Não é de hoje que, vira e mexe, a saúde pública do Rio de Janeiro fica na mira da Polícia e da Justiça, seja por corrupção, erro médico ou negligência, em graves episódios envolvendo muitas vidas humanas e até mortes. Desde a semana passada, está de volta aos noticiários policiais por um episódio quase inacreditável: a emissão de laudos falsos que resultaram no transplante de órgãos infectados com o vírus HIV, causador da Aids.

Diz o ditado popular que, ‘depois da porta arrombada, trocam-se as fechaduras’. No caso da saúde do Rio, agentes da Polícia Civil do Estado, literalmente, tiveram que ‘meter o pé na porta’ do Laboratório PCS Saleme, em Nova Iguaçu (RJ), para cumprir mandados de busca e apreensão nesta segunda-feira (14). As prisões de Walter Vieira e Ivanilson Fernandes – respectivamente e técnico do  Laboratório PCS Saleme – são resultado da primeira fase da Operação Verum, realizada pela Delegacia do Consumidor (Decon).

Walter Vieira, casado com uma tia do ex-secretário estadual de Saúde Doutor Luizinho, foi preso na Operação Verum da Polícia Civil (Fotos: Rafael Campos)

Walter, sócio do laboratório que foi preso, é casado com uma tia do deputado federal e ex-secretário estadual de Saúde do Rio Luiz Antônio de Souza Teixeira Júnior, o Doutor Luizinho (PP), e pai de Matheus Sales Teixeira Bandoli Vieira, também sócio do laboratório, que assinou contratos com a Fundação Saúde, vinculada à Secretaria Estadual de Saúde (SES-RJ), para realizar exames de análises clínicas e de anatomia patológica em todas as unidades da rede.

De acordo com o Governo do Estado, todos os 11 mandados de busca e apreensão expedidos pela Justiça foram cumpridos no Rio de Janeiro e Nova Iguaçu. Outros dois alvos de mandado de prisão estão foragidos.

Assim que tive conhecimento sobre os casos, determinei a apuração imediata dos fatos. Todos os envolvidos estão sendo investigados e os culpados serão punidos com o rigor da lei. Esse crime atenta contra todo o estado, e daremos uma resposta dura”, declarou o governador Cláudio Castro.

Polícia Federal também instaurou um inquérito nesta segunda-feira (14), por determinação do Ministério da Justiça, por envolver o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Nacional de Transplantes (SNT). Ainda não há data para a coleta de depoimentos durante a investigação.

Falha no controle de qualidade dos testes

Segundo as investigações da Polícia Civil no Rio, houve uma falha operacional no controle de qualidade aplicado nos testes do laboratório, com o objetivo de diminuir os custos. A análise das amostras deixou de ser realizada diariamente para se tornar semanal. A questão contratual com o laboratório também está sendo investigada pela Polícia Civil.

A Delegacia do Consumidor instaurou o inquérito e realizou as diligências com rigor e celeridade, o que culminou na operação desta segunda-feira, com o cumprimento de medidas cautelares”, disse o secretário de Polícia Civil, delegado Felipe Curi, que é diretor do Departamento de Polícia Especializada da Polícia Civil.

A Polícia Civil investiga se negligência no controle de qualidade do laboratório PCS Labs seria o motivo dos erros nos exames que liberaram, para transplante, órgãos infectados com o vírus HIV. Os órgãos foram considerados, pelo laboratório, como livres do vírus e, portanto, aptos para os transplantes em seis pacientes, que acabaram infectados pelo vírus causador da Aids.

O delegado disse ainda que há outras hipóteses sendo investigadas, inclusive a emissão de laudos falsos. A polícia segue investigando a cadeia operacional relacionada à elaboração dos laudos do grupo criminoso.

Segundo o delegado André Neves, as investigações detectaram negligência na checagem da validade dos reagentes, ou seja, dos produtos químicos que reagem com o sangue contaminado e indicam a presença do vírus. Caso estejam fora da validade, esses insumos podem ser ineficazes na detecção do HIV e resultar em um exame falso negativo. O objetivo era reduzir custos e aumentar o lucro do laboratório, segundo Neves.

Rio de Janeiro (RJ) 14/10/2024 - 14/10/2024 - Coletiva de imprensa sobre a operação contra envolvidos em contaminação de transplantados por HIV. Fotos: Rafael Campos/Polícia Civil
 Coletiva de imprensa sobre a operação contra envolvidos em infecção de transplantados por HIV (Fotos: Rafael Campos/Polícia Civil)

Era feita uma análise qualitativa diária nos reagentes, até dezembro. Depois disso, essa análise passou a ser semanal.  A ideia era diminuir o custo [para o laboratório]. Quando você diminuiu o custo, aumentou o risco. A pessoa que determinou isso [o espaçamento das checagens dos reagentes] será devidamente responsabilizada criminalmente”, disse o delegado. “Houve quebra do controle de qualidade que visou o lucro, deixando de lado a segurança dos testes”.

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Laboratório alega falha humana

Walter Vieira alegou falha humana para justificar o erro em testes de HIV em órgãos infectados (Fotos: Rafael Campos)

Em depoimento à polícia, Walter disse que o resultado preliminar feito pela sindicância interna do laboratório aponta indícios de falha humana na transcrição dos resultados de dois testes de HIV. Em nota divulgada nesta segunda-feira (14), o PCS Lab Saleme, que após o ocorrido abriu uma sindicância interna, diz que há indícios de falha humana e afirma que não há nenhum esquema criminoso para forjar resultados.

A nota diz que a defesa de Walter Vieira e de Mateus Vieira, que também é sócio do laboratório, “repudia com veemência a insinuação de que existiria um esquema criminoso para forjar laudos no laboratório, que atua no mercado desde 1969. A defesa confia que, após os esclarecimentos prestados por Walter, a Justiça entenderá desnecessário mantê-lo preso”, diz o texto.

O laboratório afirma que Matheus Vieira apresentou-se de maneira voluntária à polícia e foi liberado. “Ele assegurou às autoridades que irá depor quando sua defesa tiver acesso integral aos autos da investigação”.  A nota também diz que Jacqueline Iris Bacellar de Assis, cuja assinatura aparece em um dos laudos, “apresentou documentação inidônea (diploma de biomédica e carteira profissional com habilitação em patologia), induzindo o laboratório a crer que ela tinha competência para assinar laudos”.

O PCS Lab Saleme, ressaltou que, nos últimos 12 meses, realizou mais de 3 milhões de exames e que, desde 1º de dezembro, quando começou a prestar serviços à Fundação Saúde do Governo do Estado do Rio de Janeiro, comprou pelo menos 900 testes para diagnóstico de HIV em amostras de sangue de doadores de órgãos, seguindo recomendação do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

O laboratório também reafirmou que dará o suporte necessário às vítimas “assim que tiver acesso oficial à identidade delas; e que está à disposição das autoridades que investigam o caso”.

Suspeita de falsificação de laudos em outros casos

A Decon também investiga se o laboratório falsificou laudos em outros casos. “Determinei imediatamente a instauração de inquérito, atendendo determinação do governador para que os fatos fossem investigados com maior rigor e rapidez. Conseguimos elementos para representar pelas cautelares junto à Justiça em tempo recorde, para que os culpados sejam punidos com a maior celeridade”, afirmou o secretário estadual de Polícia Civil, Felipe Curi, por meio de nota.

Por meio de nota, as defesas de Walter e Mateus Vieira, sócios do PCS Lab Saleme, repudiaram “com veemência a suposta existência de um esquema criminoso para forjar laudos dentro do laboratório, uma empresa que atua no mercado há mais de 50 anos. Ambos prestarão todos os esclarecimentos à Justiça”, disseram.

Um dos presos é tio do ex-secretário estadual de Saúde

Segundo reportagem do jornal O Globo, mesmo atuando em Brasília, na Câmara Federal, Doutor Luizinho mantém forte influência sobre a pasta. Doutor Luizinho nega acusações de favorecimento a parentes nas contratações da SES-RJ. Em nota divulgada por sua assessoria na última sexta-feira (11), o parlamentar disse que quando era secretário – de janeiro a setembro de 2023 – jamais participou da escolha deste ou de qualquer laboratório.

Depois de tomar conhecimento da operação nesta segunda-feira (14), o deputado divulgou uma nova nota em que diz que “é inadmissível que um ser humano faça um transplante e, por erros que nunca poderiam ocorrer, adquira uma nova doença. Espero que o caso seja investigado de forma rápida e os culpados sejam punidos exemplarmente.”

Como médico há 27 anos, secretário de Saúde do Estado do Rio de Janeiro por duas vezes, com uma vida pública e privada dedicada de forma praticamente integral a melhorar e fortalecer nosso sistema de Saúde, desejo punição rigorosa aos responsáveis por este caso sem precedentes”, conclui a nota.

Sobre o contrato assinado em dezembro, o deputado explicou que não era mais secretário quando este foi assinado. Sua assessoria orientou a Agência Brasil a procurar a Secretaria de Saúde para saber informações sobre os outros dois contratos, um deles assinado quando Dr. Luizinho ainda era secretário.

Laboratório já teve três contratos com Governo do Estado

O laboratório Patologia Clínica Dr. Saleme (PCS Labs), teve pelo menos três contratos com a Fundação Saúde, vinculada à SES-RJ, e responsável por gerir as unidades da rede estadual. Um contrato assinado em dezembro de 2023, no valor de R$ 9,8 milhões, era o mais recente deles e teve a escolha por meio de pregão eletrônico.

O documento previa análises clínicas e de anatomia patológica em todas as unidades da rede administrada pela Fundação. Era, portanto, a função do laboratório checar as condições sanitárias dos órgãos que foram transplantados. O PCS Labs teria dado sinal verde para que os órgãos infectados fossem transplantados.

O contrato com o laboratório foi suspenso depois que Secretaria tomou ciência da infecção dos seis pacientes por HIV e abriu uma sindicância para punir e identificar os responsáveis pelo incidente. foi suspenso pela secretaria após a divulgação de informações sobre a contaminação de pacientes transplantados.

Mas antes da assinatura desse contrato, a Fundação da Saúde já havia firmado pelo menos outros dois com o PCS Labs, ambos com dispensa de licitação, conforme apurado pela Agência Brasil. Em outubro de 2023, o laboratório foi contratado, por 180 dias, para fazer análises clínicas e de anatomia patológica para o Hospital Estadual Ricardo Cruz, em um contrato de R$ 3,9 milhões.

Um contrato ainda mais antigo, assinado em fevereiro do ano passado, com o valor de R$ 2,2 milhões, previa a prestação desse mesmo serviço para quatro unidades de Pronto Atendimento (UPA) da zona oeste da cidade do Rio, também por 180 dias.

Agência Brasil questionou a Secretaria de Estado de Saúde sobre os motivos dos dois contratos, assinados em fevereiro e outubro deste ano, terem sido feitos com dispensa de licitação.

A Secretaria de Estado de Saúde (SES-RJ) informa que o contrato licitado em dezembro de 2023 era o único que a empresa tinha vigente com a Fundação Saúde. O laboratório PCS não presta serviço para mais nenhuma unidade da rede estadual”, limitou-se a responder a Secretaria

A Secretaria Municipal de Saúde de Nova Iguaçu, município da Baixada Fluminense onde fica o PCS Labs e onde Doutor Luizinho também já foi secretário, informou que a inspeção anual mais recente realizada por sua vigilância sanitária no laboratório havia sido feita em março deste ano, mas destacou que estabelecimento estava dentro das normas.

MPRJ recomenda que sejam evitadas novas contaminações de  transplantados

Além da Polícia Civil, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ), por meio da 5ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva da Saúde da Capital, expediu, neste domingo (13/10), uma recomendação para que a Secretaria de Estado de Saúde e a Fundação Saúde aprimorem as condutas relativas aos procedimentos de análise das amostras de sangue referentes à Central Estadual de Transplantes (CET), evitando novos casos adversos de infecção de pacientes transplantados.

O MPRJ recomenda que seja expressamente excluído do processo de contratação emergencial de laboratório de análises clínicas e de anatomia patológica o atendimento ao Hemorio e à CET; que todos os exames referentes ao Programa Estadual de Transplantes sejam realizados exclusivamente pelo Hemorio.

Caso haja alguma incapacidade física instalada no Hemorio, para atender ao CET com exclusividade, que então se faça um prévio estudo quanto à necessidade de terceirização. Dessa forma, que seja realizada uma contratação através de processo de licitação.

Em caso de não acolhimento (parcial ou total) da Recomendação, as razões deverão ser encaminhadas por escrito,  podendo implicar a adoção de todas as providências administrativas e judiciais cabíveis contra os responsáveis. Na sexta-feira (11/10), a 5ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva da Saúde da Capital instaurou inquérito civil para apurar as irregularidades noticiadas no programa de transplantes do Estado do Rio de Janeiro.

De acordo com o MP, o inquérito foi aberto a partir de “inúmeras reportagens publicadas na imprensa dando conta de supostas contaminações de seis pacientes transplantados pelo vírus do HIV, a partir de exames falso-negativos de dois doadores, realizados pelo laboratório de Patologia Clínica Doutor Saleme – PCS de Nova Iguaçu/RJ, contratado emergencialmente em dezembro do ano de 2023′.

Entenda o ‘caso sem precedentes’

O laboratório é investigado por ter emitido laudos que diziam que os dois doadores não tinham HIV, quanto na verdade eram positivos para o vírus. Isso levou à infecção por HIV de seis pessoas que receberam os órgãos.

O caso, sem precedentes no Brasil, foi considerado grave pela Secretaria de Estado de Saúde (SES) e pelo Ministério da Saúde. A Polícia Civil e Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) investigam as circunstâncias em que ocorreram as infecções.

A Anvisa, as Vigilâncias Sanitárias estadual e municipal e o Sistema Nacional de Transplantes (SNT) do Ministério da Saúde coordenam uma série de ações para investigar a infecção por HIV de pacientes transplantados no estado do Rio de Janeiro.

O PCS Lab Saleme foi interditado pela Vigilância Sanitária local, com orientação técnica da Anvisa, até a conclusão das investigações, com foco na segurança dos transplantes. Novos exames pré-transplante estão sendo realizados no Hemorio.

O laboratório teve pelo menos três contratos com a Fundação Saúde. A fundação, vinculada à Secretaria Estadual de Saúde, é responsável por gerir as unidades da rede estadual. O laboratório tem, entre seus sócios, familiares do deputado federal Dr. Luizinho (PP-RJ), que foi secretário estadual de Saúde de janeiro a setembro de 2023.

Com informações da Agência Brasil, Gov-RJ e MPRJ

 

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