A vida tem dessas coisas. Irônica e tristemente inexplicáveis. No Carnaval de 2017, enquanto trabalhava, a repórter fotográfica Ana Claudia Fernandes foi atropelada por um carro alegórico gigantesco e desgovernado na Marquês de Sapucaí. Sobreviveu à tragédia que matou uma pessoa e causou sérios ferimentos em outras 18. Forte e guerreira, como era vista por muitos, Cacau Fernandes, infelizmente, não conseguiu resistir ao ‘inimigo invisível’ e letal. Aos 52 anos, morreu nesta terça-feira (13/7) em decorrência de complicações da Covid-19, no Rio de Janeiro.

Cacau, no primeiro dia no hospital: otimismo e esperança no Facebook

Cacau lutou bravamente por 13 longos dias internada na UTI do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (Hospital da UFRJ), na Ilha do Fundão, o mesmo local onde se tratava de duas doenças raras com que convivia silenciosamente há anos. No dia 1/7, ela chegou à unidade com baixa oxigenação e, no dia seguinte, teve que ser intubada. Na UTI, o quadro se agravou e Cacau sofreu uma embolia pulmonar e as funções renais foram comprometidas. No início da manhã desta terça, teve uma parada cardiorrespiratória. A fotógrafa deixa dois filhos, Leonam e Ana Julia, e uma neta, Mariana, e deve ser sepultada nesta quinta-feira (15), em cerimônia restrita a poucos familiares por conta dos protocolos sanitários nos casos de morte por Covid.

Era a segunda vez que Cacau foi infectada pelo novo coronavírus – na primeira, sentiu apenas sintomas leves. Em 15 de junho, ela chegou a tomar a primeira dose da vacina da Pfizer, em um posto de sangue perto de sua casa, em Vargem Pequena, na zona oeste do Rio. Neste vídeo postado em seu Facebook, Cacau vibrava – “nem dormi essa noite” -, agradecendo ao SUS pela oportunidade de ser imunizada. Mas a quantidade de anticorpos ainda não havia sido suficiente para que ela pudesse combater a doença sistêmica, agravada pelas comorbidades.

Sempre alegre e otimista, no dia em que deu entrada no hospital, Cacau postou uma foto em seu Facebook com a seguinte mensagem: “Gente, hoje gostaria de falar sobre nossa Live. Infelizmente ela vai ter que esperar um cadinho. Estou internada com Covid. Precisei de reforço no oxigênio. Mas, não esquecido, tenho obrigação de ficar boa por nós. Por enquanto, se cuidem, pois quando eu ficar boa quero todos assistindo”. No dia seguinte, ainda mantinha o otimismo, apesar da piora:

“Hoje o médico me desanimou um pouco, disse que estou na fase pior do Covid, a minha saturação caiu, mas tô me sentindo bem. (…) Vou tomar um banho, um banho que sei que vai me levantar.” escreveu. E ainda fez um agradecimento: “O que seria de nós se não fossem os verdadeiros amigos? Tássia Di Carvalho não tenho palavras pra descrever o seu carinho!! Muito obrigada por tudo. Obrigada, por cada item que trouxe. Preta, te amo”, comentava sobre a amiga jornalista que acompanhava dia a dia os boletins médicos, por intermédio do filho dela. Foi a última mensagem de Cacau antes de ser intubada.

Cacau Fernandes estava envolvida em diversos projetos culturais e sociais. No dia em que foi internada, teria uma live (Reprodução do Facebook)

Exemplo de coragem e superação

Cacau passou por grandes percalços ao longo da vida, lutou para sobreviver e criar os filhos, realizou-se na profissão que abraçou já na maturidade, mas quando estava ascendendo na carreira de repórter fotográfica, sofreu um duro golpe que mudaria para sempre a sua vida: um carro alegórico “atravessou” a Avenida e interrompeu seus sonhos.

Nascida no subúrbio carioca, Cacau foi camelô, cabeleireira, cozinheira, cuidadora de idosos, apontadora do “jogo do bicho’. Com os filhos já criados, conseguiu concluir a graduação e a pós-graduação pela Estácio com mais de 40 anos. Chegou a ouvir de colegas que deveria desistir da faculdade por não ter o melhor equipamento, nem experiência na área, além da idade, considerada fora do padrão convencional entre os universitários – mais um dos estigmas sociais que teve que enfrentar. Mas Cacau não desistiu e foi tentar estágio em grandes veículos.

Em 2014, ainda na faculdade, foi indicada ao Prêmio Esso, o maior reconhecimento da imprensa nacional. Trabalhou no jornal O Dia por cinco anos e também teve imagens estampadas na Revista Veja e jornais O Estado de São Paulo, Meia Hora e Brasil Econômico. Teve suas imagens publicadas nos anuários “O Melhor do Fotojornalismo Brasileiro” entre 2014 e 2017. Em 2017, ficou entre os 10 finalistas do prêmio Parati em Foco.

O acidente na Sapucaí

Em menos de 10 anos de carreira como fotógrafa, Cacau teve seu trabalho reconhecido e apresentado em várias exposições. Era respeitada por seu olhar atento e sensível, especialmente em coberturas de caráter social. Em fevereiro de 2017, trabalhava pelo jornal O Dia como freelancer quando foi atropelada por um carro alegórico da escola de samba Paraíso de Tuiuti, na Passarela do Samba. No acidente, outras 18 pessoas ficaram feridas, e a radialista Elizabeth Ferreira Joffe, 55, acabou morrendo dias depois.

Por causa do atropelamento, Cacau ficou vários meses sem poder fotografar e, apesar de passar por duas cirurgias nos ligamentos, não conseguiu se recuperar totalmente. Entrou na Justiça para garantir seus direitos. Ganhou. Com a indenização paga pela escola de samba, conseguiu comprar uma casinha no bairro de Vargem Grande. Comprou outra para o filho e um pequeno terreno em Paraty, na região da Costa Verde, onde sonhava em construir uma pousada/bistrô/galeria de artes.

Mas aí veio a pandemia do novo coronavírus e com ela, o agravamento da crise financeira no país e no Rio, em especial. Os trabalhos de fotografia praticamente zeraram. Apesar do enorme talento atrás das lentes e da ampla rede de relacionamentos, Cacau teve que voltar a se reinventar para pagar os boletos: dirigiu Uber, vendeu açaí, fez faxina e bico como paisagista. Não tinha vergonha de assumir qualquer função, honesta e dignamente. Como tantos trabalhadores e empreendedores brasileiros.

Entre as dores e o medo do preconceito

Segundo a jornalista Tássia Di Carvalho, Cacau tinha duas doenças raras e se tratava no setor de Hematologia do Hospital do Fundão. Ela não revelava o tratamento para ninguém, pois tinha medo de sofrer preconceito e não conseguir trabalho, não bastasse os inúmeros que sofrera ao longo da vida. Ela sentia fortes dores, especialmente no braço (sequela do acidente) e nas pernas (decorrente das comorbidades), que a impediam, muitas vezes, de andar normalmente e de fotografar, sua grande paixão.

Mesmo assim, Cacau atuava na agência Domínio Fotográfico e na ONG Favela Mundo; coordenava o projeto Fotógrafo Legal_RJ e fazia parte do coletivo Fotógrafos do Bem, além de participar ativamente como voluntária em vários projetos sociais e culturais e grupos de comunicadores nas redes sociais. Apesar de todas as dificuldades, não abria mão de cumprir o seu papel social e, generosa e solidária, sempre pensava em como ajudar não apenas outros colegas fotógrafos, mas pessoas em situação de vulnerabilidade social em diferentes contextos.

“Ainda assim (sentindo dores) ela indo ajudar a população de Jardim Gramacho! Essa era a minha irmã! A pessoa mais generosa do mundo!”, escreveu Tássia, no post com a foto de uma de suas últimas ações solidárias durante a pandemia, distribuindo alimentos na comunidade no antigo lixão de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Sobre ela, a jornalista desabafou: “Perdi minha irmã! Minha melhor amiga! Companheira de várias pautas, lutas e vitórias!”. E prosseguiu: “Me apoiou, me deu esporro, me abraçou e andou comigo quando os que tem o meu sangue não estiveram! Eu te amo tanto! Fui a última pessoa que vc falou com vida, como pode isso, amor? Te amo! ❤️”, escreveu Tássia.

Cacau Fernandes, de máscara, entregando alimentos no Jardim Gramacho durante a pandemia (Reprodução de internet)

Amigos lamentam a morte de Cacau

A notícia sobre a morte de Cacau Fernandes deixou em choque muitos amigos, familiares e colegas de trabalho que acompanhavam seu estado de saúde nos últimos dias. Liane Varsano, que entrevistou a fotógrafa em recente projeto com a LV Comunicações (veja aqui), comentou:

“Uma amiga para qualquer hora. Batalhadora e guerreira. Conquistou o sonho de fotografar e fazia com o coração. Fotos incríveis que vão além do foco. Aprendi muito com Cacau e foi um prazer conviver com ela. Que seja recebida com festa no céu”.

“Tive o prazer de fazer alguns trabalhos com a Cacau. Sempre otimista e generosa. Conseguiu tudo com muita luta e fé. Sempre pensava em ajudar o próximo, de alguma forma. Vou guardar com muito carinho tudo que aprendi ao observar suas palavras e ações.❤️ O céu está mais iluminado. Cacau é Luz”, escreveu a também jornalista Cida Alves no grupo JornalistasRJ.

Em 2021, até 2 de junho, foram registradas 155 mortes de jornalistas por Covid, num período de 153 dias, representando um aumento de 277% na média mensal de mortes no comparativo com o ano de 2020, segundo dados da Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj). A média de idade com maior incidência é entre 51 e 70 anos (50,4%). 10,8% das vítimas são mulheres, mas a média de idade cai quase 10 anos com relação aos homens.

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