Hallan Luís Silva Ramos Ventura, de apenas sete anos de idade, morreu ao cair do segundo andar de um prédio no Andaraí, zona Norte do Rio de Janeiro, em 26 de fevereiro de 2023. Mais de um ano depois, a mãe e a avó do menino foram denunciadas pelo Ministério Público por abandono de incapaz resultante em morte.

Elas foram denunciadas nas penas previstas no artigo 133 do Código Penal, com previsão de prisão de quatro a 12 anos. O MPRJ também solicitou medida cautelar proibindo as denunciadas de manterem contato com as outras duas crianças, de 8 e 4 anos.

Hallan e os dois irmãos estavam em casa esperando pelo pai, que atrasou para buscá-los (Foto: Reprodução de internet)

De acordo com a denúncia da 3ª Promotoria de Justiça de Investigação Penal Territorial do Méier e Tijuca, Jéssica Silva Ramos – mãe de Hallan e mais dois meninos, de 8 e 4 anos –  saiu de casa para fazer um passeio de barco por volta das 5h30, deixando os três filhos sozinhos.

Pouco depois, um primo de Jéssica passou no local e levou Luis Octávio, 4, para a casa da madrinha, deixando os outros dois menores – Hallan e Davi, de 8 – sozinhos no local. Por volta das 8 horas, a mãe de Jéssica, Marise Alves da Silva, chegou ao apartamento, tendo deixado o local por volta das 10 horas, horário que o pai das crianças teria se comprometido a pegá-las.

Em depoimento prestado à Polícia Civil, no entanto, o pai dos meninos alegou que, em virtude de um imprevisto, se atrasou e que não sabia que as crianças estavam sozinhas. O pai não sofreu nenhuma sanção da Justiça.

Com que idade dá pra deixar o filho sozinho em casa?

A tragédia no Rio de Janeiro desperta vários debates. Para muitos, foi uma fatalidade. Para outros, foi fruto da negligência da mãe e da avó. Também há quem acredite que o pai tenha uma parcela de responsabilidade, já que não cumpriu com o compromisso de buscar os filhos no horário combinado.

Mas o que mais gera indignação no caso é o motivo de a mãe ter deixado a criança sozinhas por quase 5 horas até a chegada do pai, que não ocorreu – ela havia saído para um passeio de barco, segundo confirmou o MP. Mas, e se fosse para trabalho ou outro motivo urgente?

Afinal, é possível deixar um filho sozinho em casa? Em que circunstâncias e sob quais cuidados? E com que idade a criança pode ficar sozinha para que a mãe possa trabalhar ou cumprir outras obrigações, inclusive para sustento dos próprios filhos, uma vez que muitos pais não pagam a devida pensão alimentícia?

“Não há idade adequada para se deixar uma criança sozinha”, diz a advogada Marilia Golfieri Angella,  especialista em Direito de Família, Gênero e Infância e Juventude, ao comentar o caso do médico que recusou atestado para a mãe de um menino de 5 anos que estava doente.

Médico nega atestado para mãe cuidar do filho em casa

O caso aconteceu em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) em Cambé, no Paraná. A mulher havia pedido o atestado com objetivo de comprovar a ausência do trabalho para cuidar da criança. A mãe trabalha cerca de 12 horas por dia em uma portaria, e precisaria ficar em casa para ministrar as medicações no filho no período prescrito pelo clínico geral.

Para a especialista, que é sócia-fundadora do Marília Golfieri Angella – Advocacia Familiar e Social e mestre em Processo Civil pela Faculdade de Direito da USP. deixar uma criança de 5 anos sozinha em casa, tal como sugeriu o médico na ocasião de Cambé, não é uma opção.

Para Marilia, embora o profissional de saúde não seja obrigado a fornecer o documento de afastamento justificado do trabalho para cuidadores dos enfermos que atende, sua atitude causa espanto.

Nossa Constituição diz que enquanto sociedade, somos todos responsáveis por proteger nossas crianças. Garantir que uma mãe possa cuidar de seu filho doente sem medo de engrossar outra estatística, que é a de desempregados no país, é parte disso”, afirma.

Acidentes domésticos respondem por mortes infantis

Golfieri reforça que o DataSUS aponta que acidentes domésticos, como quedas, sufocamentos, queimaduras, afogamentos e intoxicações, são as principais causas de morte infantil no Brasil entre 0 e 14 anos. Só entre 2020 e 2021 foram registrados mais de 1.600 óbitos nesta modalidade.

Por outro lado, uma pesquisa feita pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), aponta que o número de mães solo no mercado de trabalho cresceu 1,7 milhão em dez anos, sendo superior a 70% o número destas mães que vive de forma monoparental, sem qualquer rede de apoio de outros familiares, como no caso de família extensa, composta por tios, avós etc. Ou seja, a conta não fecha, e há grandes chances de esta mãe de Cambé estar nessa estatística

A especialista ressalta que a fala do médico pode estar centrada em tempos mais antigos, nos quais as exposições de crianças e adolescentes a situações de risco eram menores. Hoje, há entre outros fatores, o uso da internet, que está amplamente disponível nas casas brasileiras e  pode ser muito prejudicial a crianças e adolescentes, expondo-as até mesmo ao risco de crimes sexuais.

Há de se reconhecer que este médico não é exceção e é preciso cautela em acusá-lo, pois a sua fala é reflexo de uma sociedade que aceita e normaliza, entre muitos absurdos, o trabalho infantil para crianças a partir de 5 anos. Para essa parcela de pessoas, se a criança pode trabalhar, por que não poderia ficar sozinha em casa?”, reflete Golfieri.

Marco legal da primeira infância: o papel das empresas

Marília diz ainda que essa análise deve passar pela responsabilidade também dos empregadores, na proteção de direitos dos filhos dos seus empregados e colaboradores, já que mesmo com a recente alteração da CLT a partir do Marco Legal da Primeira Infância, ao empregado só é garantido o direito de faltar pouquíssimas vezes no trabalho para acompanhar o filho em consulta médica (CLT, Artigo 473, inciso XI), sendo que esta concessão não está alinhada às necessidades da criança e do adolescente.

É preciso que o empregador tenha, para além de bom senso, atitudes positivas no sentido de compreender situações que envolvam crianças e adolescentes, como abonar faltas de funcionários que necessitem acompanhar os filhos em consultas. Ou mesmo permanecerem em casa para o repouso da criança, a fim de reestabelecer sua saúde física, entre outras ações positivas que respeitem a dignidade do funcionário, mas que, no fundo, são ações de respeito ao direito desta criança de se desenvolver de forma saudável”, complementa Golfieri.

Se não deixar sozinho em casa não é uma opção, o que fazer?

A advogada Marília Golfieri Angella, especialista em direito da criança e adolescente. explica o que fazer nesses casos:

Você pode começar procurando em seu município e no seu Estado se há políticas públicas voltadas ao contraturno escolar, que podem ser os Centros para Crianças e Adolescentes (CCA), por exemplo.

Se esta política pública não for encontrada em sua cidade, pode ser uma oportunidade para promover ações de advocacy voltadas à provocação legislativa e executiva para implementação destes centros, inclusive tendo como respaldo a recente Lei 14.826/2024.

A legislação coloca o direito ao brincar como forma de prevenção de violência contra crianças e reforça a responsabilidade do Estado na proteção deste direito, como também decorre do texto constitucional e do ECA.

Hoje em dia há também instituições particulares que prestam estes serviços de forma continuada (mensal/anual) ou mesmo por diária, como os chamados espaços de brincar ou quintais de recreação, sendo importante sempre buscar referências e certificando-se da regularidade do local perante as autoridades públicas e órgãos de fiscalização”, disse.

Além disso, o Ministério da Saúde, do Governo Federal, possui uma plataforma online didática a respeito das Linhas de Cuidado e procedimentos de saúde destinados à proteção de crianças e adolescentes, inclusive separados por faixa etária.

Acessando este conteúdo é possível encontrar calendários e rotinas de consultas médicas, modos de prevenção de acidentes, o que pode ser essenciais para conhecimento geral da população – e não apenas para profissionais da área da saúde.

Com Assessorias

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