Em julgamento bastante aguardado, nesta quarta-feira (8/6) no Superior Tribunal de Justiça (STJ),rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) — que estabelece cobertura mínima dos planos de saúde — foi considerado taxativo. Isso significa que as operadoras não serão mais obrigadas a arcar com tratamentos, medicamentos ou procedimentos que não estão previstos na lista da agência. Em modulação, a segunda Seção do STJ decidiu ainda que a taxatividade poderá ser superada em algumas situações.

O tema foi muito debatido em meio às discussões sobre os julgamentos de recursos de pacientes de planos de saúde que  tiveram partes da cobertura dos seus tratamentos negadas por não constarem no rol da ANS. Para especialistas, a decisão dificultará a vida dos clientes de planos de saúde. Washington Fonseca, especialista em Direito Médico, Mestre em Direito pela PUC/SP e sócio do Fonseca Moreti Ito Stefano Advogados, avalia que o julgamento foi “absolutamente lamentável”. Segundo ele, os clientes serão os maiores prejudicados.

“Os planos de saúde foram as empresas que mais lucraram na pandemia, principalmente o ano de 2020. Agora, pelo fato de existir a pontualidade nos atendimentos, os planos vão ficar muito mais à vontade e terão a legitimidade de negar tratamentos necessários. Acredito que, com o passar do tempo, essa decisão vai mudar, mas, infelizmente, de maneira imediata, ela vai ser aplicada, aumentando a judicialização”, comentou,

Nycolle Araújo Soares, advogada especialista em Direito Médico e Proteção Jurídica Aplicada a Saúde e sócia do escritório Lara Martins, também avalia que a decisão é passível de recurso e pode chegar ao Supremo Tribunal Federal (STF). Mas lamenta o entendimento do STJ.

“O cenário é predominantemente favorável aos convênios. Para os beneficiários, um verdadeiro retrocesso, já que os planos de saúde poderão rejeitar as coberturas dos procedimentos que não estejam elencados no rol. A decisão é passível de recurso ao STF, mas de todo modo a discussão sobre as coberturas se torna ainda mais difícil para os beneficiários de planos de saúde”, salienta.

Tragédia para a população e mais lucros para os planos

Mérces da Silva Nunes, advogada especialista em Direito Médico, autora de obras sobre o tema e sócia do escritório Silva Nunes, define a decisão como uma “tragédia para a saúde da população brasileira”. Mas, se de um lado os brasileiros perderam, por outro os planos saíram ganhando. “Os lucros dos planos de saúde deverão aumentar vertiginosamente com a limitação das coberturas apenas aos eventos e procedimentos em saúde listados no rol da ANS”, lamenta.

Renata Abalém, advogada especialista em Direito do Consumidor e diretora jurídica do Instituto de Defesa do Consumidor e do Contribuinte, explica que os casos de exceção — aqueles em que se permitirá cobertura não prevista no rol — ainda deverão ser melhor entendidos após a publicação dos votos.

“Na verdade, cogitou-se uma modulação desse rol taxativo, mas nós vamos entender até onde vai essa modulação somente quando forem publicados os votos. A verdade é que as famílias poderão ter cassados os seus direitos adquiridos, muitos inclusive por meio de liminar”, explica.

Entre as famílias que acompanhavam a novela do julgamento do tema no STJ, a situação é dramática, especialmente entre aquelas que têm filhos que dependem de tratamentos para doenças raras, patologias graves, paralisia cerebral e autismo, por exemplo, que não podem ser interrompidos.

Pagamento particular ou sobrecarga no SUS

Nos últimos anos houve uma crescente demanda de processos ajuizados contra os planos de saúde. Com isso, surgiram diversas tentativas de impedir a possibilidade de ingresso com essas ações judiciais. A advogada especialista em Direito da Medicina pela Universidade de Coimbra e especializada em Direito Médico, Odontológico e da Saúde pela USP – Ribeirão Preto, Débora Lubke Carneiro, explica:

“Surgiu um projeto de lei que previa a não aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, o que deixaria os consumidores desamparados nesses casos, autorizava o reajuste de mensalidade dos idosos, e assim por diante. Entretanto, houve uma grande comoção popular e grande objeção das instituições que defendem os consumidores e esse projeto não foi pra frente”.

Com o rol de procedimentos da ANS considerado taxativo, o consumidor terá que realizar o pagamento de forma particular ou, ainda, aguardar a assistência do Sistema Único de Saúde (SUS), o que ensejaria na sobrecarga no atendimento da rede pública, afetando a vida de milhões de brasileiros:

“Caso o entendimento da 4ª Turma se consolide no STJ, consumidores usuários de plano de saúde ficarão à mercê do rol da ANS e não terão acesso aos tratamentos de saúde de qualidade que possuem comprovação científica ou que sejam eficazes ao seu problema de saúde. Essa decisão poderá impactar ainda mais o Sistema Único de Saúde, visto que os pacientes não terão mais direito à continuidade do seu tratamento de saúde especializado pelos planos de saúde causando o aumento da judicialização em face dos entes federativos,” finaliza Débora Lubke.

O que diz o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec)

Em nota, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), que acompanha este debate há anos, e sustenta em memoriais enviados aos ministros do STJ que o Código de Defesa do Consumidor, a Lei de Planos de Saúde e a lei de criação da ANS são uníssonos e complementares na classificação do rol como uma referência básica.

A Lei de Planos de Saúde afirma expressamente que todos os tratamentos das doenças incluídas na CID (Classificação Internacional de Doenças) da OMS (Organização Mundial de Saúde) são de cobertura obrigatória pelas operadoras.

“O terrorismo econômico é o único argumento das operadoras para defender a mudança no caráter do rol. A lista da ANS é interpretada de maneira ampla pela Justiça há mais de 20 anos, e isso nunca significou uma ameaça real para os lucros das empresas – que, aliás, seguem crescendo ano a ano”, explica Ana Carolina Navarrete, coordenadora do Programa de Saúde do Idec.

“Para os consumidores, que são sempre o lado mais vulnerável nessa relação, uma mudança no caráter do rol significaria uma perda imensurável e o risco de não poder acessar um tratamento no momento de maior necessidade. O Idec espera que os ministros levem esse impacto em conta em seus votos”, completa.

Histórico

Criado para servir como base dos serviços que devem ser prestados pelos convênios médicos, o rol da ANS está previsto da Lei 9.656/98 — considerada um avanço quando publicada, há 24 anos. O rol descreve os eventos mínimos que os planos de saúde devem cobrir na contratação de serviços por seus usuários.

Até o entendimento do STJ, inúmeras decisões mostravam a tendência da jurisprudência majoritária, que entendia que o rol de procedimentos da ANS é exemplificativo e que as operadoras devem disponibilizar o tratamento necessário para a cura ou controle das doenças. Embora houvesse uma pequena corrente na Quarta Turma do ST J, que entendia ser o rol taxativo, a maioria dos magistrados seguia o entendimento unânime da Terceira Turma do STJ, de que o Rol da ANS é exemplificativo.

Esse entendimento majoritário levou, inclusive, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo — o maior do país — a editar a Súmula 102, que diz: “Havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS”.

Em dezembro de 2019 a 4ª Turma do STJ, ao julgar um caso envolvendo o direito de uma paciente a uma cirurgia que utilizava técnica não listada no rol da ANS, abriu a oportunidade para que alguns planos de saúde, entidades de defesa dos consumidores se habilitassem como Amicus Curiae (amigo da Corte) e colaborassem com informações sobre o assunto em debate.

“Na época, a 4ª Turma proferiu uma decisão entendendo que o rol da ANS é taxativo e, portanto, os planos de saúde não possuem qualquer obrigatoriedade de fornecer procedimentos que ali não estejam alistados. Vale ressaltar que a decisão não possui caráter vinculativo, ou seja, ela não se aplica a todos os casos de maneira geral. Apenas representa o entendimento de uma única Turma do STJ”, comentou Dra Débora.

Segundo ela, a 3ª Turma da mesma Corte não compartilha do mesmo entendimento e continua proferindo decisões que garantem o direito dos pacientes, e proíbe essa conduta abusiva por parte dos planos de saúde. “Por ora, isso significa que uma ação judicial que é distribuída na 4ª Turma terá uma decisão negativa ao paciente, e seu tratamento será imediatamente interrompido”.

Ela explica que um processo distribuído à 3ª Turma tem tido uma decisão favorável ao paciente e esse permanecerá recebendo o tratamento pelo plano de saúde. “Da decisão de qualquer uma das duas turmas, cabe o Embargos de Divergência que é julgado pela 2ª Seção do STJ (que abrange a Terceira e a Quarta Turma do STJ) com o intuito de uniformizar o entendimento acerca do assunto.”

A divergência entre as turmas do STJ, no entanto, levou os magistrados a se debruçarem sobre o tema, em ação que culminou no resultado deste 8 de junho de 2022.

Leia mais

Rol taxativo da ANS: mães apelam para não interrupção de tratamentos
‘Tem plano de saúde que enfia a faca em você e tira o sangue dos médicos’
Quando é a hora de trocar de plano de saúde?
Shares:

Posts Relacionados

4 Comments

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *