A bacharel em Direito Giseli Soeiro, de 38 anos, está desde 2016 esperando por um transplante de rim. Com doença renal crônica, ela é obrigada a fazer ao menos quatro diálises por dia para se manter saudável. A moradora de Caxias do Sul (RS) quase desistiu do tratamento, precisou superar o medo de agulhas e aprendeu na marra a fazer diálise sozinha, em casa.
Giseli faz um tipo diferente de diálise, a peritoneal. Ao acordar, no horário de almoço no trabalho, no fim da tarde e antes de dormir, ela se conecta às bolsas que filtram seu sangue enquanto aguarda pela chegada de um órgão compatível – a espera já dura oito anos.
A diálise peritoneal domiciliar permite aos pacientes realizarem a terapia no conforto de seus lares, preservando sua rotina de trabalho e estudos. Apesar de ser uma alternativa menos invasiva e com impactos significativamente menores na qualidade de vida dos pacientes, a diálise peritoneal domiciliar segue amplamente ignorada no Brasil.
Esse tipo de tratamento é feito por apenas 3,4% dos pacientes renais crônicos do SUS, segundo uma estimativa do Censo Brasileiro de Nefrologia de 2023, da Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN), um número extremamente baixo quando comparado a países como México, Nova Zelândia, Canadá, Hong Kong e Tailândia, onde políticas públicas incentivam essa modalidade.
Em nações como a Tailândia e Hong Kong, por exemplo, há programas governamentais chamados de “PD First” (diálise peritoneal como primeira opção), que estabelecem a diálise peritoneal como primeira alternativa de tratamento para pacientes renais crônicos, garantindo maior adesão e melhores resultados na qualidade de vida dos pacientes.
Campanha quer aumentar cobertura da diálise peritoneal para 20% dos pacientes
No Brasil, a Federação Nacional das Associações de Pacientes Renais e Transplantados do Brasil (Fenapar) espera que este número chegue a 20% nos próximos anos. Para isso, a entidade tem feito campanhas de capacitação entre os pacientes para que eles se sintam seguros para migrar ao tratamento feito em casa. “Com ele, há menos deslocamentos, menos risco de infecções e um melhor controle da DRC do que com a hemodiálise tradicional”, afirma a Fenapar.
No Brasil, a baixa adesão à diálise peritoneal se deve, em grande parte, à falta de incentivo por parte do governo e do Sistema Único de Saúde (SUS). Enquanto em outros países há políticas específicas para estimular a DP, por aqui, a oferta do tratamento ainda é limitada, o que impede que milhares de pacientes possam optar por essa alternativa mais flexível e menos onerosa ao sistema de saúde a longo prazo.
Diante desse cenário, a Fenapar busca sensibilizar o governo e a sociedade sobre a necessidade urgente de ampliar o acesso e os incentivos à diálise peritoneal. A campanha busca ampliar o debate sobre a crise no tratamento da doença renal crônica a partir de discussões como subfinanciamento, falta de vagas, escassez de profissionais especializados (nefrologistas e vasculares), e dificuldades logísticas para transporte dos pacientes.
O acesso à saúde de qualidade é um direito fundamental, e cabe ao poder público garantir que os pacientes renais tenham todas as opções disponíveis para um tratamento digno e eficaz”, afirma a entidade.
Terapia dura apenas 15 minutos diários
Giseli descobriu ter doença renal crônica aos 17 anos. Ela procurou um hospital quando começou a sentir cansaço extremo e a ter sangramentos no nariz — lá, descobriu que estava com falência renal e que deveria começar a fazer hemodiálise imediatamente. “O médico jogou tudo em mim de uma vez. Fui ao hospital desacompanhada e, quando vi, ele já estava me dizendo que eu podia ter morrido”, lembra.
Naquele mesmo ano, Giseli recebeu a doação de sua mãe, que era compatível, e passou pelo transplante. Tirando as medicações para evitar a rejeição do órgão e os cuidados naturais de quem tem apenas um rim, ela viveu “seus melhores anos”.
“Eu era livre, podia fazer o que quisesse, viajar, estudar. Mas, após 12 anos, o órgão recebido começou a falhar, os sintomas que eu já conhecia voltaram e foi um novo baque”, conta.
Giseli tem muito medo de agulhas e a ideia de voltar a fazer as hemodiálises a fez desistir do tratamento. “Disse para o meu médico que não queria fazer nada, que não seguiria os tratamentos. Ele se desesperou e passou dias tentando me convencer a voltar a fazer as diálises, prometendo que o processo havia evoluído muito desde a primeira vez que eu precisei passar por aquilo.
No final, ele me convenceu”, lembra.
Ela possui um catéter na barriga, onde encaixa manualmente bolsas que equilibram os compostos tóxicos do corpo em um processo que demora cerca de 15 minutos.
Na diálise peritonial, é feita uma filtragem em pequena escala do sangue, usando bolsas de soro que capturam por osmose os compostos tóxicos que circulam no sangue, imitando a função do rim no organismo. Na hemodiálise tradicional, este processo é mais longo, e todo o sangue do corpo passa pelos filtros de uma máquina ao longo de horas.
Com a necessidade, a gente se acostuma. Vamos fazendo a troca das bolsas, mantendo a limpeza do catéter e cuidando para seguir à risca o processo que me ensinaram. Por sorte, todo o material é entregue pelo SUS na minha casa e eu consigo ter mais liberdade e qualidade de vida do teria se tivesse que ir todos os dias a um centro de saúde para fazer a hemodiálise”, afirma.
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Há cinco anos, quando Heverson Sousa, 25 anos, foi diagnosticado com doença renal crônica, sua rotina se resumia a ir ao hospital, pelo menos três vezes por semana, para realizar sessões de hemodiálise. Com o passar do tempo, percebeu que sua autonomia estava limitada, pois dependia de outras pessoas para tarefas rotineiras. A mudança nessa rotina de desafios diários começou quando ele descobriu os benefícios da diálise peritoneal, há três anos.
Apesar de pouco conhecido, o procedimento é oferecido pelo Hospital Regional Dr. Abelardo Santos (HRAS), no distrito de Icoaraci, em Belém, desde 2021. E tudo totalmente gratuito, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), por meio do “Programa de Diálise Peritoneal”. Maior unidade de saúde pública do Governo do Pará, o HRAS conta com 25 vagas, das quais apenas 24% estão preenchidas.
Diferente da hemodiálise, em que eu precisava ir ao hospital dia sim, dia não, percorrer 80 quilômetros entre Vigia (município de Vigia de Nazaré, no nordeste paraense) e Ananindeua (na Região Metropolitana de Belém), e passar quatro horas sentado. Agora, faço tudo em casa. Isso me dá mais liberdade e conforto, permitindo que eu mantenha uma rotina mais próxima da normalidade, e tudo isso no conforto de casa”, conta Heverson.
Pode-se dizer que essa foi uma virada de chave na vida dele, pois antes a hemodiálise deixava meu filho debilitado e com tonturas. Para a segurança dele, eu sempre precisava acompanhá-lo nas sessões, o que tomava boa parte do meu tempo, também. Agora, não. Ele tem autonomia e tempo para outras atividades, e nós passamos a ter qualidade de vida”, garante Maria de Jesus, mãe do paciente.
Com a diálise peritoneal, a autônoma Liliane Almeida, 35 anos, consegue manter a rotina de trabalho e até viajar. “São duas coisas, por exemplo, que para quem faz hemodiálise é quase impossível. Muitas pessoas precisam se aposentar por não conseguirem mais exercer suas profissões. E sair para outro município ou estado, longe do hospital, é complicado. Mas hoje consigo fazer tudo isso”, afirma.
Diferença entre os procedimentos
A hemodiálise tradicional utiliza uma máquina para filtrar o sangue do paciente. O sangue é retirado, passa por um filtro (chamado dialisador) para eliminar resíduos e excesso de líquidos, e depois é reintegrado ao corpo. Geralmente, esse processo é realizado em sessões de três a quatro vezes por semana, cada uma com duração de 3 a 5 horas, exigindo que o paciente se desloque até um centro de diálise ou hospital.
A diálise peritoneal permite ao paciente realizar o tratamento em casa, evitando deslocamentos frequentes à unidade de saúde e proporcionando maior flexibilidade na rotina. Esse procedimento utiliza o peritônio – a membrana que reveste o abdômen – como filtro para remover toxinas do sangue, simulando a função renal de forma menos agressiva ao organismo.
A médica nefrologista Salomé Soares reforça os benefícios da diálise peritoneal. “Há menos instabilidade cardíaca, menor variação da pressão arterial e do peso, além de um melhor controle da anemia. Proporciona maior liberdade na dieta, e como mencionado anteriormente pelos pacientes, maior flexibilidade no horário das trocas e para viajar, pois é necessário apenas levar o material”, informa a especialista.
Salomé Soares acrescenta que “outro benefício é que, ao contrário da hemodiálise, na qual o paciente precisa ir ao hospital cerca de 16 vezes e gastar 64 horas por mês, na diálise peritoneal é necessária apenas uma visita mensal para coleta de exames e consulta médica. Além disso, a diálise peritoneal permite o retorno ao trabalho e aos estudos, além de preservar os vasos dos membros superiores”.
Baixa adesão
Essa técnica vem sendo amplamente adotada nos Estados Unidos, Tailândia e China. No México, a terapia atinge cerca de 50% dos diagnosticados com doença renal. No entanto, os números no Brasil revelam um cenário diferente, com menos de 5% dos pacientes optando pela diálise peritoneal, segundo a Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN).
Periodicamente, o Hospital Abelardo Santos realiza campanhas de conscientização sobre o assunto, com o objetivo de aumentar a adesão ao tratamento com mais informações e combate às fake news sobre a técnica. Atualmente, há 120 pacientes cadastrados no Centro de Hemodiálise no HRAS, a metade está apta a realizar diálise peritoneal.
A falta de conhecimento sobre essa terapia é o principal desafio. Há muita desinformação, principalmente sobre a eficácia da técnica. Mas é importante reafirmar que a diálise peritoneal tem a mesma função da hemodiálise, mas com o benefício da autonomia e da liberdade. Claro que o médico precisa ser consultado para identificar possíveis contraindicações específicas”, informa a médica Salomé Soares.
Regulação
Com o diagnóstico de disfunção renal crônica, o paciente pode iniciar a terapia de diálise peritoneal. Se já estiver em tratamento de hemodiálise, a migração de modalidade é um direito do paciente após avaliação médica. Em ambos os casos, esse processo é feito por meio da regulação de vagas, realizada pela Secretaria de Estado de Saúde Pública (Sespa) ao Hospital Abelardo Santos.
No início do tratamento, o HRAS mobiliza uma equipe multidisciplinar, composta por médico, enfermeiro, assistente social, psicóloga e nutricionista, para realizar visitas domiciliares destinadas a orientar a família sobre os cuidados essenciais que devem ser tomados e as adequações necessárias ao ambiente doméstico, a fim de garantir a segurança e o bem-estar do paciente.
A enfermeira diarista do Serviço de Terapia Renal Substitutiva (STRS), Gisele Carvalho, orienta ao paciente que “converse com o seu médico sobre a intenção de iniciar ou migrar para essa técnica. Somente ele saberá se você possui condições clínicas para isso. Tanto o equipamento quanto os materiais são fornecidos gratuitamente para o paciente realizar o tratamento em casa, com segurança”.
Campanha pela Diálise Peritoneal Domiciliar no Brasil
A campanha “Direito à Diálise Peritoneal Domiciliar” foi lançada nacionalmente em setembro de 2024, durante a realização do XXXII Congresso Brasileiro de Nefrologia, em Salvador. A ação tem como objetivo principal educar e informar as pessoas sobre os benefícios da diálise peritoneal domiciliar, garantindo que todos tenham acesso às melhores opções de tratamento para cuidar da saúde renal e viver com mais qualidade de vida.
A diálise peritoneal domiciliar é um tipo de terapia renal substitutiva, eficaz, segura, que é realizada no domicílio do paciente, geralmente durante o sono, permitindo que mantenham o convívio familiar e a rotina diária.
A campanha: criada a partir da necessidade de mostrar a importância do tratamento domiciliar para melhorar a vida dos pacientes com doenças renais crônicas (DRC), a campanha visa levar informação com credibilidade e apontar os benefícios para pacientes e familiares.
Com foco principal na conscientização, a campanha busca incentivar a procura por mais informações sobre o método, fazendo com que a diálise peritoneal domiciliar seja uma opção apresentada a todos os pacientes. Para isso, a sociedade civil é convidada a entender melhor esta terapia e como ela pode impactar positivamente na vida de milhares de pessoas.
Estima-se que 1 em cada 10 brasileiros seja portador de DRC, e muitos ainda nem sabem deste diagnóstico. Segundo dados do Censo Brasileiro de Diálise de 2023, cerca de 157 mil pessoas são pacientes renais crônicos no Brasil e destas apenas 5.822 realizam diálise peritoneal.
Esta campanha nasceu do desejo de mostrar aos pacientes de DRC que há outras opções de tratamento que vão além da hemodiálise. A diálise peritoneal domiciliar proporciona inúmeros benefícios aos pacientes, mas ela é pouca conhecida. A nossa meta é mudar esta realidade e fazer com que a diálise seja levada em consideração na hora da escolha do tratamento”, explica Renato Padilha, presidente da Fenapar.
Ações pelo Dia Mundial do Rim
Em celebração ao Dia Mundial do Rim, a Federação Nacional das Associações de Pacientes Renais e Transplantados do Brasil (Fenapar) promove uma série de atividades com o intuito de conscientizar a população e as autoridades sobre a importância da prevenção, diagnóstico precoce e ampliação das opções de tratamentos.
As ações da Fenapar para o Mês Mundial do Rim incluem eventos presenciais e online. A primeira foi realizada nesta segunda-feira (10 de março), com a live de lançamento do abaixo-assinado pelo Instagram da campanha, às 19h.
A transmissão contou com a participação de representantes da Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN), da Associação Brasileira dos Centros de Diálise e Transplante (ABCDT) e da Sociedade Brasileira de Enfermagem em Nefrologia (Soben), reforçando a importância da mobilização social em prol da diálise peritoneal domiciliar.
Veja as demais ações previstas:
11 de março – Sessão Solene em Homenagem ao Dia Mundial do Rim (Plenário da Câmara dos Deputados, às 9h): evento reunirá parlamentares e especialistas para discutir sobre políticas públicas voltadas à saúde renal no Brasil.
11 de março – Ações de prevenção e diagnóstico (Espaço do Servidor da Câmara dos Deputados, das 9h às 18h): serão realizadas aferições de pressão arterial e testes de glicemia e creatinina, fundamentais para o diagnóstico precoce de doenças renais.
12 e 13 de março – Mobilização no Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado Federal): representantes da Fenapar visitarão os gabinetes dos Deputados Federais e Senadores para reforçar a necessidade de políticas públicas que incentivem o acesso à diálise peritoneal domiciliar.
Para saber mais sobre a campanha “Direito à Diálise Peritoneal Domiciliar” acesse o site da campanha, baixe o Manifesto elaborado em parceria entre a Fenapar e a SBN e ajude a dar voz aos pacientes com doenças renais crônicas compartilhando para o maior número possível de pessoas.
Com informações de assessorias