Seis pessoas foram infectadas e uma delas morreu após receber órgãos transplantados que estavam contaminados pelo vírus HIV – causador da Aids – de dois doadores no Estado do Rio de Janeiro. Inédito no Brasil, considerado modelo no mundo em transplantes de órgãos, o caso é investigado pela Polícia Federal, Polícia Civil e Ministério Público. A situação coloca em xeque o sistema de doação e transplante de órgãos no estado, que, segundo o Governo do Estado, já salvou mais de 16 mil vidas desde 2006.
A contaminação foi confirmada pela Secretaria de Estado de Saúde (SES-RJ), que abriu sindicância para investigar e punir os responsáveis pelos exames com resultados falso-negativos, realizados no Laboratório de Patologia Clínica Doutor Saleme – PCS, de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, contratado pelo Governo do Estado. O prazo para conclusão dos trabalhos é de 30 dias.
Responsável pelos testes para certificar a saúde dos órgãos doados, o laboratório privado foi contratado em dezembro de 2023 pela Fundação Saúde, sob a responsabilidade da SES, para atendimento ao programa de transplantes no estado, em um processo de licitação emergencial no valor de R$ 11 milhões.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) descobriu ainda que o PCS não tinha kits para realização dos exames de sangue nem apresentou documentos comprovando a compra dos itens, o que levantou a suspeita de que os testes podem não ter sido feitos e que os resultados tenham sido forjados.
Esta é uma situação sem precedentes. O serviço de transplantes no Estado do Rio de Janeiro sempre realizou um trabalho de excelência e, desde 2006, salvou as vidas de mais de 16 mil pessoas”, reafirmou a secretária estadual de Claudia Mello, em entrevista à Band News FM, emissora que fez a denúncia na quinta-feira (10).
Laboratório é dirigido por parentes de ex-secretário de Saúde
O PCS Lab Saleme foi interditado pela Coordenadoria Estadual de Transplantes e a Vigilância Sanitária Estadual e o caso é investigado pela Delegacia do Consumidor (Decon) da Polícia Civil. O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ), por meio da 5ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva da Saúde da Capital, instaurou um inquérito civil para investigar o caso.
Diante de notícias de que o PCS Lab Saleme é de parentes do ex-secretário estadual de Saúde, Luiz Antônio de Souza Teixeira Júnior, o Doutor Luizinho, deputado federal pelo PP, o Ministério Público estadual informou que irá investigar a contratação do laboratório, encaminhando o caso para os promotores de Justiça de Cidadania.
Matheus Sales Teixeira Bandoli Vieira, que é sócio-diretor da empresa e assinou contratos com o governo, é primo de Doutor Luizinho. Já Walter Vieira, outro sócio do laboratório, é casado com a tia do político. Desde janeiro de 2023, o laboratório recebeu mais de R$ 20 milhões do Governo do Rio, segundo dados do Portal da Transparência. Em períodos eleitorais, Matheus faz campanha para o primo nas redes sociais.
A investigação abarcará a análise do dano pelo serviço não prestado adequadamente e possíveis irregularidades na licitação, em decorrência dos vínculos mencionados”, disse o MP, em nota. O órgão instaurou, nesta sexta-feira (11/10), inquérito civil para apurar as irregularidades noticiadas no Programa de Transplantes do Estado.
Ex-secretário de Saúde lamenta e nega favorecimento
Natural de Nova Iguaçu, Dr. Luizinho foi secretário de Estado de Saúde entre fevereiro e setembro de 2023. Filiado ao PP, exerce atualmente o segundo mandato como deputado federal. O PCS Lab foi contratado no mesmo ano em que Dr. Luizinho dirigia a pasta, após a sua saída do cargo, em dezembro de 2023. O PCS Lab teve o serviço suspenso logo após a ciência do caso e foi interditado cautelarmente, de acordo com a própria SES. Com isso, os exames passaram a ser realizados pelo Hemorio.
Em nota, o deputado federal Dr. Luizinho diz que lamenta profundamente a situação gravíssima e inaceitável envolvendo o sistema estadual de transplantes do Rio de Janeiro. Ele afirma ainda que conhece o laboratório Saleme “há mais de 30 anos, que foi dirigido pelo Dr. Montano e posteriormente por seu filho Dr. Valter Viera e suas irmãs. E esclarece que Valter é casado com a irmã de sua mãe”. O deputado diz ainda que não participou da escolha do laboratório.
“Quando foi secretário de estado de Saúde, Dr. Luizinho manteve a equipe do Programa Estadual de Transplantes da gestão anterior e jamais participou da escolha deste ou de qualquer laboratório. A contratação, ocorrida em dezembro de 2023, quando ele não era mais secretário, partiu de uma concorrência pública realizada pela Fundação Saúde, que tem gestão administrativa independente, na modalidade de pregão eletrônico, sujeita ao crivo dos órgãos de controle”, diz a nota.
O deputado defende ainda que “uma apuração rigorosa do caso deve ser feita com identificação e punição dos responsáveis, independente de quem for”.
Governador assume responsabilidade
Diante da enorme repercussão do caso, nacional e internacionalmente, na noite desta sexta-feira, o governador Claudio Castro também veio a público para assumir a responsabilidade sobre o caso. “O Estado tem o dever de assumir sua responsabilidade no caso. Reitero meu compromisso em preservar a segurança do sistema estadual de transplantes, que já salvou as vidas de mais de 16 mil pessoas”, disse, em nota distribuída à imprensa.
Aliado político de Doutor Luizinho, Castro não fez qualquer menção à ligação familiar do ex-secretário de Saúde aos donos do laboratório. De acordo com o texto, o governador afirma que esta “é uma situação inadmissível e sem precedentes a falha no serviço de transplantes no estado” e garante que determinou “total rigor e celeridade nas investigações”. Além das sindicâncias em andamento na Secretaria de Saúde e na Fundação Saúde, a Polícia Civil já abriu inquérito para chegar aos responsáveis.
Desde o início, tomamos todas as medidas necessárias e vamos até o fim para que este erro jamais se repita. Quero assegurar apoio irrestrito aos transplantados afetados”, disse o governador, na nota.
Hemorio faz a retestagem de 283 doadores de órgãos
A primeira ação tomada pela SES foi de transferir todos os exames de sorologia dos doadores desse laboratório para o Hemorio, o principal hemocentro da saúde estadual, desde o dia 13 de setembro. A unidade realiza a retestagem do material armazenado de 286 doadores de órgãos do estado entre os meses de dezembro de 2022 e setembro de 2023 pelo laboratório.
Os pacientes contaminados após transplantes de órgãos serão atendidos pelo Hospital Estadual Pedro Ernesto (HUPE), em Vila Isabel. Todo o sistema de transplantes do país foi comunicado. Também foi criado um email, com funcionamento 24 horas por dia, para esclarecer a população: notifica@saude.rj.gov.br.
Segundo o órgão, o procedimento está sob sigilo. O MPRJ informou, ainda, que se colocou à disposição para ouvir as famílias afetadas, receber denúncias de quem se sentir lesado e prestar atendimento individualizado às partes envolvidas.
MPRJ apura se laboratório é de parentes do ex-secretário de Saúde
O MP-RJ informou que a SES terá que enviar, no prazo de 15 dias, a cópia do laudo de inspeção da Vigilância Estadual de Saúde no PCS, que teve suas atividades suspensas, bem como das sindicâncias instauradas a partir das notificações dos eventos adversos de contaminação dos transplantados, devido a resultados falso-positivos emitidos pelo laboratório. A Anvisa também deverá fornecer ao MP, no prazo de 15 dias, a cópia do laudo de vistoria no laboratório.
O inquérito civil foi instaurado considerando a política pública de saúde que compete ao Ministério Público, e que é de competência da 5ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva da Saúde da Capital o acompanhamento integral das áreas temáticas de terapia renal substitutiva e transplantes, de acordo com a Resolução GPGJ nº 2091 de 31 de janeiro de 2017.
O MPRJ ressalta que o procedimento está sob sigilo, em razão do envolvimento de dados sensíveis dos pacientes. E que está à disposição para ouvir as famílias afetadas, receber denúncias de quem se sentir lesado e prestar atendimento individualizado às partes envolvidas. As denúncias podem ser encaminhadas à Ouvidoria por Formulário (https://www.mprj.mp.br/
Laboratório diz que abriu sindicância
O laboratório também divulgou nota nesta sexta afirmando que abriu sindicância interna para apurar as responsabilidades do caso envolvendo diagnósticos de HIV em pacientes transplantados e assegurou que se trata de um episódio “sem precedentes na história da empresa, que atua no mercado desde 1969”.
O laboratório diz ainda que informou à Central Estadual de Transplantes os resultados de todos os exames de HIV realizados em amostras de sangue de doadores de órgãos entre 1º de dezembro de 2023 e 12 de setembro de 2024, período em que prestou serviços à Fundação de Saúde do Governo do Estado.
Nesses procedimentos, foram utilizados os kits de diagnóstico recomendados pelo Ministério da Saúde e pela Anvisa.
O PCS Lab dará suporte médico e psicológico aos pacientes infectados com HIV e seus familiares; e reitera que está à disposição das autoridades policiais, sanitárias e de classe que investigam o caso”, diz o laboratório.
Ministério da Saúde dará assistência aos pacientes infectados por HIV
O caso foi considerado grave pelo Ministério da Saúde, que comprometeu-se a prestar toda assistência aos pacientes infectados por HIV e seus familiares por conta de transplantes realizados no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) no Rio de Janeiro.
Prestaremos toda a assistência a essas pessoas e a seus familiares”, disse a ministra da Saúde Nisia Trindade. “[Estou] trabalhando junto à equipe do Ministério da Saúde para todas as providências necessárias frente à grave situação adversa no estado do Rio de Janeiro envolvendo transplantes de órgãos”, garantiu a ministra em vídeo.
O Ministério também garantiu que será instalada uma auditoria urgente pelo Departamento Nacional de Auditoria do Sistema Único de Saúde no sistema de transplante do Rio de Janeiro para a apuração de eventuais irregularidades na contratação do referido laboratório.
Diante da situação, o Ministério da Saúde solicitou a interdição cautelar do Laboratório PCS Saleme/RJ, cuja unidade operacional fica no Instituto Estadual de Cardiologia Aloysio de Castro. A pasta determinou ainda que a testagem de todos os doadores de órgãos no estado volte a ser feita exclusivamente pelo Hemorio, utilizando o teste NAT, que é produzido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Além disso, a pasta ordenou a retestagem do material de todos os doadores de órgãos feitas pelo Laboratório PCS Saleme, a fim de identificar possíveis novos casos falso-positivos.
Segurança do Sistema Nacional de Transplantes
Em nota, o Ministério da Saúde reafirmou o compromisso de garantir a segurança, a efetividade e a qualidade do Sistema Nacional de Transplantes (SNT) no Brasil, reconhecido como um dos mais transparentes, seguros e consolidados do mundo.
Existem normas rigorosas que visam proteger tanto os doadores quanto os receptores, garantindo que os transplantes realizados no país mantenham um alto nível de confiabilidade”, diz a pasta.
O SNT possui, segundo o Ministério, dispositivos regulatórios que já preveem protocolos específicos para a redução de riscos, como a transmissão de doenças infecciosas, e está em constante atualização para acompanhar os avanços médicos e científicos nessa área.
O Sistema Nacional de Transplantes é garantido a toda a população por meio do SUS e é responsável pelo financiamento de cerca de 88% dos transplantes no país, de acordo com dados do Ministério da Saúde.
O Conselho Regional de Medicina do Rio (Cremerj) disse, também em nota, que considera a situação gravíssima e que instaurou sindicância, nesta sexta-feira (11), para apurar as denúncias.
A situação é gravíssima e o Cremerj reafirma seu compromisso de apurar os fatos com todo o rigor. A segurança dos pacientes é fundamental para garantir o bom exercício da medicina no estado do Rio de Janeiro e supostas falhas desse tipo são inaceitáveis”, disse na nota o presidente do Cremerj, Walter Palis.
Entenda como os casos foram descobertos
O caso é sem precedentes no país. Até o momento, dois doadores e seis receptores tiveram teste positivo para HIV. As infecções ocorreram após a realização de testes pelo laboratório privado PCS, que não acusaram a presença do vírus nos órgãos.
A situação foi descoberta no último dia 13 de setembro, quando um paciente transplantado foi ao hospital com sintomas neurológicos e teve o resultado para HIV positivo: ele não tinha o vírus antes. Esse paciente recebeu um coração no fim de janeiro. A partir daí, as autoridades refizeram todo o processo e chegaram a dois exames feitos pelo PCS Lab Saleme.
A primeira coleta foi feita no dia 23 de janeiro deste ano: foram doados os rins, o fígado, o coração e a córnea, e todos, segundo o laboratório, deram não reagentes para HIV. Sempre que um órgão é doado, uma amostra é guardada. A SES-RJ, então, fez uma contraprova do material e identificou o HIV.
Em paralelo, a pasta rastreou os demais receptores e confirmou que as pessoas que receberam um rim cada também deram positivo para o HIV. A que recebeu a córnea, que não é tão vascularizada, deu negativo. A que recebeu o fígado morreu pouco depois do transplante, mas o quadro dela já era grave, e a morte não teria relação com o HIV.
No dia 3 de outubro, mais um transplantado também apresentou sintomas neurológicos e testou positivo para HIV. Essa pessoa também não tinha o vírus antes da cirurgia. Cruzando os dados, chegaram a outro exame errado, o de uma doadora no dia 25 de maio deste ano.
Nota da SES-RJ na íntegra
“A Secretaria de Estado de Saúde (SES) considera o caso inadmissível. Uma comissão multidisciplinar foi criada para acolher os pacientes afetados e, imediatamente, foram tomadas medidas para garantir a segurança dos transplantados.
O laboratório privado, contratado por licitação pela Fundação Saúde para atender o programa de transplantes, teve o serviço suspenso logo após a ciência do caso e foi interditado cautelarmente. Com isso, os exames passaram a ser realizados pelo Hemorio.
A Secretaria está realizando um rastreio com a reavaliação de todas as amostras de sangue armazenadas dos doadores, a partir de dezembro de 2023, data da contratação do laboratório.
Uma sindicância foi instaurada para identificar e punir os responsáveis. Por necessidade de preservação das identidades dos doadores e transplantados, bem como do encaminhamento da sindicância, não serão divulgados detalhes das circunstâncias.
Esta é uma situação sem precedentes. O serviço de transplantes no Estado do Rio de Janeiro sempre realizou um trabalho de excelência e, desde 2006, salvou as vidas de mais de 16 mil pessoas.”
Confira a nota do ex-secretário de Saúde, Doutor Luizinho
Conheço o Laboratório Saleme há mais de 30 anos, dirigido pelo Dr. Montano e posteriormente por seu Filho Dr Walter Viera (casado com a irmã da minha mãe Ana Paula) e suas irmãs. Lamento veementemente o ocorrido, desejando ao fim das investigações punição exemplar para os responsáveis por esses gravíssimos casos de contaminação.
Enquanto Secretário de Estado de Saúde , mantive a mesma equipe do Programa Estadual de Transplantes da gestão anterior e jamais participei da contratação deste ou de qualquer outro Laboratório.
É muito triste como um dos maiores defensores dos iransplantes no País, cuja minha vida pública está marcada pela ampliação do número de transplantes no Estado, ver casos graves como esse! Espero punição aos responsáveis, independente de quem for.”
Confira a nota do governador Claudio Castro
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