Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2022) apontam que 75% de todos os estupros são de vulneráveis (crianças, adolescentes e pessoas com alguma deficiência que não sabem se defender) e, como já se sabe, 79,6% dos autores eram conhecidos da vítima. Outras pesquisas mostram ainda que pessoas com deficiência são a maioria das vítimas. Segundo Lancet (2022), uma em cada três crianças com deficiência no mundo já sofreu violência.

De acordo com pesquisa do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA 2018), o número de vítimas com alguma deficiência é quatro vezes maior que as sem deficiência. Pessoas com deficiência sofrem três vezes mais violência sexual e as meninas correm o maior risco. Crianças surdas, cegas, autistas ou com deficiências psicossociais ou intelectuais têm cinco vezes mais chances de ser abusadas. O problema no Brasil também chama atenção neste Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes (18 de maio).

Mas como educar e preparar crianças, se falar em sexo ainda é um tabu tão grande para a sociedade brasileira? Preocupada em ensinar a filha com síndrome de Down a se defender de abuso sexual na escola, uma “mãe atípica” decidiu criar uma cartilha que tem sido distribuída em escolas públicas de todo o Brasil e ajudado muitas crianças (com e sem deficiência). Referência de educação sexual em todo o país, a cartilha vem sendo distribuída gratuitamente em centros médicos e escolas de todo o país.

Para ensinar sua filha adolescente a se defender de qualquer tipo de violência na escola, enquanto estivesse longe de seus cuidados, a jornalista Patrícia Almeida, mãe da Amanda, hoje com 18 anos, decidiu fazer uma cartilha com desenhos e mensagens simples, claras e diretas, do jeito que criança entende. A ideia deu certo. Não só para Amanda, mas para milhares de outras crianças e adolescentes, de diversos municípios brasileiros.

Desde que foi criado, em 2020, o projeto ‘Eu me Protejo’ vem sendo difundido com ajuda dos meios de comunicação, redes sociais, influenciadores e rede de atenção às crianças, e apresentado a autoridades públicas de modo a implantá-lo nas escolas, igrejas e outros locais frequentados por crianças.

“Apesar de sabermos dos abusos contra crianças e adolescentes com deficiência não temos dados oficiais no Brasil que permitam a criação de políticas públicas para inibição e punição desses crimes. Pessoas com deficiência são ensinadas a confiar nas pessoas porque precisam de cuidados especiais, não estão preparadas para se defender e, muitas vezes, têm dificuldade de se comunicar”, explica Patrícia.

Além disso, essas vítimas não são consideradas testemunhas confiáveis, são intimidadas por cuidadores em quem confiam, só chegam aos hospitais em casos muito graves e a legislação não permite a inclusão de agressão a PcDs em boletins de ocorrência da Lei Maria da Penha.

Como o projeto vem ganhando reconhecimento e adesão em todo o país?

No Rio de Janeiro, a Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência do Rio de Janeiro/RJ publicou resolução instituindo Grupo de Trabalho para a disseminação das informações do projeto, com objetivo de prevenir todos os tipos de violência contra as pessoas com deficiência do município do Rio de Janeiro. Uma formação presencial para funcionários da secretaria foi feita em março na OAB/RJ.

As escolas do estado da Bahia e do município de Andradas, em Minas Gerais, receberam as cartilhas para uso das crianças e profissionais de Educação. Neste ano, a cartilha Eu Me Protejo começou a ser implementada na Educação Infantil do município de Santo Antônio do Descoberto/GO, com a formação de professores para utilização do material.

Premiações – O projeto é ganhador dos prêmios Neide Castanha e Pátria Voluntária Acessibilidade, e este ano, foi incorporado à organização social Instituto MetaSocial e recebeu apoio institucional da Sociedade Brasileira de Pediatria e Fiocruz. Este ano, está sendo incorporado à organização social Instituto MetaSocial e ganha apoio institucional da Sociedade Brasileira de Pediatria e da Fiocruz.

Entrevista

Patricia Almeida

Em que consiste o projeto e a cartilha ‘Eu me Protejo’? Qual é o seu objetivo?

O projeto “Eu Me Protejo” foi criado para servir de apoio a famílias e educadores em conversas com os pequenos desde cedo sobre os seus corpos e como protegê-los, evitando situações de violência. O site do projeto traz cartilhas ilustradas, em linguagem acessível, voltada para crianças de 0 a 8 anos, para serem lidas pela criança junto com os pais, parentes ou educadores. Tudo gratuito.

O material foi elaborado seguindo os preceitos da Linguagem Simples e do Desenho Universal para a Aprendizagem, podendo ser usado em escolas inclusivas por ser acessível a crianças e pessoas com e sem deficiência. A forma de abordagem foi muito discutida pelo grupo, tanto com relação à linguagem quanto às ilustrações. Houve cuidado para não afastar pais e professores que se dizem constrangidos ao abordar o tema com as crianças.

A identidade visual é alegre e atraente, as ilustrações mostram as crianças sempre vestidas e não há menção direta à sexualidade. Caso os pais queiram avançar nas explicações, podem fazê-lo por meio do material disponível no site como boas práticas. A linguagem é clara e os exemplos concretos e diretos, sem metáforas ou eufemismos que possam comprometer o entendimento da criança. Os personagens refletem a diversidade humana, com diferentes características, cores de pele, deficiência, crianças com óculos, com sobrepeso.

A cartilha tem uma linguagem inclusiva e também é destinada a pessoas com deficiência. Existe uma necessidade de atenção maior para essas crianças e adolescentes?

Apesar de sabermos disso, não temos dados oficiais no Brasil que permitam a criação de políticas públicas para inibição e punição desses crimes. Pessoas com deficiência são ensinadas a confiar nas pessoas, porque precisam de cuidados especiais, não estão preparadas para se defender e, muitas vezes, têm dificuldade de se comunicar.

Além disso, essas vítimas não são consideradas testemunhas confiáveis, são intimidadas por cuidadores em quem confiam, só chegam aos hospitais em casos muito graves e a legislação não permite a inclusão de agressão a PcDs em boletins de ocorrência da Lei Maria da Penha.

Como surgiu a ideia de fazer a cartilha ‘Eu me Protejo’?

Em 2018, voltei para o Brasil depois de uma temporada no exterior e matriculei minha filha caçula, que tem síndrome de Down, na escola pública. Tínhamos passado os últimos anos em Genebra, e ela estudou com professores particulares pois na Suíça, por incrível que pareça, ainda não há escolas inclusivas. Por um lado estava super feliz em poder voltar ao meu país pra minha filha ter acesso ao ensino inclusivo, mas, por outro lado, entrei em pânico, pois minha filha não tinha tido a oportunidade de conviver com colegas da sua geração e não estava preparada para algumas situações da vida. Daí eu pensei: “Ela precisa aprender a se defender”.

Se pais de crianças sem deficiência perdem o sono com medo de violência sexual, o pavor de quem tem filhas com deficiência intelectual e dificuldade de comunicação é ainda maior. A vulnerabilidade é enorme, então comecei a pesquisar para montar uma cartilha que unisse educação e autoproteção. Usando as técnicas do “Desenho Universal para a Aprendizagem” e “Linguagem Simples”, construí um material com pouco texto, concreto, literal, ilustrado e de fácil entendimento, podendo ser usado por todos.

A cartilha, que recebeu o título de “Eu me Protejo”, foi enriquecida com os conhecimentos e a experiência da psicóloga Neusa Maria, com mais de 20 anos de experiência no combate à violência doméstica,  que se tornou co-autora e uma grande parceira para a validação da cartilha e confirmou que o conteúdo servia para a aprendizagem de crianças com e sem deficiência, e mais: que as crianças estavam apontando para as imagens da cartilha para fazer denúncias.

Como o projeto ganhou a representatividade que tem hoje, em vários municípios brasileiros?

Animada com a repercussão, entrei em contato com especialistas que atuam nessa área e que concordaram em participar do grupo consultivo voluntariamente pelo WhatsApp. A cartilha também virou tema da minha pesquisa aplicada no curso de Master of Arts em Estudos da Deficiência na City University of New York – CUNY.

Depois de um ano de discussões, o resultado produzido colaborativamente foi testado pelos participantes do grupo em escolas, consultórios e com seus filhos, e netos em suas próprias casas. Nós entendemos que a maioria dos pais não sabe como tocar nesse assunto com seus filhos. Provavelmente eles próprios não tiveram essa experiência em suas famílias.

Onde encontrar?

As cartilhas Eu Me Protejo já foram impressas e distribuídas ou colocadas nos sites e instituições como Sociedade Paulista de Pediatria, Tribunal de Justiça do Distrito Federal, Ministério Público do Paraná, Defensoria Pública da Bahia, Assembleia Legislativa de Goiás, Escola Superior da Magistratura (Esman) do Amazonas, entre outras. Confira: https://www.eumeprotejo.com/nossas-credenciais

No atual, governo, o Projeto ‘Eu Me Protejo’ já foi apresentado a vários parlamentares, autoridades públicas e ativistas como a primeira-dama Janja da Silva, e as ministras da Saúde Nísia Trindade, do Planejamento Simone Tebet, das Mulheres Cida Gomes, da Igualdade Racial, Anielle Franco; do Turismo, Daniela Carneiro; além do ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida.

 

 

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