Em uma crise de sonambulismo, Hawanna Cruz Ribeiro caiu do terceiro andar do apartamento em que vivia quando tinha 19 anos e ficou tetraplégica. Enfrentou uma longa recuperação marcada por cirurgias, coma, complicações e negligências hospitalares. Hoje, aos 27 anos, transformou superação em conquista: é atleta paralímpica de Rugby em Cadeira de Rodas, representando a Seleção Brasileira.
Já Bruno Drummond de Freitas (foto abaixo) fraturou a coluna vertebral na altura do pescoço em um acidente de trânsito em abril de 2018, quando tinha 23 anos. Ele imediatamente perdeu completamente a sensibilidade e o controle motor dos braços e das pernas. O prognóstico original era de tetraplegia permanente. Hoje aos 31 anos leva uma vida normal, sobe escadas sem auxílio e faz esportes, onde até pula cordas.
Milagres? Não exatamente. Ambos receberam um tratamento que promete revolucionar a Medicina. A Polilaminina, desenvolvida de forma inédita no Brasil, a partir de uma pesquisa realizada dentro da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), representa uma esperança real para restauração de lesões medulares recém-ocorridas, possibilitando a recuperação total ou parcial dos movimentos.
A pesquisa foi iniciada há quase 30 anos pela bióloga Tatiana Sampaio, chefe do Laboratório de Biologia da Matriz Extracelular do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB/UFRJ). A pesquisadora reforça: “Todos os nossos testes comprovam a segurança da Polilamininapara uso humano.” A próxima fase contará ainda com a parceria do Hospital das Clínicas da USP para as cirurgias e da AACD para o tratamento da reabilitação.
Na fase experimental, 10 pacientes foram tratados com o medicamento – incluindo um homem de 33 anos que perdeu os movimentos após uma lesão por arma de fogo. Todos foram diagnosticados com lesão AIS A e consentiram o tratamento, assim como a equipe médica que os assistia. Segundo o Cristália, laboratório farmacêutico, farmoquímico e de biotecnologia de capital 100% brasileiro -, os casos comprovam a eficácia e segurança do produto.
Apenas uma dose da medicação extraída da placenta humana
A polilaminina é produzida naturalmente pelo corpo no desenvolvimento do sistema nervoso e, conforme descoberto pela equipe da UFRJ, pode ser obtida da placenta humana. “É uma alternativa mais acessível e segura do que as células-tronco. Nossos estudos estão em estágio mais avançado, pois as células-tronco possuem imprevisibilidade após a aplicação”, explica a Dra. Tatiana.
A polilaminina é uma proteína capaz de regenerar as células da medula, devolvendo parcial ou totalmente a mobilidade. Os efeitos mais expressivos são observados quando a aplicação ocorre em até 24 horas após o trauma, mas há benefícios também em lesões antigas. O tratamento exige apenas uma dose, seguida de fisioterapia para reabilitação“, explica o laboratório que aposta na novidade.
O Cristália aguarda agora autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para iniciar a fase 1 dos estudos, que envolverá mais 5 pacientes, etapa necessária para que o tratamento esteja disponível nos hospitais brasileiros. Ao anunciar a inovação inédita no mundo, a empresa diz já estar pronta para produção em escala comercial.
Para Ogari Pacheco, presidente do Conselho e fundador do Cristália, produzir a Polilamininae disponibilizá-la para hospitais brasileiros colocará o País na vanguarda da medicina. “É não só uma conquista científica nacional, mas também a realização de um sonho para médicos como eu, que já testemunharam o sofrimento de pacientes com lesão medular.”
O risco das lesões medulares
Da medula espinhal saem os nervos que se estendem até outras partes do corpo, como pernas, braços e pés. A medula é capaz de enviar comandos e informações do cérebro ao restante do corpo, e também é por essa via que os sinais sensoriais vindos de todas as partes do corpo chegam até o cérebro.
Uma lesão na medula espinhal pode fazer com que a comunicação entre cérebro e corpo seja interrompida. Elas podem ser traumáticas ou não e provocar desde perda de sensibilidade até limitações severas como paraplegia (perda dos membros inferiores) ou tetraplegia (comprometimento dos movimentos do pescoço para baixo), dependendo da região da medula afetada.
Essas lesões são frequentemente causadas por acidentes de trânsito, quedas, mergulhos ou até mesmo violência. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde, entre 250 mil e 500 mil pessoas no mundo sofrem lesão medular a cada ano. Algumas perdem os movimentos de forma irreversível e nunca mais voltariam a andar.
Essas pessoas são aquelas que, infelizmente, recebem os primeiros dias após o acidente diagnóstico de lesão neurológica completa, tecnicamente conhecida como AIS, em uma escala que vai de A (lesão mais grave) a E (menor gravidade, com pouca repercussão clínica). As lesões diagnosticadas como Nível A são associadas à paralisia permanente, condição até então sem tratamento medicamentoso efetivo.
A Polilamininasurge como alternativa promissora para reverter esse cenário. A pesquisadora explica que a polilaminina é uma alternativa ao uso das células-tronco, principalmente pela sua facilidade de manipulação em relação à retirada de células-tronco. “Estamos apenas imitando a natureza, pois a proteína é produzida pelo organismo naturalmente no processo de desenvolvimento do sistema nervoso”, explica Tatiana.
Segundo ela, o tratamento com a laminina é uma opção mais barata, fácil e segura e está mais avançado do que a terapia com células-tronco, que possuem maior complexidade pela dificuldade de se prever seu comportamento após a injeção.
As lesões crônicas desenvolvem uma cicatriz que impedem a polilaminina de atuar, o que exige a associação de alguma droga que possa atuar nessa barreira”, explica a pesquisadora. Segundo ela, a recuperação da mobilidade pode ser parcial ou total, dependendo do grau da lesão.
Bruno e Hawanna receberam uma única dose da medicação
Os testes iniciais foram restritos a um número reduzido de pacientes recém-lesionados (de 24 horas a três dias do acidente) dos hospitais Azevedo Lima, em Niterói, e Souza Aguiar, no Rio, que receberam uma única dose do medicamento.
No caso de Bruno, o tratamento com Polilaminina foi realizado 24 horas depois do acidente. Com o passar do tempo e com tratamento fisioterápico, o paciente foi paulatinamente recuperando as funções motoras.
Cerca de um ano após o acidente e a aplicação da Polilaminina, o paciente voltou ao hospital no qual havia realizado o exame de ressonância magnética logo depois do acidente. A médica se surpreende ao vê-lo andando normalmente e esse paciente teve uma evolução considerada absolutamente surpreendente.
Lutando por independência, Hawanna dedicou-se à fisioterapia em instituições públicas e privadas, recuperando parcialmente os movimentos dos braços. Em 2020, participou de pesquisa experimental com Polilaminina, que trouxe importantes melhoras físicas e funcionais.
Apesar das limitações impostas pela falta de recursos para fisioterapia intensiva, ela conquistou autonomia suficiente para realizar tarefas diárias, como tocar sozinha sua cadeira de passeio, alimentar-se e realizar outras tarefas cotidianas.
Pesquisa começou em 2007
O projeto iniciou-se em 2007 com a equipe liderada pela bióloga Tatiana Coelho Sampaio, do Instituto de Ciências Biomédicas. Fazem parte da equipe o pesquisador João Menezes e a ex-aluna de doutorado Karla Menezes, que oito meses antes da formatura em Biologia sofreu um acidente e fraturou três vértebras e, por isso, tinha um interesse pessoal no estudo.
A equipe sintetizou a polilaminina a partir da estrutura original da laminina, uma proteína produzida pelo organismo para auxiliar na formação e regeneração do sistema nervoso. Para serem eficazes no tratamento, as moléculas precisam estar polimerizadas, como acontece na natureza. No laboratório, os pesquisadores desenvolveram uma técnica fácil e barata de repolimerização da laminina.
‘Mudei de área várias vezes para manter minha meta’
Tatiana Sampaio: para a bióloga, a terapia apenas imita a natureza
Tatiana conta que iniciou a carreira trilhando o caminho acadêmico tradicional, com foco na pesquisa básica e publicação de artigos científicos. Ao longo do caminho, cheio de percalços, a bióloga firmou seu propósito de tornar a pesquisa aplicável.
Não foi fácil. Mudei de área várias vezes para manter minha meta. Trilhei um caminho raro na pesquisa – o translacional -, no qual os acontecimentos, às vezes inesperados, foram me levando para diferentes caminhos e me obrigando a lidar com públicos diversos”, explica a pesquisadora.
Ela iniciou suas pesquisas estudando proteínas, depois células cultivadas, passando pelos estudos pré-clínicos em animais, os testes clínicos em humanos até despertar o interesse de empresas.
A entrada da Cristália é muito importante porque eles têm acesso a insumos que no ambiente acadêmico não temos”, esclarece Tatiana. “No Brasil existem pouquíssimos laboratórios autorizados a produzir células-tronco para uso humano, e eles dificilmente conseguiriam atender à demanda”, avalia a bióloga.
Projeto já custou R$ 28 milhões e depende de doações
Imagens de neurônios (em verde) onde a polilaminina não está marcada e de neurônios (em vermelho) com a polilaminina (em verde)
A tecnologia com utilização da polilaminina chamou a atenção da empresa brasileira Cristália, localizada em Itapira (SP). A partir de 2018, a empresa farmacêutica passou a arcar com os custos da continuidade dos estudos, agora focados na reversão de lesões crônicas e no desenvolvimento do produto.
A pesquisa contou com apoio da Faperj durante a fase do estudo clínico, realizado em meados dos anos 2000, cujo seguro – exigido pelaComissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) – consumiu praticamente a totalidade dos cerca de R$ 100 mil do auxílio.
Em 2021, formalizou-se a parceria com a UFRJ. Inicialmente, foi firmado contrato de R$ 3 milhões, com intermediação da Fundação Universitária José Bonifácio, entidade que gerencia os recursos financeiros advindos de contratos entre a UFRJ e empresas.
Acredito que a farmacêutica tenha se interessado pela cooperação porque um estudo clínico piloto – o maior gargalo nestes casos – já havia sido feito”, explica a pesquisadora.
Até o momento, cerca de R$ 28 milhões foram investidos em pesquisa e infraestrutura na planta de Biotecnologia do Cristália em Itapira, na qual o produto é fabricado. Para viabilizar esse projeto científico inovador, o Cristália firmou parcerias com a Santa Casa e o Hospital Municipal de Itapira para coleta voluntária de placentas. A escolha da cidade se deve ao fato de abrigar o complexo industrial e de inovação do laboratório, onde a Polilamininaé produzida.
As doações atuais suprem nossa demanda, mas será necessário expandir a base de coleta com o aumento da produção”, afirma Rogério Almeida, vice-presidente de P&D do Cristália.
Além dos recursos financeiros, o Cristália colaborou cientificamente com a equipe da UFRJ.
Demonstramos, por meio de evidências robustas, que o produto cumpre os requisitos para ser considerado medicamento e oferecer uma alternativa viável para quem não possui outras opções de tratamento. Fornecemos ainda o produto fabricado para a continuidade dos estudos em novas aplicações”, destaca Almeida.
Com informações da Cristália e Faperj