Com mais de 40 milhões de casos confirmados, sendo mais de 180 mil mortos somente no Brasil, a pandemia da Covid-19 mudou as relações e a maneira de ver o mundo. Mas, além do medo e da ansiedade, a doença jogou luz em questões que estavam nas sombras, avalia a psicanalista Sandra Edler, autora do livro “Tempos compulsivos”.

“Muitos ganharam uma pausa para sair das atividades automáticas e refletir sobre suas questões. Tanto assim que, de maneira geral, cresceu a demanda por análise. Há mais pessoas interessadas em cuidar de si”, diz.

Apesar do aumento de casos de excesso de consumo de bebidas alcoólicas e drogas como válvulas de escape para as angústias trazidas pelo novo coronavírus, as restrições impostas pelo isolamento vêm reafirmar a importância do agora:

“A pandemia reforçou a ideia de que a vida pode ser vista como uma travessia. Ela se dá no durante, nem no início nem no fim”.

Sandra Edler analisa alterações psíquicas provocadas pelo momento atual. Confira:

A pandemia de Covid-19 e seus efeitos imediatos, como o isolamento social e o home office, deixaram a humanidade mais tensa, ansiosa e triste. Esse processo é reversível ou estamos condenados a viver sob nuvens carregadas?

O isolamento social, as perdas e as restrições impostas pelo novo contexto pandêmico ampliaram depressões, angústias, crises de pânico, insegurança e medo. Estamos diante de um vírus desconhecido, sem conhecimento de seu comportamento, duração e consequências. E ainda temos muitas perguntas sem respostas e sem uma definição clara do amanhã.

Mas quanto ao isolamento, se por um lado suprimiu artifícios, por outro potencializou a criatividade e logo começou um movimento de tentativa de adaptação. As famílias se aproximaram, muitas mães voltaram a estudar com os filhos. Houve avanço para muitas pessoas. No entanto, somos seres em conflito e a pandemia trouxe novos problemas e reacendeu antigos.

Há quem acredite que este momento é fundamental para nos conhecermos melhor, encarar o que a falta de tempo do cotidiano não nos deixava ver. O que há de verdade e de importante nisso?

Para nós psicanalistas, nunca nos conheceremos completamente porque não dispomos apenas da consciência. Temos uma dimensão inconsciente que vai se revelando por sonhos, sintomas, atos falhos, equívocos… E que, vez por outra, nos surpreende. Mas não há dúvida de que muitos ganharam com a pandemia uma pausa para sair das atividades automáticas e em série, e refletir sobre suas questões. Tanto assim que, de maneira geral, cresceu a demanda por análise e a clínica on-line mostrou-se promissora. Há muitas pessoas interessadas em cuidar de si. Nesse sentido, é uma excelente oportunidade.

Inúmeras pessoas reforçaram o uso de bebidas alcoólicas, remédios e cigarros como válvula de escape para os atuais tempos sombrios. Isso é, de fato, compreensível, e se justifica?

Existem pessoas que, privadas de seus escapes habituais, e, com mais tempo em casa, ampliaram o uso de álcool e substâncias como válvula de escape. Sem esquecer o tempo de permanência na internet. Cresceu muito o número de compulsivos digitais com lamentáveis consequências. Toda compulsão preocupa porque tolhe ainda mais a já restrita liberdade do sujeito. Além disso, o uso de substâncias tóxicas, a ingestão excessiva de alimentos e outros, podem ocasionar prejuízos ao organismo como um todo.

As compulsões podem começar na busca pelo prazer ou como uma forma de “automedicação”, compensando incômodos da vida, amortecendo preocupações, como disse Freud, encobrindo depressões e angústia, por exemplo. Mas o que foi inicialmente a busca pelo prazer ou algo ocasional pode tornar-se necessário para continuar a viver. E enreda o sujeito nesse “ritual íntimo” a ponto de paralisá-lo para outras atividades e deixa-lo refém. Detalho isso no livro “Tempos Compulsivos”, inclusive através de relatos de dependentes e outros que passaram por isso e agora estão sob controle.

Com a Covid-19 e a falta de prazo para a distribuição da vacina a nível global, vivemos um longo período de incertezas. A vida é risco, mas nunca foi tão arriscado viver. Como sobreviver a isso?

Sim, vivemos um período de incertezas e a vida implica risco permanente. Mas estamos sempre querendo chegar a algum lugar. Envolvidos em múltiplas atividades, focados em chegadas e partidas, em busca de algo e querendo atingir um porto seguro.

A pandemia, o isolamento e as restrições vieram revelar um outro lado. O de que a vida pode ser vista também como uma travessia, mais curta, mais longa, mas dentro da ideia de que a vida se dá no “durante”. Nem no início nem no fim do túnel, mas na própria travessia. É compreensível e humano querer chegar ao fim desse longo túnel, mas temos que viver essa e muitas outras travessias, veredas, estradas vicinais. Não por acaso, tantas pessoas se põem a caminhar em longas trilhas de peregrinação…

Futuristas dizem que a pandemia funciona como um acelerador do tempo e que ela antecipa mudanças que já estavam em curso, como o trabalho remoto e a educação à distância. Isso, do ponto de vista prático. Mas o que realmente importa, é: quando tudo passar, como estaremos, quem seremos?

Acredito que a ampliação do território digital, da ação dos algoritmos, do ensino on-line, do domínio da tecnologia se mantenham em expansão, mas temo pelo fator humano, presencial, cujo decréscimo traz consequências muito danosas. Inútil vermos apenas pelo lado econômico de redução de custos, por exemplo. Ou deslumbrar-se com a sedução da tecnologia.

Se não mantivermos a presença humana, social, o estímulo da presença do outro como laço e como referência, o que será de nossa vida emocional e de nossa humanização? Devemos legar ao algoritmo, à inteligência artificial, a possibilidade de decidir, de escolher por nós? Vamos abrir mão de nossa capacidade crítica? Vamos consentir em fazer parte do imenso rebanho de domesticados por uma ferramenta que criamos? À mercê de interesses econômicos?

Então, para concluir, destaco a ideia de que a pandemia trouxe um foco de luz para muita coisa que não víamos em nossas vidas, em nossa intimidade, nos hábitos que cultivamos, na forma de educar os filhos, na escolha dos caminhos. A grande trilha das questões existenciais e humanas está em foco agora, mais do que nunca! E a viagem apenas começando…

No livro “Tempos compulsivos”, publicado em 2017, mostro um estudo sobre as compulsões. Tanto as ligadas a alimentos, álcool e/ou substâncias, quanto aos hábitos que se tornam repetitivos. Elas estavam em crescimento e algumas aumentaram com o isolamento social. A pandemia nos legou um olhar mais apurado. Precisamos revê-las, no conjunto da nossa intimidade, sob esse novo olhar.

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