

Acho que a forma como as pessoas falam com a gente é o que mais magoa. Para mim, a palavra mais acolhedora foi, ‘ela foi um ser humano, ela viveu e sempre viverá no seu coração’. “Conselhos como, ‘ah, você tem outros filhos’, ‘ah, foi Deus quem quis’, ‘ah, é melhor enterrar agora do que depois’, a gente escuta muito, mas não ajudam”.
A perda gestacional ou neonatal pode ser a experiência mais difícil na vida de muitas famílias, mas, por muitos anos, a dor causada por essa situação foi invisibilizada. A partir de muita mobilização, de famílias e profissionais, entrou em vigor em agosto de 2025 a Política Nacional de Humanização do Luto Materno e Parental, que busca um atendimento mais próximo e respeitoso, que ajude na recuperação das pessoas que passaram por esse trauma.
A política é considerada um marco e estabelece o mês de outubro como o mês do luto gestacional, neonatal e infantil no Brasil.
A gente não supera [o óbito]. A gente se sente inútil por não conseguir sair da maternidade com nosso bebezinho no colo ou terminar a gestação”, desabafou Janynnie. Hoje, ela atua em organizações da sociedade civil, prestando apoio a famílias que também experimentaram a perda neonatal e cobram a aplicação da política pública.
A Lei Nº 15.139, que estabelece a humanização do luto, cria diretrizes claras para hospitais públicos e privados. Entre elas, está o atendimento psicológico à distância após a alta e adequações nas maternidades, que precisam garantir uma ala separada para mães enlutadas, evitando o contato com os recém-nascidos.
Além disso, é previsto pela política nacional o direito à despedida, com o tempo e o espaço adequado para o último momento com o bebê, permitindo, por exemplo,um registro simbólico, com fotos, impressões digitais como a do pezinho, além de apoio às equipes de saúde.
Falo com muitos profissionais que, para nós, mães que perdemos o bebê e mães de UTI, é muito difícil ficar junto com outras mães e seus bebês”, afirma Janynnie. “Ficar olhando para as outras famílias, vendo o aleitamento, e você sem poder, sabendo que você vai sair dali sem o bebê, isso muda totalmente o psicológico de uma mãe”.
A presença de um acompanhante no parto de um bebê, mesmo morto, também deve ser garantida, assim como o salário-maternidade pago pela previdência social. Apesar da demandas por psicólogos, Denise, que é do Rio Grande do Sul, e Janynnie, que trabalha também com a organização não governamental Amada Helena, em Roraima, cobram mais profissionais de saúde mental para os atendimentos, “porque mãe sofre, mas o pai também, a avó, há uma demanda grande por esse atendimento”, disseram.
A nova política para o luto humanizado também garante a investigação da causa da morte do bebê, respeitando as crenças de cada família, além do registro da criança com o nome desejado pelos pais e não mais como “natimorto”.
O Conselho Nacional de Justiça já tinha permitido aos pais dar o nome a essa criança, em 2023, autorizando ainda a correção nos registros, por meio do Provimento 151, de 26/09/2023. A nova política atualizou a medida e também passou a permitir o sepultamento ou cremação do feto ou recém-nascido.
Já há algum tempo, muitas unidades de referência, como a Maternidade Escola da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), já vinham colocando em prática tais medidas, como a separação dos leitos.
Tais ações exigem adaptações estruturais em um sistema sobrecarregado, avalia Denise Suguitani, diretora da organização não governamental Prematuridade. A entidade atua na defesa da nova política e prepara uma cartilha junto com o Ministério da Saúde para auxiliar profissionais da saúde nesta fase de transição.
Neste outubro, já vimos uma mobilização muito maior das instituições em torno do tema, para viabilizar essa política e, sendo lei federal, podemos fiscalizar, cobrar”, disse.
Equipes de saúde
Na outra ponta, a política do luto humanizado determina a qualificação de equipes para o atendimento empático, mas também resiliente. Em Porto Alegre, o Hospital Fêmina, por meio do Grupo de Luto Materno e Perinatal, atua dialogando com as famílias que podem vir a perder o bebê ainda na gestação ou logo após o nascimento e acolhendo depois do ocorrido. Além das determinações da lei, o hospital oferece orientações sobre como lidar com o enxoval e o quarto do bebê.
Também faz parte do cuidado o acolhimento às equipes de saúde. A possibilidade de reorganizar escalas para quem vive um momento como esse é uma prática que deve ser incentivada dentro do hospital, diz a unidade, em nota.
Às vezes, enfrentamos uma perda logo na primeira hora do plantão de 12 horas, e temos que enfrentar esse sentimento e continuar”, relata uma das profissionais de saúde do grupo de luto materno da unidade, a enfermeira da UTI Neonatal Fabiola Suric.
“Precisamos falar sobre isso entre as equipes, para melhorar o atendimento às famílias e oferecer um cuidado mais sensível a todos”, completou.
Quando a lei foi aprovada, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, garantiu que a pasta daria atenção à política e adaptaria hospitais de todo o país. Porém, consultado neste mês, o ministério não confirmou investimentos.
Em nota, disse que a implementação da política “é um processo gradual e articulado”, junto com estados e municípios e “que envolve adequações organizacionais, formação de profissionais e integração dos fluxos assistenciais”. O texto acrescenta que “os municípios são responsáveis por organizar, executar e gerenciar a humanização do atendimento às famílias em seu território”.
Acolhimento correto no luto por bebês previne piora da saúde mental
A ausência de atendimento para famílias enlutadas depois de perderem um bebê na gestação, no parto ou logo depois do nascimento, pode desencadear casos de depressão e ansiedade e pressionar o já sobrecarregado sistema de saúde. A avaliação é da diretora da organização não governamental Prematuridade, Denise Suguitani. Há 11 anos, a instituição oferece acolhimento às mães, pais e avós que vivem o luto materno parental. 
*#FAMÍLIA – SUS passa a oferecer mais acolhimento no luto materno e parental* para reduzir danos emocionais. Conheça o trabalho em algumas maternidades públicas https://tinyurl.com/289adv3p
“O nosso entendimento é que essas famílias, quando não são acolhidas, geram uma demanda para o sistema do ponto de vista de saúde mental”, informou Suguitani, cuja instituição atua com foco em bebês prematuros, uma das principais causas de morte neonatal.
Se as famílias não são acolhidas naquele primeiro momento adequadamente, para poder processar o luto, isso vai se acumulando e gera demandas de atendimento, de internação, que poderiam ser minimizadas”, completou a diretora.
O atendimento psicológico após a alta hospitalar, a ser realizado, preferencialmente, na residência da família enlutada ou na unidade de saúde mais próxima, é uma das recomendações da nova Política Nacional de Humanização do Luto Materno e Parental, em vigor desde agosto, mas que ainda esbarra em falta de profissionais.
Em Roraima, atuando também como suporte da organização Amada Helena, Janynnie Matos de Freitas, confirma essa realidade. Ela esteve, recentemente, na casa de duas mães enlutadas. “Eu fui conversar, orientei, falei sobre o atendimento online das nossas entidades, mas também do serviço de psicologia do programa de saúde da família. No hospital, a demanda é alta, e o atendimento é difícil”, informou.
Ela defende que a política seja uma realidade em todo o país. “A gente sabe que a estratégia de saúde da família tem trabalhado muito essa questão [da necessidade do atendimento psicológico] junto com a assistência social, mas ainda é pouco”, avaliou Janynnie, que já foi uma mãe enlutada. “Pai, avô, avó, a família toda sofre”, reforçou.
De acordo com profissionais da saúde, o atendimento humanizado para famílias em luto, desde a perda, reduz o sofrimento psicológico de longo prazo. Nesse aspecto, outros pontos da lei que criou a política nacional também ajudam, como a investigação do motivo da perda ou do óbito, a possibilidade de se despedir, de registrar ou de enterrar os bebês.
A despedida mais respeitosa, na qual os pais tenham apoio para criar lembranças afetivas, tais como fotos, ou possam guardar digitais, o cordão umbilical ou uma mantinha, sempre respeitando os limites e desejo de cada um”, são importantes para as famílias, explicou, em nota, a psicóloga especializada em saúde mental perinatal, Marisa Sanchez.
A lei que cria a política da humanização do luto materno e parental tem outubro como o mês de referência. O objetivo é chamar a atenção para a necessidade de garantir acolhimento às famílias, por meio de diretrizes claras para hospitais públicos e privados.
Entre as novas medidas da lei, também está a necessidade de separação de alas em maternidades para as mães enlutadas, a presença de acompanhante durante o parto mesmo que o bebê esteja morto e o direito de sepultar ou cremar o bebê nascido morto, de acordo com as crenças de cada família.
Quando a lei foi aprovada, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, garantiu que a pasta adaptaria hospitais públicos de todo o país. “O Ministério da Saúde vai ter uma política para isso. Terá ações para apoiar essa reorganização, que vai ser muito positiva para a humanização das maternidades”, declarou.
Consultado neste mês, o ministério não confirmou investimentos. Em nota, disse que a implementação da política “é um processo gradual e articulado”, junto com estados e municípios e “que envolve adequações organizacionais, formação de profissionais e integração dos fluxos assistenciais”.
Maternidade da UFRJ é referência no acolhimento ao luto gestacional
Uma maternidade pública na zona sul da cidade do Rio de Janeiro se tornou referência no atendimento a famílias enlutadas depois da morte de um bebê na gestação, no parto ou nos primeiros dias de vida.  Em outubro, mês que, pela primeira vez, pauta o luto gestacional, neonatal e infantil no Brasil, a Maternidade Escola da Universidade Federal do Rio de Janeiro abriu suas portas para apresentar como faz o acolhimento de pacientes e como vem evoluindo suas práticas há pelo menos 15 anos, apesar dos desafios.
Em agosto deste ano, passou a vigorar a política de humanização do luto materno e parental, que determina um atendimento respeitoso, que ajude na recuperação das pessoas que passaram por esse trauma. A política traz uma série de determinações às maternidades públicas e privadas, incluindo a possibilidade das famílias poderem ter um último momento com a criança, bater fotos ou receberem registros como as digitais do pezinho e poderem se despedir. Também foi determinada a possibilidade de registrar o nome do bebê na certidão de óbito, e se for do interesse da família, enterrar ou cremar.
Na maternidade da UFRJ, esse momento de despedida ocorre em um local diferenciado, chamado “morge”, que, muitas vezes, não é aberto às famílias nas unidades. Ali, acontecem momentos singelos, mas cheios de afeto, contou a psicóloga Paula Zanuto.
“Nesta semana, ocorreu uma despedida que emocionou toda a equipe. Um pai e uma avó vieram se despedir de um bebê que nasceu a termo, acho que com 38 semanas, mas só viveu por um dia“, revelou a psicóloga. “O pai e a avó vieram muito cuidadosos, muito amorosos com o corpinho do bebê, o pai colocou a roupinha, vestiu a luvinha, a meinha, muito cuidadoso, a avó falando ‘cuidado para ele não sentir frio’ , por mais que o bebê estivesse morto. A avó ainda ninou um pouquinho no ombro, enrolou na mantinha. O pai colocou a alcinha do nosso coração [de pano] em volta do bracinho do neném e na altura do coração de verdade. Foi uma cena linda, todo mundo segurou o choro, eles enfrentaram uma perda difícil juntos”, descreveu Paula para ressaltar a importância do morge.
A gente oferece um par. Uma unidade fica com a mãe ou o pai e a outra embalamos junto com o bêbê”, explicou Daniela Porto Faus, chefe da Unidade de Atenção Psicossocial e psicóloga clínica da unidade.
“A gente favorece muito esse momento de despedida, seja no centro obstétrico ou na UTI. Respeitamos o tempo da família, temos muito cuidado”, acrescentou Daniela, dando exemplo de outro protocolo muito sensível: “quando o bebê na UTI está muito grave e nós sabemos que vai ter um desfecho ruim, a gente já oferece [que ele vá para] o colo para que esse bebê possa ir ao óbito ali juntinho da mãe”.

Segundo a chefe da Divisão de Gestão do Cuidado, Andrea Marinho Barbosa, responsável pela implementação da política, há a intenção de ampliar o morge para que as famílias tenham mais espaço para a prática, considerada importante para o luto.
Nosso grande problema hoje é a estrutura física. O local do morge, onde ficam os corpos, é um pouco pequeno para receber a família toda na despedida do neném”, disse.
Além desse espaço, as mães, no leito da enfermaria, ou na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) têm o tempo que precisarem para se despedir. Na UTI, a equipe prepara uma espécie de biombo, para garantir a privacidade do momento.
Elas ficam extremamente agradecidas, agradecem muito, se sentem acolhidas, né?”, revelou Andrea, acrescentando que o mesmo acontece com a possibilidade de colocar o nome na certidão. “Algumas [mães] já pediam antes, mas como não tinha nada formalizado, a gente não colocava, botava natimorto, agora, a grande maioria pede para colocar o nome escolhido pelos pais”, disse.
Há pelo menos 15 anos a maternidade coloca em prática medidas para garantir mais respeito e acolhimento para famílias nessa situação. A primeira delas foi a instalação da Enfermaria da Finitude, para onde vão essas mães. A maternidade observou que a convivência daquelas enlutadas com outras mães de filhos nascidos vivos ou em aleitamento causava sofrimento psíquico para as puérperas e fez a separação.
Muitas outras unidades de saúde esbarram na superlotação e na falta de espaço físico para fazer a separação, mas, de acordo com a nova política, a medida é obrigatória. A Lei 15.139 também assegura às mulheres que tiveram perdas gestacionais a investigação sobre o motivo do óbito, bem como o acompanhamento específico em nova gestação.
Outra determinação da lei é o atendimento psicológico após a alta. A maternidade da UFRJ oferece atendimento presencial e por meio de telefone, mas reconhece limitações, como a dificuldade de as mães regressarem para a unidade, e a própria limitação das equipes, problema apontado como um gargalo da política.
A gente ainda não tem condições de fazer esse atendimento [em casa], oferecemos somente na nossa unidade e à distância, mas queremos fazer parcerias com outras unidades, para que as pessoas não tenham que se deslocar para cá”, disse a chefe da Divisão de Gestão do Cuidado, Andrea Marinho Barbosa.
A nova lei admite parcerias das unidades de saúde com organizações do terceiro setor, que devem ser uma opção.
Musicoterapia
Outras determinações da política de humanização do luto na maternidade escola da UFRJ, e que são exemplo, incluem musicoterapia para as pacientes e equipes de saúde, que, segundo Andrea, é “para eles tiraram um pouco desse peso”, com apoio das psicólogas e assistentes sociais da própria equipe.
A implementação da política, mesmo estipulada em lei, requer uma mudança de mentalidade, de acordo com a diretora da unidade, Penélope Saldanha, que lembra o processo para garantia da presença de um acompanhante no parto, este ano.
Inicialmente, todo mundo achou que não ia ser possível, que as maternidades não iam comportar, que não ia caber no centro cirúrgico. Aqui, pedimos para que as acompanhantes priorizassem alguém do sexo feminino, para assegurar a privacidade das parturientes. Demorou mais um tempo para reconhecermos que as mulheres queriam a participação do seu companheiro no parto e, então, a nós coube nos adaptar e assegurar esse direito”.
A maternidade da UFRJ que é referência para seis unidades básicas de saúde na cidade do Rio de Janeiro, faz também pré-natal de grávidas de alto risco, e recebe, de todo o estado, grávidas com diagnóstico de doença trofoblástica gestacional, um tipo de tumor que pode evoluir para o câncer de placenta, além de atender partos de emergência.
Da Agência Brasil
								
			
                    



                    

