Campos Codo e Gustavo Gastão Davanzo, sob a orientação do professor Pedro Moraes Vieira.

Os testes de metabolômica e proteômica serão conduzidos no Laboratório de Neuroproteômica, coordenado por Martins-de-Souza, pelos pós-doutorandos Victor Corasolla Carregari e Pedro Henrique Vendramini. Para isso, será usado um espectrômetro de massas, equipamento capaz de discriminar diferentes substâncias presentes em uma solução com base no peso molecular de cada uma.

“Além de investigar se a quantidade de uma determinada proteína na amostra aumenta ou diminui após a infecção, também pretendemos avaliar como está o nível de fosforilação e de glicosilação das moléculas. Esses dois mecanismos bioquímicos são usados pela célula para ativar ou desativar rapidamente a função desempenhada pelas proteínas. Isso nos dará pistas sobre as vias metabólicas que são alteradas nos neurônios em resposta ao novo coronavírus”, conta Martins-de-Souza.

Manifestações neurológicas

Em um vídeo divulgado no site da Unicamp, o neurologista Li Li Min comenta as manifestações neurológicas já observadas em pacientes com COVID-19, entre elas perda de olfato e paladar, confusão mental, derrame e dor muscular (sem relação com alguma lesão no músculo).

Segundo o pesquisador, estima-se que até 30% dos infectados pelo novo coronavírus possam apresentar algum sintoma neurológico. Min é coordenador de Educação e Difusão do Conhecimento do Instituto de Pesquisa sobre Neurociências e Neurotecnologia (BRAINN), um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) apoiado pela FAPESP.

Exame pode mostrar complicações neurológicas

Em nota, a Sociedade Brasileira de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial (SBPC/ML), alerta sobre a importância do exame do Líquido Cefalorraqueano em casos de Covid-19. O novo Coronavírus (COVID-19) tem como sintomas característicos febre, tosse e dificuldades respiratórias. Alguns pacientes evoluem para o quadro de pneumonia, podendo culminar com Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS-Cov-2).

Alguns estudos internacionais resolveram testar se, assim como outros vírus respiratórios, o SARS-Cov-2 também poderia causar complicações neurológicas. O que se confirmou no primeiro relato de manifestações neurológicas relacionadas ao COVID-19, em fevereiro de 2020, quando Mao e cols. publicaram na China uma série retrospectiva de 214 pacientes internados, dos quais 78 (36,4%) apresentavam sintomatologia neurológica.

As alterações de sistema nervoso central (SNC) ocorreram em 24,8% dos casos, sendo as mais frequentes tontura (16,8%) e cefaleia (13,1%). As manifestações mais comuns de sistema nervoso periférico (SNP), que ocorreram em 8,9%, foram hipogeusia e hiposmia. Alterações de enzimas musculares foram encontradas em 10,7%. Neste estudo não foram analisados dados de neuroimagem nem liquóricos.

Ao longo de março de 2020, surgiram relatos de possíveis casos de encefalopatia e/ou encefalite associadas ao COVID-19. Sun e Guan relataram que um paciente atendido em Beijing que teve o COVID-19 identificado em amostra de LCR. Poyiadji e cols.

Descreveram caso de paciente com síndrome respiratória aguda e sintomas neurológicos, cuja ressonância de crânio mostrou lesões hemorrágicas talâmicas bilaterais, em regiões mesiais temporais e subinsulares, compatíveis com encefalopatia necro-hemorrágica. O LCR não foi testado para o COVID-19 nem para o vírus HSV.

Morigushi e col. relataram caso de provável encefalite associada ao COVID-19, em paciente que iniciou com crises epilépticas refratárias após 9 dias de sintomas respiratórios. A ressonância mostrou lesão compatível com encefalite ou esclerose mesial temporal. O LCR tinha 32cm H20 de pressão de abertura, 12 células/mm3, sendo 10 linfócitos e 2 polimorfonucleares e PCR positivo para COVID-19. Não há outros dados liquóricos e o LCR não foi testado para outros vírus.

Os estudos mencionados indicam a possibilidade de uma associação entre o COVID-19 e o SNC – Sistema Nervoso Central. Tal associação foi demonstrada com outros Coronavírus. Tanto o SARS-CoV quanto o MERS-CoV foram identificados em tecido cerebral, dentro de neurônios. O SARS-CoV e o COVID-19 compartilham o mesmo receptor para entrada nas células, o receptor de enzima conversora de angiotensina (ACE-2), que está presente em vários tipos celulares, incluindo neurônios. Foi demonstrada experimentalmente a transferência transináptica destes vírus. Portanto, embora os relatos sejam poucos, é possível que pelo menos em alguns casos, o COVID-19 atravesse a barreira hematoencefálica e penetre no SNC, causando lesão neuronal.

Segundo o Dr. Carlos Senne, ex-presidente da SBPC/ML, como o paciente crônico é entubado, em estado de sedação, a capacidade de análise do seu lado cognitivo fica muito comprometida e pode “mascarar” um estado que merece a atenção da equipe médica.

É necessário conhecer melhor a relação entre o COVID-19 e o SNC. Isso só será possível através da investigação dos casos com manifestações neurológicas através de neuroimagem, preferencialmente ressonância, e LCR, incluindo a investigação da imunoprodução intratecal (para conhecermos a resposta imune ao vírus no SNC) e PCR para COVID-19 e outros vírus neurotrópicos.

A inclusão de painel de vírus é importante para afastar diagnósticos diferenciais e melhor caracterizar a relação causa efeito entre o COVID-19 e o quadro neurológico. Por isso a recomendação de realizar PCR em LCR para meningites e meningoencefalite.

*Com Agência Brasil e Assessoria SBPC/ML

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