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Imagem meramente ilustrativa (Reprodução de Internet)

X. (o nome real será preservado, em respeito à família e amigos) era um jovem do subúrbio do Rio de Janeiro como outro qualquer. Tinha sonhos, planos e metas. Uma família feliz e estruturada: morava com a mãe e dois irmãos num apartamento de classe média, num bairro da Zona Oeste carioca. Tinha uma namorada linda e parceira, sempre do seu lado. Aos 22 anos, estava matriculado para ingressar na faculdade de Engenharia Civil. Sua vida não seria diferente da de muitos outros rapazes, não fosse a terrível depressão, que sempre estava ali, o atormentando.

Apoiado pela família, o rapaz já havia procurado psiquiatra e psicólogo, mas relutava em se tratar. Uma vez tomou Rivotril a mais e dormiu além da conta. Mas não queria permitir, dizia, que os remédios o dominassem. E assim tudo parecia ir se ajustando aos poucos, mesmo resistindo a reconhecer a dor avassaladora e buscar a ajuda mais adequada. Era uma questão de tempo se livrar daquele punhal na alma que tirava seu sono, seu humor… e muitas vezes o afastava de tantas atividades prazerosas com quem lhe queria bem.

Foi assim que na manhã do último domingo (14 de janeiro de 2018), por volta das 10h, o jovem resolveu por fim ao pesadelo que talvez nem pudesse descrever, mas que só ele poderia sentir. X. se trancou no quarto e pendurou-se pelo pescoço da janela do apartamento da família, no terceiro andar do prédio onde morava. Os bombeiros demoraram a chegar: algo em torno de 40 minutos, segundo familiares. E o dono daquele corpo carregado de dores intangíveis e inimagináveis já não estava mais ali.

A mãe entrou em pânico. Esmurrava a porta do quarto, ninguém abria. Da janela de outro cômodo, gritava por socorro. Em vão. As pessoas lá embaixo tinham apenas uma preocupação: assistir e registrar, ao vivo, o mais completo ato de desespero de um ser humano.  Insensíveis a buscar ajuda, queriam flagrar a todo custo os últimos momentos da vida real de um jovem em profundo sofrimento. Ninguém ofereceu ajuda. Ninguém procurou a família para se solidarizar, apoiar, acolher.

Em tempos tão efêmeros, de relacionamentos tão superficiais, a espetacularização da tragédia humana se sobrepõe à generosidade, ao afeto, à solidariedade. A vida humana se torna banal. E o respeito a ela é deixado de lado em troca de meras curtidas no Facebook. Não foram poucos os que postaram fotos em comunidades e páginas do bairro. E muitos os que comentaram, insensíveis ao drama da família. Irresponsável e insensivelmente, muitos curiosos só almejavam seus “15 segundos de fama” nas redes sociais. A relevância da vida humana passou ao largo.

X. desistiu da vida. Como, infelizmente, têm feito muitos jovens em todo o país. O Brasil já é o quarto colocado em relação ao crescimento das taxas de suicídio entre os jovens da América Central e da América do Sul. com a maior proporção de jovens que cometem suicídio. Mas em vez de buscar uma forma de ajudar a reverter essa triste estatística, de acolher quem sofre com o problema e seus familiares ou simplesmente debater seriamente a questão, muita gente está mais preocupada em expor as feridas de maneira agressiva e ofensiva, sem se preocupar com a memória das vítimas, nem o luto das famílias.

Após ouvir o relato de Fernanda (nome fictício), de 34 anos, prima de X. (veja o emocionante depoimento dela abaixo), ViDA & Ação resolveu abordar esse caso para chamar a atenção para que não se repitam grotescas e crueis exposições como esta na internet. Que não mais se multipliquem nas redes sociais as cenas do episódio final de uma triste história quem, em algum momento (como vamos saber?) poderia ser revertida, se não jogássemos para debaixo do tapete nossas mazelas da alma.

O silêncio da mídia em relação ao suicídio e a reação das pessoas, felizmente, estão mudando, como mostra uma pesquisa. E a campanha Setembro Amarelo também tem contribuído muito para disseminar uma nova mentalidade sobre o tema. Mas ainda há muito a ser feito. Em respeito aos jovens – e também adultos – que estão tirando suas vidas por não entenderem a dimensão de suas mentes e como controlá-las e sobretudo às famílias e amigos desses que partem bruscamente, quase sempre sem despedidas nem explicações, não façamos dessa tragédia um espetáculo desnecessário e desumano, e sim um ponto de partida para a importante reflexão e a busca consciente de soluções para o enfrentamento de tão grave problema de saúde pública em nosso país.

‘Ele era um menino… Nunca mais a gente vai ser normal’

Por Fernanda (nome fictício),  de 34 anos, prima de X.

“Meu primo tinha 22 anos, sofria de depressão. Mesmo assim, estava matriculado para o primeiro período de Engenharia Civil. Estava tudo caminhando muito bem na vida dele. Embora tivesse depressão grave, trabalhava. Tinha uma namorada linda. Uma querida. Companheira dele. Tinha se mudado para uma casa nova um quarto super maneiro que a minha tia tinha feito pra ele.

X. não aceitava muito a ajuda do psiquiatra e terapeuta. Achava que ia se curar sozinho. Se recusava a tomar medicação. Ele não queria perder o controle do corpo dele. Talvez ficasse tonto. Mas era uma questão de adaptação à medicação. Se ele deu sinais de que pretendia atentar contra a própria vida, nunca percebemos. Uma vez tomou Rivotril a mais. Mas não caracterizou suicídio.

Domingo de manhã, meu primo se trancou no quarto e cometeu enforcamento em casa, em torno de 9 a 10 horas da manhã. Ele era muito grande e colocou o corpo para fora da janela. Minha tia e meus primos estavam em casa. O bombeiro demorou a chegar, quase 40 minutos. E muitas pessoas viram da rua ele enforcado. E começaram as postagens no Facebook, em grupos. Postagens com o rosto dele, inclusive citando o endereço da minha tia, com comentários agressivos e esdrúxulos. Os comentários ficam difíceis de se apagar.  Postagens são mais fáceis.

Eu não tenho formação em imprensa, sou de outra área. Mas faço ideia de que quando se quer dar uma notícia não precisa publicar uma foto com uma faixa preta no lugar da pessoa ou expor o corpo da pessoa em vergonha. A gente estava em luto, estávamos todos na casa da minha tia, e o telefone começou a tocar. E não parou de aparecer ainda pessoas postando fotos dele até hoje (quarta-feira, dia 17). Queria colocar a boca no trombone, clamar, pedir e expor. Queria reacender a discussão.

Eu também já passei por isso. Sofri um acidente e minha foto foi exposta no Facebook, mas estou aqui viva, inteira. O que nós passamos com meu primo foi muito grave (…). O Facebook, as mídias digitais expondo nossa vergonha, o nosso luto, a troco de uma notícia, de uma informação que não vai mudar a vida de ninguém… Obviamente se estivessem falando de suicídio, sobre prevenção, como ajudar as pessoas, identificar se tem traços de um suicida, e citando que um jovem naquele domingo de manhã cometeu tamanho ato, seria outra coisa.

Não sabemos se quando as pessoas fotografavam ele ainda estava vivo. Nenhum vizinho foi até o apartamento. Minha tia só via quem estava do lado de fora. Foi uma cena de filme de terror. Só via isso na TV! A falta de cuidado com o próximo. Falta de compaixão, empatia, misericórdia! Tem umas fotos que aparece o rosto dele. Eu não consigo ver. Mas tem pessoas que pedem para ver as fotos. Querem ver a cara. Já briguei com muitas pessoas desde domingo.

Em uma das postagens, está escrito “o administrador da página está no bairro e fotografou as imagens”. Então eu perguntei para ele: ‘por que não foi ajudar minha tia, não foi arrombar a porta, por que não subiu?’ Por que as pessoas tiram o telefone do bolso, pra tirar uma foto de uma desgraça? Mas em momento nenhum a  pessoa vai lá e estende a mão para ajudar um necessitado. Aí apagaram a publicação. Por que ninguém ajudou, né? Por que que ninguém foi dar um abraço? Ele já estava morto, mas tinha uma família ali dentro, gritando, enlouquecida.

Minha tia conta quegritava, pedia ajuda, e as pessoas lá embaixo não faziam nada. Ela não conseguia arrombar a porta porque era pesada. Batia, desesperada, e as pessoas lá embaixo, olhando, tirando foto. Ela com o corpo para fora da janela, gritando, pedindo socorro e ninguém fazia nada. Uma loucura! A gente não sabe se ele ainda estava vivo porque o estrangulamento é muito rápido. Mas se você está ali, aí você conta três andares, sobe, procura uma porta aberta, procura alguém gritando e oferece ajuda, um ombro, alguma coisa.

Minha tia conta que as pessoas olhavam para ela,  ela via uma multidão lá embaixo, mas as pessoas não ajudavam. Eles preferiram fotografar, fazer a notícia, do que ajudar minha tia. O porteiro do prédio não  podia. Mas quem estava do lado, de pijama, não ofereceu ajuda.  A família demorou para chegar porque cada um estava em sua casa, nos seus afazeres. A gente não conseguiu fazer o socorro que precisava.

O X. foi muito bem cuidado, foi muito amado e nunca julgado. Teve psiquiatra, psicólogo, teve toda a ajuda que alguém podia ter. Teve todo o amparo de que precisava. Mesmo assim ele decidiu. É um momento muito duro. Se fosse uma pessoa abandonada, sozinha na vida. Mas a minha família é enorme. Somos muitos primos. Mas ele decidiu. Pra gente tá muito difícil.

Não sei explicar o tamanho da nossa dor. Acho que nunca mais a gente vai ser normal. Era um menino, né… Nunca mais a gente vai ser normal. Se você puder verbalizar esse pedido de socorro, de misericórdia – “não façam isso com ninguém, não façam isso conosco” – você vai ajudar uma família enorme. Uma família enorme vai ser grata por isso”.

Nota da Redação: ViDA & Ação abraça essa causa e desde 2016 vem divulgando informações relevantes sobre o tema, esclarecendo, por exemplo, as formas de identificar um potencial suicida, como entender esse comportamento e ajudar a freá-lo, levantando suas inúmeras causas, mostrando aos pais como ajudar seus filhos ou mesmo propondo saídas, como abraçar a campanha Janeiro Branco por exemplo.
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